terça-feira, 24 de maio de 2011

O DESVARIO EUROPEU




MÁRIO SOARES – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, opinião

1. A União Europeia vai mal, sem rumo nem valores. Tenho insistido, nestes modestos artigos, que a União Europeia não vai poder aguentar, por muito mais tempo, a política neoliberal que tem prosseguido, em especial desde que a crise nos afecta. Porquê? Porque, ao contrário da América do Norte, tem persistido em não ver a realidade e em não querer mudar de paradigma ou seja: o modelo económico de desenvolvimento.

Os mercados especulativos continuam a dominar a política dos Estados membros da União, por enquanto apenas os considerados os mais fracos, e a sobrepor-se a todos os outros valores: às conquistas sociais, às políticas de bem-estar, ao pleno emprego - ideal (esquecido) dos anos cinquenta - aos próprios valores éticos...

Perante a crise que se vai estendendo a toda a União, o que conta, para os líderes europeus, é manter os equilíbrios financeiros: combater os deficits e o endividamento externo. Esquecendo o desenvolvimento económico, os perigos da recessão, o desemprego alarmante e as desigualdades sociais.

A Grécia foi a primeira vítima, com culpas de gestão pública evidentes. Mas as instituições europeias não compreenderam que o que estava em causa era a estabilidade do euro, que interessava acima de tudo defender. A reacção foi tardia, em grande parte por culpa da Alemanha e insuficiente relativamente às necessidades. A União Europeia, até hoje, nunca foi capaz de definir - e muito menos de executar - uma política concertada com todos os Estados membros contra a crise global, de defesa do euro e, por outro lado, esqueceu-se do valor essencial da solidariedade, a que todos os Estados membros estão - ou deviam estar - obrigados.

Estas faltas são muito graves e vão custar muito caro ao crédito internacional da União Europeia - ao seu prestígio -, criando precedentes internos, talvez fatais, para os mecanismos de funcionamento futuro da União.

Portugal, um ano depois da Grécia, em circunstâncias diferentes, é certo, sofreu ataques semelhantes dos mercados especulativos e das empresas de rating. A União Europeia tornou-se, entretanto, um pouco mais flexível, graças sobretudo à influência do Fundo Monetário Internacional. Mas as receitas economicistas não mudaram e os compromissos aceites, pelo lado português, vão ser extremamente difíceis de aplicar.

A União Europeia e, mais uma vez, a Alemanha não ficaram bem no retrato. Entretanto, outra responsabilidade gravíssima: pôr fim, ao que parece, de forma unilateral, ao Tratado de Schengen, em virtude dos milhares de imigrantes que, fugidos da Líbia e de outros países islâmicos, atravessaram, em velhos barcos, o Mediterrâneo, com risco de vida, e pediram asilo a Itália, que, por sua vez, reclamou a solidariedade da França, que lhe foi negada. Eis o egoísmo nacionalista em todo o seu esplendor! Ou seja: Itália e França deram uma machadada fortíssima nos ideais generosos com que se constituiu a União Europeia.

Não admira, assim, dados os exemplos citados, que comece a alastrar um espírito de mal-estar e mesmo de indignação, contra os líderes comunitários, pelas populações europeias. Por toda a parte, temos assistido a manifestações cívicas, felizmente pacíficas, em muitos dos Estados europeus, como a França, a Itália, o Reino Unido, a própria Alemanha e agora, até ao domingo passado, em Madrid e em muitas das grandes cidades de Espanha. Indignam-se contra as dificuldades da vida, o desemprego dos jovens, que avulta, nos países europeus, e reclamam contra a corrupção, exigindo outra política, mais liberdade e ética nos comportamentos.

Os Partidos estão em baixa, independentemente de se dizerem de Direita ou de Esquerda. Exigem deles um regresso aos grandes ideais: mais civismo e menos partidocracia e aparathecik. Querem sobretudo soluções para que a União reganhe o seu prestígio no mundo e possa voltar a ser um referência moral, política e social, num planeta cada vez mais inseguro e imprevisível.

Por essas razões - e ainda, outras -, num momento difícil de crise, os portugueses devem perceber que, em grande parte, as nossas dificuldades dependem da evolução da União Europeia, que nos condiciona.

Portugal, a Grécia e a Irlanda - embora, tenham, entre si, diferenças consideráveis - deviam conversar e definir uma estratégia comum relativamente à União. Somos velhos Estados, com histórias que, de diferentes ângulos, marcaram a Europa, o que nos dá o direito a sermos ouvidos e respeitados. Ora os mercados especulativos não vão desistir de ganhar dinheiro. Outros Estados vão ser igualmente atacados. A Bélgica, a Espanha, a Itália, talvez mesmo a França, poderão ser as próximas vítimas, o que obrigaria a União a mudar de política, quer os seus líderes queiram quer não.

E é então que se abrirá, para nós - e para as restantes vítimas - uma janela de novas oportunidades, que teremos de estar preparados para aproveitar, E a União Europeia a pôr fim ao ciclo de decadência e a ganhar um novo dinamismo e prestígio na cena internacional.

