quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O BOSQUE EM FLOR




Rui Peralta
I

Na região autónoma do Gorno-Badakshan, na Republica do Tadjiquistão, desenrolam-se forte combates desde o dia 24 de Julho. Zona de terras altas, na parte sudeste do Tadjiquistão, abarca cerca de 45% do território do país. Na década de 90 foi um bastião das forças opositoras ao governo Tajique. As montanhas do Pamir Oriental cobrem a maior parte da província. A população ronda as 220 mil pessoas, não mais do 3% do total da população do Tadjiquistão. O centro administrativo desta região é Khorugh, uma pequena cidade com cerca de 30 mil habitantes. A religião maioritária nesta região é o ismaelismo, uma comunidade de origem xiita, dirigida por Aga Khan, enquanto o Tadjiquistão é de maioria sunita e a língua falada em Gorno-Badakshan é uma variante do persa oriental diferente da do resto do país que fala uma variante do persa ocidental, o tadjique.

Na noite de 21 de Julho o chefe regional do Comité Estatal para a Segurança Nacional, Abdul Názarov, foi assassinado num subúrbio Khorugh. Forças especiais tadjiques foram enviadas para a região e procederam a operações que estão na origem dos recentes combates. Entre 1992 e 1997, Gorno-Badakshan foi palco de uma guerra civil entre as forças da região autónoma aliadas a forças oposicionistas ao governo central e as forças armadas tadjiques. A guerra terminou com um acordo que integrou a guerrilha nas estruturas do Exército e da Segurança Tadjique. Co o tempo a oposição, o Partido do Renascimento Islâmico, foi relegado a uma representação pouco significativa no parlamento. Parte dos guerrilheiros integrados nas estruturas da segurança sofreram uma purga e foram afastados dos centros de decisão. Alguns antigos comandantes reassumiram as suas anteriores posições e dirigem grupos clandestinos que dedicam-se ao contrabando de tabaco como forma de sustento. Em 2010 o governo tadjique tentou controlar estes grupos e produziram-se combates intensos no vale de Rasht.

Do outro lado da fronteira está o Afeganistão, sendo os territórios fronteiriços habitados também por comunidades ismaelitas. A rede filantrópica de Aga Khan contribui para o desenvolvimento dos dois lados da fronteira através de diversos projectos transfronteiriços. Na época do regime Taliban os territórios afegãos fronteiriços a Gorno-Badakshan eram controlados pela Aliança do Norte, pelo que nunca existiu aqui uma infiltração de grupos radicais ou da Al-Qaeda. Por sua vez, em Moscovo, os grupos oposicionistas ao governo tadjique afirmaram numa conferência de imprensa conjunta, que iam constituir uma frente única contra o que denominam o regime tadjique e parece contarem com alguns apoios de Moscovo. Por sua vez Aga Khan tenta manter um perfil não politico nas suas actividades na zona, mas se entre os civis das comunidades ismaelitas os números de vítimas começarem a subir os líderes comunitários vão tomar uma posição que irá reavivar as tensões separatistas, historicamente aliadas aos grupos oposicionistas tadjiques.

A ofensiva lançada no passado dia 24, iniciada por forças especiais do exército tadjique e unidades aerotransportadas, conta já com cerca de um milhar de soldados tadjiques e os combates prosseguem com intensidade. As comunicações foram cortadas pelas forças armadas do Tadjiquistão, mas o exército russo abriu as suas frequências sobre a região, o que permite que os grupos rebeldes utilizem as suas transmissões, furando o bloqueio das forças governamentais tadjiques. Parece que o apoio de Moscovo aos grupos antigovernamentais do Tadjiquistão não fica apenas pela facilidade concedida nas comunicações. Diversas testemunhas afirmam que os russos estão a lançar mantimentos, munições e equipamento através de operações aéreas.

A posição oficial do Kremlin é determinante nesta região. Os oposicionistas ao regime tadjique movimentam-se com alguma facilidade em Moscovo, como ficou patente na conferência de imprensa conjunta na capital russa. O facto de a NATO ter estabelecido um centro operacional regional no Tadjiquistão não foi do agrado do Kremlin. Se os russos vão fazer tremer o regime tadjique e “trazê-lo á razão” ou se apostam na substituição pura e simples, mesmo que isso provoque mais uma zona de desestabilização, é uma questão que poderá ser tirada a limpo nos próximos tempos.

II

Istambul em Agosto é uma cidade vazia. Como muitas outras cidades em Agosto. No dia 1 (estou a escrever a 30 de Julho) Pinar Selek, socióloga turca, activista, vai ser levada novamente perante a justiça. Continua, assim, um processo judicial que prolongou-se pelos últimos 14 anos, desde o dia em que foi acusada de colocar uma bomba no mercado de especiarias de Istambul. Pinar Selek tem problemas com o governo turco desde que, como socióloga, realizou um estudo sobre os militantes curdos do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).

