quarta-feira, 30 de julho de 2014

A GUINÉ EQUATORIAL E A BARULHEIRA DE LISBOA


Alberto Castro é correspondente de Afropress em Londres
Alberto Castro – Afropress, em colunistas

A X Cimeira da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), realizada no passado 23 de julho em Díli, capital de Timor-Leste, admitiu por unanimidade a Guiné Equatorial como o nono Estado-membro de pleno direito da organização, culminando assim um processo de dez anos de aproximação ao bloco lusófono pelo único país africano de língua castelhana cujas partes do território, entre os séculos XV e XVIII, pertenceram à Coroa portuguesa.

Um processo nada pacífico, principalmente pela forte oposição à adesão do país de Teodoro Obiang, o homem que o dirige com pulso de ferro há mais de três décadas, por parte de setores da política, imprensa e sociedade civil portuguesa. Os argumentos dos críticos, essencialmente políticos, assentam em temas como a ditadura, corrupção, falta de transparência na governança e violações dos direitos humanos e, entre estes, principalmente a existência da pena de morte no regime de Malabo.

Mas, mesmo perante aquelas fortes e justificadas críticas, o Governo de Lisboa, ainda mergulhado numa grave crise econômico-financeira, foi praticamente forçado pelos demais parceiros da CPLP a aceitar a adesão do que muitos vêem como ''indesejável'' membro na família. Assim não fosse e arriscaria uma situação de isolamento que seria ''muito negativa'', segundo o pragmatismo do primeiro-ministro Passos Coelho.

Não deixou, no entanto, de ser caricata, patética e incoerente o posicionamento do presidente Cavaco Silva. Opositor aberto à adesão, justificou a sua presença na Cimeira da capital timorense com o pretexto, diga-se paternalista e pretensioso, de ''ajudar Timor-Leste para que a mesma fosse um sucesso.'' E numa demonstração de falta de sentido de Estado e tato diplomático comparou, em conferência de imprensa, a situação da Guiné Equatorial com a da Coreia do Norte, desta feita justificando a adesão argumentando que ''o isolacionismo nunca conduziu à democracia e ao respeito pelos direitos humanos''.

Se fosse coerente consigo mesmo, Cavaco Silva teria optado pela ausência na Confêrencia de Díli e permanecido em silêncio no conforto do Palácio de Belém, demonstrando assim a sua reprovação. Foi o que fizeram, em sentido oposto, Dilma Rousseff e José Eduardo dos Santos, apontados como os principais patrocinadores da integração da Guiné Equatorial como membro de pleno direito da CPLP.

Vozes e opiniões indignadas e bem inflamadas de políticos, jornalistas e comentadores contra a adesão encheram páginas de jornais e espaços de comentários nas rádios e TVs portuguesas fustigando o governo luso, particularmente a sua diplomacia, por um desenlace que consideram ser uma autêntica humilhação nacional.

Houve quem sugerisse que Portugal abandonasse de imediato a CPLP e os esquerdistas do Bloco de Esquerda propuseram dois dias depois ao Parlamento um voto que pedia a condenação da entrada do país de Obiang na organização lusófona. O mesmo foi chumbado pela maioria PSD/CDS que apoia o Governo e por parte da bancada Socialista, com abstenções de Comunistas e Verdes.

A Cimeira da cobiça e da desvergonha (I), titula em editorial o jornal Público, um dos mais ferrenhos nas críticas à adesão, na sua edição online de 23 de julho afirmando no primeiro parágrafo que a ''“carteira” de Obiang fala mais alto do que quaisquer outros valores. ''A memória deles pode ser curta, a minha não (II), escreve no mesmo dia e no mesmo jornal a eurodeputada socialista Ana Gomes para quem ''a entrada da Guiné Equatorial presta-se, desde já, a ensombrar a imagem da CPLP. Pois confere um carimbo de respeitabilidade internacional a um regime ditatorial que procura lavar mais, e mais facilmente, no exterior, os proveitos da tirania e da corrupção''. Para o colunista Vasco Pulido Valente, o que aconteceu em Díli foram "merecidos vexames'' (III).

Escreve o articulista que: ''A nós que por aqui andamos a contar tostões não nos faz mal o vexame público do país, que é uma tradição histórica e, pior ainda, um hábito de vida''. E referindo-se ao governo angolano acrescenta: ''Embora obedecer ao Império Britânico seja em princípio menos comprometedor do que obedecer a um bando de cleptocratas”. Mas o colunista acabaria por, no essencial, dar razão ao editorial do Jornal de Angola com o título ''A grandeza da língua'' (IV) no qual aquele diário estatal qualifica certos setores das elites portuguesas com adjetivos como ''preconceituosa”, “incoerente”, “estrábica'', ''ignorante'', ''corrupta e ''soberba''.

