Carlos
Fino – África 21, colunistas
O
que espanta, em termos jornalísticos, é que uma cadeia com a importância e a
responsabilidade da CNN se preste a atiçar o fogo sem aquele mínimo de
distanciamento que as regras básicas da profissão exigem e o trágico exemplo do
Iraque aconselharia.
Desde
quinta-feira passada, quando foi derrubado o avião da Malaysian Airlines sobre
a Ucrânia e o exército israelita voltou a invadir Gaza, assistimos nos grandes
media ocidentais de impacto global a uma intensa cobertura dos trágicos
acontecimentos sob prismas bem diferenciados.
Enquanto
no caso do avião a nota dominante é a acusação praticamente aberta
de que a responsabilidade – direta ou indireta - é da Rússia, no caso do
conflito do Oriente Médio a posição é bem mais cautelosa, colocando-se em pé de
igualdade Israel e Palestina – como se as duas realidades se equivalessem e não
houvesse de fato entre elas uma total assimetria.
Dois
pesos e duas medidas, portanto, em atitudes praticamente opostas, mas ambas
alinhadas com as respetivas políticas oficiais – de grande agressividade em
relação à Rússia e de grande compreensão em relação a Israel.
No
estilo sóbrio que lhe é próprio, a BBC, sem deixar de seguir de uma forma geral
essas orientações, tem sido mais discreta; mas a CNN assume-se abertamente como
a defensora dos interesses americanos, transformando os seus blocos noticiosos
numa quase incessante reunião de estado-maior, em que se analisam as medidas
que o país deve tomar.
Medidas
bem determinadas, incluindo militares, no caso de resposta à Rússia e
conciliatórias no que respeita a Israel, cuja ofensiva bélica, por mais brutal
que seja, é sempre vista com alguma leniência, enquadrada no inquestionável
direito do Estado judaico se defender.
A
estação de Atlanta tem dedicado horas seguidas em dias consecutivos a
explorar o tema do avião abatido na Ucrânia, sem nunca lembrar que quer os EUA
quer a própria Ucrânia já foram no passado responsáveis por acidentes trágicos
como aquele que agora ocorreu com o avião malaio: em 1988, a marinha
norte-americana abateu no estreito de Ormuz um avião iraniano com 290 pessoas a
bordo e em 2001 o exército ucraniano derrubou um avião russo com 64 passageiros
e 12 tripulantes.
Os
painéis de comentadores que têm sido convocados para debater o tema não
têm tido verdadeiro contraditório e tendem a conferir toda a credibilidade às
informações dos serviços de segurança ucranianos, hoje estreitamente ligados
com os seus homólogos norte-americanos.
Nota
dominante - a avalanche de analistas que consideram já os russos culpados e a
necessidade de tomar rapidamente medidas fortes contra Moscovo - desde sanções
económicas "para doer" até apoio militar ao governo de Kíev. Outra
ideia veiculada nesses debates - a de que este é o momento para a Europa se
juntar à cruzada contra o Kremlin, como querem Washington e os seus mais
próximos aliados. O primeiro ministro britânico deu aliás o tom: "É hora
da Europa mostrar os dentes à Rússia".
A
julgar por estas intervenções, em Washington existe ou está em vias de se
formar um consenso bi-partidário no sentido de aproveitar a tragédia do avião
abatido para intensificar a política de isolamento de Pútin, tentando
aproveitar a comoção gerada pelo acontecimento para levar atrás de si os
até agora relutantes países europeus.
Que
o governo norte-americano o faça, até se compreende. Está no seu papel. O que
espanta, em termos jornalísticos, é que uma cadeia com a importância e a
responsabilidade da CNN se preste a atiçar o fogo sem aquele mínimo de
distanciamento que as regras básicas da profissão exigem e o trágico exemplo do
Iraque aconselharia.
Em
termos substanciais, infelizmente, é pouco provável que a comoção gerada
pelo incidente do avião e pela invasão de Gaza venha a curto prazo alterar as
situações no terreno como alguns, mais otimistas, parecem esperar.
Se
bem conheço a Rússia, o Kremlin não aceitará uma derrota completa das forças
pró-russas na Ucrânia e no caso do avião tenderá a seguir aquela que é a
tradição histórica da burocracia política do país – negar e silenciar. E no
Oriente Médio o impasse prosseguirá, por mais mortos que as cíclicas ofensivas
de Israel provoquem. Enquanto permanecerem as condições opressivas em que vivem
os palestinianos, sempre surgirão forças que se irão rebelar.
Quer
num caso como noutro, os grandes media internacionais desempenhariam entretanto
melhor a sua função se em vez de alinharem com as versões oficiais assumissem
posições mais distanciadas, contribuindo para um debate sério e plural sobre os
diferentes conflitos, na busca de soluções negociadas capazes de garantir a paz
e não provocar a guerra.
*
Carlos Fino, jornalista português, foi enviado especial e correspondente
internacional da RTP - televisão pública portuguesa - em Moscou, Bruxelas e
Washington, e correspondente de guerra em diversos conflitos armados na ex-URSS,
Afeganistão, Albânia, Oriente Médio e Iraque. Foi conselheiro
de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012), cidade onde
atualmente reside.
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