domingo, 9 de junho de 2013

A NATO EM CABO VERDE, OU AS SUCESSIVAS MORTES DE AMÍLCAR CABRAL – I

 

Martinho Júnior, Luanda
 
“El África ofrece las características de ser un campo casi virgen para la invasión neocolonial. Se han producido cambios que, en alguna medida, obligaron a los poderes neocoloniales a ceder sus antiguas prerrogativas de carácter absoluto. Pero, cuando los procesos se llevan a cabo ininterrumpidamente, al colonialismo sucede, sin violencia, un neocolonialismo de iguales efectos en cuanto a la dominación económica se refiere. Estados Unidos no tenía colonias en esta región y ahora lucha por penetrar en los antiguos cotos cerrados de sus socios. Se puede asegurar que África constituye, en los planes estratégicos del imperialismo norteamericano su reservorio a largo plazo; sus inversiones actuales sólo tienen importancia en la Unión Sudafricana y comienza su penetración en el Congo, Nigeria y otros países, donde se inicia una violenta competencia (con carácter pacífico hasta ahora) con otros poderes imperialistas”.
 
Curto extracto da Mensagem de Che Guevara aos povos do Mundo, através da Tricontinental.
 
Para quem acompanhou de perto a saga do movimento de libertação em África e a conhece pela prova de coragem e abnegação sem limites que deu exemplo, ou para quem a viveu em plena consciência e continua fiel às suas raízes, à sua nobre identidade, às suas amplas aspirações de ordem estratégica, reconhece hoje que os acontecimentos em África após o fim da descolonização e do “apartheid” correram de feição para o neo colonialismo, para o imperialismo, não se tendo conseguido estabelecer o nexo de continuidade histórica e humana a que os líderes revolucionários de então se propunham.
 
O futuro de África por essa razão permanece adiado, com o continente a viver à margem das grandes transformações que foram entretanto atingindo a Ásia ou a América Latina, pasto dum subdesenvolvimento crónico afectando uma parte importante de sua população, que está condenada a ocupar os últimos escalões dos Índices de Desenvolvimento Humano conforme os relatórios anuais do PNUD .
 
Muitos daqueles que algum dia haviam participado na saga do movimento de libertação contra o colonialismo, apesar da modernidade das organizações politicamente mais enriquecidas, acabaram também por soçobrar, desaparecendo fisicamente, escolhendo, ou sendo obrigados a escolher muitos deles os caminhos contrários aos que antes com tanta coragem haviam trilhado, numa viragem de 180º que reduz ainda mais as possibilidades de independência de muitas das jovens nações.
 
A lógica de Brazzaville, a lógica da segunda coluna do Che em África, a lógica da libertação e do Não Alinhamento, não teve dirigentes para lhe dar continuidade em nenhuma das ex-colónias portuguesas e depois de 1985.
 
No final da Guerra Fria, sensivelmente a partir de 1992, as lógicas do capitalismo globalizante impuseram-se sem alternativas, vestindo as cores geo estratégicas de cada região em que se inseriam os diversos estados libertados do colonialismo e do “apartheid”, mas sem remissão à mercê do neo colonialismo e de suas manipulações.
 
Cabo Verde, um arquipélago bordejando a costa ocidental africana à latitude do Senegal, com um território quase inóspito, mantendo durante a fase final do colonialismo, por muitas décadas, o espectro da fome, da miséria e da migração, tem tido, depois de sua independência, muitas dificuldades em sair da situação de subdesenvolvimento que tem caracterizado o modo de vida do seu povo.
 
Na escala dos Índices de Desenvolvimento Humano do PNUD de 2004, Cabo Verde ocupa a 105ª posição entre os Estados considerados de Desenvolvimento Humano Médio, acima de todas as outras ex-colónias portuguesas, mas ainda muito longe do pelotão dos “mais desenvolvidos”.
 
Apesar da luta de libertação ter ocorrido à sua margem, no território da Guiné Bissau, as mais conscientes elites de Cabo Verde empenharam-se bravamente na refrega e o líder do movimento de vanguarda, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, tornou-se num quadro, num político e num estratega que por mérito próprio e de sua organização se capacitou como um dos maiores expoentes da luta de libertação contra o colonialismo em África, na peugada de Che Guevara.
 
O colonialismo português fez tudo para neutralizar o PAIGC, para além do combate militar directo pela posse do território da Guiné Bissau e, em consequência da existência de correntes minando por dentro a organização de vanguarda, exploradas por processos operativos subtis de inteligência, Amílcar Cabral, o líder carismático e um dos mais notáveis lutadores africanos contra o colonialismo, é assassinado em Janeiro de 1973, precisamente meses antes da Guiné Bissau se proclamar independente.
 
O seu legado filosófico, histórico e humano, a lógica que norteou a sua conduta humanística, estratégica e política, apesar da sua fecunda riqueza intelectual, apesar da sua incomparável militância e do seu supremo sacrifício, não foi contudo aproveitado no post independência, tanto na Guiné Bissau, quanto em Cabo Verde: a sua dimensão de africano, parece ter passado ao lado de seus companheiros de luta, tanto na Guiné Bissau, como em Cabo Verde.
 