Opositora assumida do governo de Ancara, era conhecida pela sua defesa dos direitos curdos, dos miúdos da rua, das mulheres, dos homossexuais, dos transsexuais, dos sindicalistas, dos desempregados e de tantos outros sectores marginalizados no panorama social e politico turco.

O caso estava encerrado pois Pinar Selek foi acusada com base do testemunho de uma terceira pessoa, obtido sob tortura. Mais tarde a testemunha retratou-se. Encerrado, também, porque os especialistas demonstraram que a explosão não foi causada por qualquer bomba, mas sim por uma botija de gás em serviço numa das bancadas de venda do mercado. E encerrado porque não havia qualquer prova da presença de Pinar no mercado naquele dia. Além disso foi absolvida pelo tribunal das 3 vezes em que foi acusada. Nas 3 ocasiões o Supremo Tribunal inocentou-a, confirmando o veredicto do tribunal onde decorria o processo. No entanto Pinar Selek já havia sido encarcerada e torturada e a sua família acusada.

Neste novo julgamento a Pinar a liberdade de imprensa, de expressão, de investigação e de associação são os réus. No mesmo banco sentam-se, também, os curdos, as mulheres, os trabalhadores, os desempregados, a homossexualidade, o direito á diferença, os menores que vivem nas ruas, enfim, os excluídos. Será esta a Turquia que querem na União Europeia?

III

Os curdos são uma antiga cultura indo-europeia que se estabeleceu na região montanhosa da eurásia conhecida por Meseta do Curdistão, desde 2500 A.C. Actualmente com uma população estimada entre 40 a 60 milhões de pessoas, os curdos resistiram aos embates coloniais de diversos impérios. Os seus problemas actuais geraram-se na I Guerra Mundial. Os países europeus dividiram toda a região em novos estados nacionais. Pelo Tratado de Sévres aos curdos correspondeu um determinado território, menos de 1/3 da sua área habitada, para a fundação do estado nacional curdo. Mas a Turquia, debaixo da direcçäo dos nacionalistas turcos de Kemal Ataturk, deixaram de fora o povo curdo e o tratado foi arrecadado na gaveta.

Na actualidade a sua população encontra-se a viver dentro de 4 estados: Turquia, Síria, Iraque e Irão, sendo na Turquia onde habitam quase metade dos curdos. Entre 1961 e 1970, os curdos residentes no Iraque combateram pela sua autonomia. Em 1978 é fundado o Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK). Em 1980 a resistência curda está em guerra com o governo turco. Em 1985 o governo iraquiano rompe os acordos com os autonomistas curdos e invade a região autónoma. No entanto o líder do PKK, Abdullah Ocalan abandonou a Turquia e refugiou-se em Damasco, pois a Síria ensaiava um modelo de autonomia para as populações curdas, mas a pressão internacional e as discrepâncias politicas entre o PKK e o Baas sírio, levaram-no a sair de Damasco, sendo capturado no Quénia em 1999, numa operação conjunta da CIA com a MOSSAD israelita. O líder do PKK foi entregue ao governo turco e condenado á morte, embora o governo turco ainda não tenha executado a sentença por pressão internacional.

A repressão do governo turco sobre os curdos vai ao ponto de perseguir os deputados e as autoridades locais curdas eleitas. O Partido Curdo para a Paz e Democracia e a União das Comunidades Curdas são partidos legais e reconhecidos pelo Supremo Tribunal turco, elegeram 18 deputados e 35 presidentes de câmara, ou alcaides, mas 8 dos deputados foram presos assim como mais de metade dos alcaides. Entre 1984 e 2002 o estado turco assassinou cerca de 30 mil curdos, arrasou mais de 3 mil vilas e aldeias curdas e foi empurrando as populações turcas para os centros urbanos. A razão desta política turca tem a ver com o facto dos territórios habitados pelos curdos serem ricos em recursos naturais. O petróleo é abundante nestas terras curdas. A Síria e a Turquia autoabastecem-se do que extraem nas respectivas áreas curdas e no Iraque o território curdo proporciona 40% das suas reservas. No Irão a zona curda produz apenas 10% do total de petróleo extraído no país, mas em contrapartida é nessa região que se encontra a maior reserva de gás natural do Irão. As políticas de rapina das transnacionais e dos estados concentram-se assim em espoliar as terras curdas e retirar-lhes os seus direitos.

O objectivo do PKK não é o de construir um estado nacional, que seria o ideal para o capitalismo, mas sim a construção de confederação de comunidades que inclua todo o povo curdo. Preconizam um modelo de organização social assente na autogestão comunal. Cada comunidade está organizada numa Assembleia Popular que por sua vez agrupam-se em federações. Praticam, assim, uma organização social horizonta, autogerida e descentralizada.