Ainda no Público, a colunista Teresa de Sousa questiona dias depois: ''O que anda a fazer a diplomacia portuguesa?''(V). Uma diplomacia que, segundo ela, ''verga-se aos editoriais “ameaçadores” do Jornal de Angola'' e ao Brasil azul (Atlântico Sul), a nova prioridade estratégica prevalecente no Itamaraty, depois do Brasil verde (Amazônia), que visa o fortalecimento das relações Sul-Sul. A colunista sugere que a ''última coisa que passaria pela cabeça de Dilma era ver este objetivo estratégico prejudicado por uma qualquer teimosia de Portugal sobre a questão dos direitos humanos.''

No essencial os argumentos dos críticos são válidos, não apenas do ponto de vista da argumentação meramente política. Credíveis relatos internos e externos mostram que o regime de Obiang choca-se com princípios e valores fundadores da CPLP como o primado da paz, da democracia, dos direitos humanos, da boa governança e da justiça social.

Mas a politização dessas evidências peca por carregar igualmente uma grande dose de cinismo, hipocrisia, paternalismo, suposta superioridade moral e a tentativa de tutela exclusiva de uma língua comum por parte do país de origem da mesma para fins meramente políticos. Uma breve radiografia política à todos os países da CPLP mostraria a olhos nus que os citados princípios e valores são violados e fragilizados diariamente e de forma chocante em todos os espaços lusófonos, sem exceção.

Citando apenas o Brasil, no maior dos lusófonos milhares de brasileiros, na maioria negros e índios, vêem seus direitos de cidadania diariamente violados, suas vidas ceifadas pelo simples ''pecado'' da cor. Raras são as vozes em Portugal que se levantam contra e se indignam.

No que respeita à pena de morte, um dos argumentos mais esgrimidos pelos críticos contra o regime equato-guineense, nunca vi de algum comentador, político ou orgão de imprensa vocalmente contrários a adesão Guiné Equatorial à CPLP, críticas ferozes à consagração da mesma na atual Constituição Federal brasileira.

Embora se aplique apenas em caso de guerra, ela existe e o condenado, em certas situações, pode ser executado sumariamente, sem que seja sequer julgado. Portugal, membro da sinistra OTAN, tem relações de parceria estratégica com os EUA e a China, dois países com pena capital.

No que toca à ditadura, Portugal ainda hoje se ajoelha e suspira por uma parceria estratégica com Angola. No ano passado o Governo de Lisboa apavorou-se quando o poder de Luanda, constantemente retratado em setores da mídia e da política lusa com sendo uma ditadura disfarçada de democracia formal, engavetou a tão desejada parceria estratégica que vinha sendo trabalhada entre os Governos dos dois países.

No que toca a corrupção, transparência e boa governança, nenhum dos Estados-membros da CPLP está em condições de dar lições de moral a outros. Quanto aos banalizados conceitos de democracia e dos direitos humanos, idem.

Estados recentemente saídos de experiências dolorosíssimas de guerras e ditaduras dão os seus primeiros passos na experimentação democrática e deles se exigem comportamentos e práticas que outros vêm experimentando e aperfeiçoando há séculos. Outros, mal consolidaram as suas democracias e já se arrogam ao direito de moralistas, espelhando-se pretensiosamente como modelos a seguir.

Modelos esgotados onde o que na verdade domina é a Televicracia, termo cunhado pelo jornalista e escritor mexicano Jorge Saldaña para explicar a complexidade de uma aberração política onde as mídias se transformaram em ''poderes de facto'' que não resultam dos votos mas que os influenciam, sendo a televisão o núcleo principal desses poderes. Um embuste mediático que nega a democracia em todos os seus conceitos.

A barulheira eurocêntrica que se fez sentir em Lisboa por causa da adesão da Guiné Equatorial revela igualmente uma visão estreita do que deve ser a CPLP, uma amnésia histórica que roça o insulto aos africanos e um desconhecimento do enquadramento do país agora oficialmente trilingue (caso raro) de grande importância geoestratégica nas relações internacionais. Vivemos num mundo globalizado, cada vez mais competitivo e interdependente.