Se foi antes da Independência da Guiné e Cabo Verde que Amílcar Cabral desapareceu fisicamente, o seu legado quantas vezes terá entretanto morrido, com a eclosão de tantos e tão manipulados acontecimentos ? …
 
É muito difícil conjecturar o que seriam esses pequenos países se Amílcar Cabral continuasse vivo e desse continuidade à sua obra, tal como é difícil conjecturar como seria sua vida dedicada por inteiro aos povos de Guiné Bissau, Cabo Verde e aos povos africanos duma maneira geral.
 
Amílcar Cabral foi uma personalidade que se aproximava de Che Guevara, pela sua firmeza inquebrantável, pela sua entrega e completa devoção à luta, identificando-se por inteiro com os povos mais sofridos do planeta e isso apesar de divergir em relação ao conceito da necessidade do foco revolucionário.
 
Os movimentos de libertação que lutaram nas colónias portuguesas geograficamente distantes entre si, tiveram uma filosofia e uma coerência contudo que muito contribuíram para o seu dinamismo durante o período de luta contra o colonialismo, mas após as independências as conjunturas internas dos novos países, assim como as conjunturas regionais envolventes, a evolução que o capitalismo foi determinando para a Guerra Fria, foram ditando evoluções distintas de uns em relação aos outros, inclusive em relação aos casos originariamente comuns da Guiné Bissau e Cabo Verde .
 
A Amílcar Cabral perseguia-o a consciência absoluta da premente necessidade de justiça humana, social e política, justiça para todos aqueles que ele ardentemente desejou libertar, mas a gestão de estados fragilizados, minados por velhas querelas, onde impera o subdesenvolvimento, é uma tarefa que não se compadece com a grandeza intelectual e humana de personalidades ao nível dum revolucionário como Amílcar Cabral e não se compadece quando as vanguardas são, ao fim e ao cabo, tão minguadas de quadros de forte consciência e personalidade, incapazes de criarem impactos favoráveis e mobilizadores nas sociedades em que se inserem.
 
Se a Guiné Bissau tem sofrido as vicissitudes de sua ausência, essa falta de paternidade que passa pela falta de consciência de muitos dos seus dirigentes, expressa por vezes em acontecimentos dramáticos, Cabo Verde tem navegado na pobreza e dependência, sem alternativas progressistas significativas visando alterar para melhor as condições de vida do seu Povo e isso apesar do empenho e carácter de alguns dos seus melhores filhos.
 
(Continua)
 
Texto produzido em Junho de 2006.
 
Foto: O emblema do “Steadfast Jaguar 2006”: os jaguares da globalização ensaiaram sua vocação predadora em Cabo Verde entre 1 e 12 de Junho de 2006.
 
Nota: Este texto foi por mim produzido na sequência do Exercício Militar da NATO “Steadfast Jaguar 2006”, que teve lugar em Cabo Verde entre 1 e 12 de Junho de 2006, está a fazer sete anos.
 
Nessa altura tinha a intenção de fazer parte dum conjunto de alertas para o que viria a desencadear-se a seguir: a NATO no Afeganistão, a Líbia, as “primaveras árabes” submissas ao diktat dos interesses ocidentais, o Mali, a crónica Somália, o Iémen, os enredos do Médio Oriente e do petróleo barato, o crescendo do neo colonialismo em África, o AFRICOM, as manipulações só possíveis com as artificiosas ementas do “combate ao tráfico de droga”, “combate à migração clandestina”, “combate à pirataria”, “combate ao terrorismo”… a criação de “frentes mobilizadoras” que dessem possibilidade a “parcerias” que se traduzem nas ingerências a que se passaram a sujeitar as nações africanas na via neo colonial que se começava a estender, por dentro de suas sociedades, como nos enredos regionais e internacionais característicos da globalização capitalista e neoliberal…
 
A independência de bandeira não é a independência de facto.
 
Para a América Latina 200 anos não bastaram para alcançar a independência de facto, nem mesmo com o engenho e a arte histórica da integração, pois o penoso processo de luta continua com avanços e recuos, com recurso à imensa coragem e à consciência rebelde dos seus povos…
 
Para África contudo, uma África minada pelo subdesenvolvimento, sem infra estruturas, com extremamente frágeis identidades nacionais, ocupando a cauda dos Índices de Desenvolvimento Humano, esse processo ainda não tem a energia resoluta das grandes opções e o fim do movimento de libertação contra o colonialismo e o “apartheid” é comprovado por que as burguesias coloniais e as “brancas”, estão a ser sucedidas pelas burguesias negras trabalhadas pela globalização neo liberal na direcção da submissão e da dependência do continente-berço da humanidade!
 
África está à mercê do neo colonialismo, a única forma de relacionamento para que as culturas indexadas ao universo anglo-saxão, aquelas que se subordinam aos tais 1% da humanidade, estão vocacionadas!
 

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