Numa recente visita á Venezuela, uma comitiva do PKK observou a experiencia dos Concelhos Comunais neste país e trocou impressões e experiencias com os representantes dos concelhos. Segundo o porta-voz desta comitiva o poder não está nas armas mas sim nas capacidades das populações em fazer valer os seus direitos. Este discurso suscitou alguma surpresa na plateia, pois o PKK nasceu como partido marxista-leninista, a sua bandeira é vermelha com a foice e o martelo e este discurso aproxima-se bastante das propostas anarquistas e libertárias que se fazem ouvir cada vez mais no Ocidente.

A questão não tem só a ver com a influência anarquista e anarco-sindicalista que fez-se sentir até meados do século passado entre os curdos das cidades (Os grandes intelectuais curdos da altura eram anarquistas e os dirigentes sindicais e camponeses curdos assimilaram esta influencia. Um exemplo da capacidade mobilizadora anarquista curda foi a incorporação de uma brigada curda na Coluna Durruti, durante a Guerra civil espanhola). A questão reside mais fundo, na História. É que a organização social curda sempre foi baseada nas tribos, que estabeleciam federações, que por sua vez estabeleciam confederações. A organização tribal praticava a autogestão dos recursos e o autoabastecimento. As redes de trocas eram estabelecidas ao nível das federações. Estas trocavam entre si estabelecendo confederações. Será também esta vertente histórica curda que tem levado a sucessivas visitas de comitivas do PKK á Venezuela e á Bolívia, todas elas inseridas em partilhas de experiencias comuns, sempre centradas nas questões comunitárias e na autogestão dos recursos naturais.

Mas na Turquia a situação agudiza-se. Quando em Junho o primeiro-ministro truco Erdogan visitou a cidade curda do sudeste, Diyarbakir, as lojas fecharam as portas em sinal de protesto. Neste momento nem os partidos islâmicos curdos são receptivos às propostas de Erdogan, que contou com este voto nas últimas eleições turcas. Mas este processo de agudização da “questão Curda” está ligado ao facto de Erdogan e o seu Partido Justiça e Desenvolvimento, abandonarem os planos de reforma que permitiriam uma maior autonomia curda na Turquia (ou, pelo menos, o seu reconhecimento) e que contaram com o apoio dos partidos islâmicos e dos liberais curdos. Os planos de Erdogan para rever a Constituição turca, imposta pela junta militar que governou o país entre 180 e 1983, foram postos na gaveta e a repressão aumentou.

Por sua vez a politica externa turca, que prestou grandes serviços na invasão do Iraque e que mostra-se hiperactiva na queda do “regime sírio” encontra também graves problemas com a “questão curda”. Ancara habituou-se a perseguir os guerrilheiros do PKK até ao Curdistão iraquiano, onde inclusive efectuava bombardeamentos. Parece que vai ter de alargar o seu campo de acçäo e fazer o mesmo no norte da Síria, o que é muito mais complicado, principalmente depois do novo ministro sírio da defesa ter afirmado no seu discurso de tomada de posse que as forças armadas sírias nunca permitirão qualquer acçäo turca em território sírio. Só que o Partido Democrático dos Curdos na Síria (PYD), afiliado ao PKK, fez um acordo com o governo sírio e ocupa agora uma parte importante do noroeste sírio, abrindo mais uma frente de apoio logístico ao PKK e criando mais um pesadelo ao governo turco: a perspectiva de um Curdistão sírio, encostado a um Curdistão iraquiano, junto á fronteira com o Curdistão turco.

E o pesadelo torna-se mais denso quando o PYD, alem de negociar directamente com o governo sírio, estabeleceu um acordo com a oposição síria representada pelo Conselho Nacional Sírio, que estabeleceu um acordo que criou o Organismo Supremo Curdo na Síria (OSC) e que coloca nas mãos do PYD parte importante da linha de abastecimento de armas provenientes da Turquia e dos estados do golfo. É que estas armas não estão sequer a chegar á oposição síria, mas vão directas para o PKK, através dos seus afiliados do PYD. O governo turco tem tentado parar estas linhas de abastecimento e estancar o problema, mas a rede está a funcionar de forma cega e os turcos para resolverem a questão teriam de invadir a Síria, ou criar uma zona tampão em território sírio. Questionado sobre o desvio de armas, munições e equipamentos para o PKK, um responsável curdo do OSC afirmou: “Os árabes combatem e os curdos ganham”.

São agrestes os trilhos do Profeta…

Fontes
Pinar Selek; Loin de chez moi... mais jusqu’où?; Editorial IXe,2012
Pepe Escobar; Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War; Nimble Books, 2007
Pepe Escobar; Obama does Globalistan; Nimble Books, 2009
Miguel Guaglianone; El drama kurdo, una historia de resistência; http://www.rebelion.org
Aliza Marcus; Erdogan contra los kurdos; http://nationalinterest.org
Pepe Escobar; Bienvenidos a la primavera kurda; http://www.atimes.com
http://www.turquieeuropeenne.eu/5291-turquie-affaire-pinar-selek-un-communique-du-git-france.html
El Pais, 19/07/2012; 26/07/2012

Sem comentários:

Mais lidas da semana