A entrada na lusofonia não pode nem deve ser condicionado apenas à dimensão da língua falada e escrita como muitos defendem. Fazer isso é um exercício de negação fundamentalista do passado e reducionista da história. Assim fosse e os países africanos lusófonos sequer fariam parte da CPLP porque a maioria das suas populações sequer fala e escreve o Português. E quem assim demagogicamente pensa sequer tem dinheiro para manter uma comunidade meramente de afetos.

A dimensão econômica da adesão da Guiné Equatorial deve ser vista como uma vantagem para a CPLP e não reduzida a um mero aproveitamento de petróleo e gás natural que elimina importantes dimensões identitárias da mesma como a histórica e a cultural. Tão pouco deve ser usada para nos mantermos em silêncio e à margem dos atropelos aos nobres valores consagrados estatutáriamente na Comunidade. Sou dos que defendem uma exigência cada vez maior na observância dos mesmos em todos os espaços da lusofonia.

E creio que isso apenas se consegue com uma verdadeira democratização da CPLP como organização verdadeiramente comunitária de bem e não um clube de interesses elitistas e obscuros.

Vejo, por tudo isso, a integração da Guiné Equatorial como um feliz reencontro com a história dos povos da lusofonia e um enorme desafio à própria comunidade que os diz representar. É falacioso defender que a mesma confere um selo de respeitabilidade internacional à ditadura de Obiang. 

A Guiné Equatorial é membro da francofonia e de diversas organizações multilaterais regionais, continentais, intercontinentais e globais. A CPLP é uma organização que mal se firmou no plano internacional e, mais preocupante, mal se afirmou nos espaços da lusofonia onde ainda é praticamente desconhecida. 

A barulheira portuguesa confirmou uma grande verdade: esquecer o passado é correr o risco de deixar desprotegido o futuro. Demonstrou-se  um grande desconhecimento, amnésia histórica e desrespeito pela história de Portugal e dos povos com que no passado privou criando fortes elos identitários comuns.

Foram inquestionavelmente séculos de convivências bem mais violentas do que pacíficas. No entanto, neles se criaram e se fortaleceram laços de identidades histórico-culturais inquebrantáveis que não se reduzem apenas à enorme responsabilidade portuguesa no hediodno comércio e tráfico de escravos.

Assim fosse e a Guiné Equatorial, ao invés da adesão, estaria hoje a instaurar um processo internacional contra Portugal reivindicando justas compensações morais e materiais pelos enormes danos causados pelo horrendo tráfico negreiro.

Nesse quesito os africanos dão uma lição a Portugal ao mostrarem-se, por enquanto, tolerantes para com as páginas mais obscuras da sua história. Isso demonstra, por um lado, a grandeza de alma dos filhos daqueles a quem um dia se tirou a alma para fossem escravizados. Por outro, mostra que apesar de todos os pesares, alguma coisa de bom ficou do relacionamento secular de Portugal com a África.

A visão estreita e a amnésia histórica de parte de inúmeros políticos, comentadores e da generalidade da imprensa em Portugal, ignorantes da sua própria história, fica resumida no parágrafo final do citado editorial do Jornal de Angola: ''Os portugueses têm um grande orgulho na expansão marítima da qual resultou o seu império. Mas agora há países e povos que guardam a memória desse passado comum e querem pertencer à CPLP. Alguns  renegam esse passado e opõem-se ao alargamento da organização. São demasiado pequenos para a grandeza da Língua Portuguesa.''

Perde-se muito tempo e energias com críticas avulsas, mesquinhices, birrinhas e ciumimhos quando o que se deveria fazer era publicitar a CPLP, explicar aos povos da lusofonia o que ela significa e representa, fortalecê-la, torná-la conhecida e visível através de programas de intercâmbios culturais, desportivos, empresariais, políticas de livre circulação para todos no espaço geográfico lusófono etc.

Não tê-la como uma organização que, até agora, em que pese toda a sua validade, tem servido praticamente como instrumento de aproveitamentos políticos, de passeios turísticos e negócios das elites políticas, econômicas e culturais. São os povos, apenas eles, que podem fazer a grande Comunidade da Lusofonia em todas as suas dimensões. Não políticos demagogos, jornalistas e intelectuais vaidosos com agendas próprias.

Por isso há que começar a democratizá-la já dando vez e voz aos seus povos através de iniciativas e instituições como, por exemplo, um Parlamento Lusófono que a possa escrutinar.
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