Um discurso histórico

2. Na sexta-feira passada, o Presidente Barack Obama fez um discurso importante, em Washington, sobre a paz entre Israel e a Palestina, e também sobre as transformações tão inesperadas e decisivas que estão a ocorrer no Magrebe e no universo árabo-muçulmano. Que disse o Presidente de particularmente interessante? Afirmou como prioridade estratégica fundamental, para os Estados Unidos, as reformas democráticas que têm vindo a ser reclamadas, tanto nos Estados do Magrebe como no Oriente Médio.

Significa isto - note-se - uma viragem de 180 graus na política dos Estados Unidos relativamente aos países da costa sul do Mediterrâneo e do mar Vermelho, região, até agora, particularmente crítica, em função das ditaduras e das teocracias existentes. "Teremos a oportunidade de demonstrar - disse o Presidente - que os valores americanos estão mais próximos do vendedor ambulante de Tunes (referiu-se ao tunisino que se imolou pelo fogo, em defesa da liberdade) do que do poder descarnado dos ditadores." Realmente, Barack Obama teve, desde o início das manifestações e revoltas pacíficas ocorridas na Região, a percepção da importância do fenómeno político novo que está em curso e da necessidade de o apoiar. Nesse sentido, uma vez mais, adiantou-se aos europeus, que só reagiram a posteriori e nem sempre bem.

Veja-se como a questão da Líbia se tem arrastado, sem resultado à vista, apesar da intervenção (pouco feliz) da NATO. Desde há dias que ninguém sabe o que é feito de Kadafi e a mortandade, nos dois sentidos, continua.

Na Síria, outro país-chave da Região, tem havido uma repressão das mais sangrentas, apoiada pela Rússia e dirigida pelo ditador, filho de ditador, Bachar al-Assad. Por seu lado, o Presidente Obama limitou-se a uma frase tipo ultimato: "Bachar al-Assad ou apoia o movimento reformista democrático, que se manifesta nas ruas e praças do seu país, ou terá que desaparecer." Ora, até agora, não aconteceu uma nem outra coisa...

Contudo, o mais importante do discurso de Barack Obama, do meu ponto de vista, foi a tentativa, por o Presidente anunciada, de relançar o processo de paz entre Israel e a Palestina, na véspera da chegada a Washington do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyhu. Em que consiste esse plano? No regresso às fronteiras existentes antes da guerra dos seis dias, de 1967. Como se esperava, Netanyahu recusou, frontalmente, na Casa Branca, esse plano, considerado "indefensável"para o Governo de Israel, que está ainda na fase de ver o Hamas como "a versão palestina da Al Qaeda", não podendo, portanto ser parte nas negociações.

O encontro entre Obama e Netanyahu saldou-se num verdadeiro fracasso. Netanyahu conta fazer um discurso no Congresso onde espera ter o apoio dos republicanos do lobby judaico. Não creio que tenha razão porque o mundo - naquela região tão delicada - está a evoluir rapidamente e não vai voltar, creio, aos erros do passado...

A Associação dos Deficientes das Forças Armadas

3. Na semana passada comemorou, com a presença do ministro da Defesa e representantes dos altos comandos dos três ramos das Forças Armadas, o trigésimo sétimo aniversário da sua criação e, ao mesmo tempo, o quinquagésimo aniversário das guerras coloniais, que começaram no ano fatídico de 1961: em Fevereiro, em Angola, e meses depois, em Dezembro, com a perda do chamado Estado Português da Índia, quase sem resistência.

É sintomática esta dupla comemoração, porque as guerras coloniais podiam - e deviam - ter sido evitadas, se não fosse a cegueira política do ditador Salazar. E não foram, apesar de os acontecimentos anti-regime se terem repetido em 1961: Henrique Galvão e o rapto do Santa Maria (baptizado Santa Liberdade); rebelião em Angola (Fevereiro); golpe (frustrado) do ministro da Defesa general Botelho Moniz, ex-salazarista convicto; Programa da Democratização da República (Maio), que me custou - e ao saudoso Acácio Gouveia - seis meses de prisão firme em Caxias; rapto de um avião da TAP, para deitar panfletos democráticos sobre Lisboa, dirigido por Palma Inácio; invasão de Goa, Damão e Diu (Novembro); e, finalmente, a tentativa revolucionária de Beja, chefiada por Humberto Delgado, já no exílio, que correu mal...

O regime salazarista estava, obviamente, no fim, completamente isolado no plano internacional. Mas com fôlego, ainda, para suportar 13 anos de cruentas guerras coloniais, com centenas de mortos e estropiados, para sempre, portugueses e nacionalistas africanos. Uma desgraça que só teve remédio, com a vitória dos "capitães de Abril".

Foi então que se criou a Associação dos Deficientes das Forças Armadas, que festejou agora 37 anos e eles acrescentaram outra efeméride: os 50 anos de "guerras coloniais": em Angola, primeiro; depois na Guiné; e, finalmente, em Moçambique.

Os deficientes podiam estar ressentidos, após a descolonização. Mas não, compreenderam - e muito bem - que também foram "capitães de Abril", a seu modo, porque também contribuíram, pelo seu exemplo, para terminar com as guerras coloniais e poderem confraternizar - como fizeram - com os seus homólogos africanos. Daí a sintomática junção das duas efemérides.

Gostei muito de poder abraçar, uma vez mais, os deficientes das Forças Armadas e de lhes poder manifestar o meu reconhecimento.

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