terça-feira, 10 de julho de 2012

MIGUEL RELVAS, O ALEGADO ILIBADO





Ao saber que Miguel Relvas se declarou “ilibado em toda a linha” na questão que o opôs ao Público, resolvi ler, numa lenta diagonal, a célebre deliberação da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC).

Descobri, entre outras coisas, que a ERC considera que “apresentar uma queixa na ERC ou recorrer aos tribunais não consubstancia uma ameaça sobre o trabalho dos jornalistas.” Não sei se é possível comparar esta asserção com a descoberta do bosão de Higgs, mas sempre me pareceu evidente que uma queixa é uma queixa e uma ameaça é uma ameaça. Logo, ameaçar alguém de que se irá apresentar queixa é, por estranho que possa parecer, uma ameaça. Se, ainda por cima, se verifica que o ameaçador não chega a apresentar queixa, confirmamos que se ficou pela ameaça e não há nada que consubstancie mais uma ameaça do que ser… uma ameaça.

Logo a seguir, a ERC, depois de descobrir que qualquer cidadão pode apresentar queixas a entidades reguladoras ou em tribunais, afirma que “a interpretar-se uma decisão de recorrer à ERC e/ou aos tribunais como uma forma de pressão, ter-se-á de concluir que a mesma é legítima, não podendo ser considerada como condicionadora do trabalho de outrem.” Este passo é tão maravilhoso que não resisto a dividir a sua análise em alíneas:

a) Miguel Relvas não decidiu recorrer a coisa nenhuma; ameaçou recorrer.

b) Como se não fosse já suficiente o espanto, ainda fico a saber que é aceitável, num Estado de Direito, usar entidades reguladoras e tribunais como formas de pressão, o que é equivalente, em termos religiosos, a invocar o nome de Deus em vão, perdoe-se-me a rima.

c) Logo a seguir, ó maravilha das maravilhas!, a ameaça é transformada em “pressão”, que, por usar o santo nome dos tribunais e outras entidades, passa a ser “legítima”.

d) Ora, se a pressão é legítima, não pode ser “considerada como condicionadora do trabalho de outrem.”, como se fosse outro o objectivo de um ministro que tenha ameaçado um jornalista ou como se o facto de uma pressão ser legítima não possa condicionar o trabalho de outrem ou como se o facto de o pressionado não ceder à pressão indique alguma coisa acerca da legitimidade da mesma pressão.

Depois de negar outras afirmações que lhe foram atribuídas, Miguel Relvas reconhece ter declarado a Leonete Botelho, editora de Política do jornal: “a continuar assim, eu vou para os tribunais e para a ERC, faço queixa à ERC. E devo desde já dizer que eu deixo de falar com o Público.” (p. 20)

Na p. 47, a ERC conclui: “Sem prejuízo, reconhece-se que a atuação do ministro nos telefonemas trocados com os responsáveis editoriais, usando de um tom exaltado e ameaçando deixar de falar pessoalmente com o Público, poderá ser objeto de um juízo negativo no plano ético e institucional, o que aqui se assinala, ainda que não caiba à ERC pronunciar-se sobre tal juízo.” (o bold é da minha responsabilidade)

Na impossibilidade de se provar que Miguel Relvas tenha feito ameaças de divulgar informações sobre a vida privada da jornalista Maria José Oliveira, o que, a confirmar-se, seria de extrema gravidade, fica, no mínimo, claro que um ministro exerceu uma pressão mal sucedida sobre um órgão de comunicação social, facto que, independentemente de ser habitual, não deixa de ser absolutamente condenável e seria motivo suficiente para que Miguel Relvas fosse demitido, caso estivéssemos num país civilizado.

Em vez disso, o número 2 do governo, a propósito desta situação, declara que foi “ilibado em toda a linha”, usando impropriamente um termo jurídico acerca da deliberação uma entidade que não tem poderes para ilibar, o que é um erro desculpável para alguém que só tem mais uma cadeira de Direito do que eu, que não fiz nenhuma.

Entretanto, os defensores do governo fingem que tudo se limita a um ataque ao ministro que está a tratar da privatização da RTP, provocando, deste modo, a ira de alguns grupos de comunicação social. Não sou tão ingénuo que veja o negócio das televisões como um mundo impoluto – muito pelo contrário –, mas nada disso é suficiente para ilibar Miguel Relvas, que é, apenas, mais um triste representante do chico-espertismo, essa praxis que usa a lei para justificar actos imorais, independentemente de esses actos assumirem a forma de pressão sobre jornalistas ou de uma licenciatura mais rápida que a própria sombra.

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