Recuso-me
a acumpliciar-me com esta agressão. O exército israelense não me representa, o
governo ultranacionalista não me representa. Os assentados ilegalmente são meus
inimigos. Eu, judeu brasileiro, digo: ACABEM COM A OCUPAÇÃO!!!
Marcelo
Gruman – Brasil de Fato, opinião
Na
minha adolescência, tive a oportunidade de visitar Israel por duas vezes, ambas
na primeira metade da década de 1990. Era estudante de uma escola judaica da
zona sul da cidade do Rio de Janeiro. As viagens foram organizadas por instituições
sionistas, e tinham por intuito apresentar à juventude diaspórica a realidade
daquele Estado formado após o holocausto judaico da Segunda Guerra
Mundial, e para o qual todo e qualquer judeu tem o direito de “retornar” caso
assim o deseje. Voltar à terra ancestral. Para as organizações sionistas, ainda
que não disposto a deixar a diáspora, todo e qualquer judeu ao redor do mundo
deve conhecer a “terra prometida”, prestar-lhe solidariedade material ou
simbólica, assim como todo muçulmano deve fazer, pelo menos uma vez na vida, a
peregrinação a Meca. Para muitos jovens judeus, a visita a Israel é um rito de
passagem, assim como para outros o destino é a Disneylândia.
A
equivalência de Israel e Disneylândia tem um motivo. A grande maioria dos
jovens não religiosos e sem interesse por questões políticas realizam a viagem
apenas para se divertir. O roteiro é basicamente o mesmo: visita ao Muro das
Lamentações, com direito a fotos em posição hipócrita de reza (já viram ateu
rezando?), ao Museu da Diáspora, ao Museu do Holocausto, às Colinas do Golan,
ao Deserto do Neguev e a experiência de tomar um chá com os beduínos, ir ao Mar
Morto e boiar na água sem fazer esforço por conta da altíssima concentração de
sal, a “vivência” de alguns dias num dos kibutzim ainda existentes em Israel e
uma semana num acampamento militar, onde se tem a oportunidade de atirar com
uma arma de verdade. Além, é claro, da interação com jovens de outros países
hospedados no mesmo local. Para variar, brasileiros e argentinos, esquecendo sua
identidade étnica comum, atualizavam a rivalidade futebolística e travavam uma
guerra particular pelas meninas. Neste quesito, os argentinos davam de goleada,
e os brasileiros ficavam a ver navios.
Minha
memória afetiva das duas viagens não é das mais significativas.
Aparte terconhecido parentes por parte de mãe, a “terra prometida” me
frustrou quando o assunto é a construção de minha identidade judaica. Achei os
israelenses meio grosseiros (dizem que o “sabra”, o israelense “da gema”, é
duro por natureza), a comida é medíocre (o melhor falafel que comi até hoje foi
em Paris...), é tudo muito árido, a sociedade é militarizada, o serviço militar
é compulsório, não existe “excesso de contingente”. A memória construída apenas
sobre o sofrimento começava a me incomodar.
Nossos
guias, jovens talvez dez anos mais velhos do que nós, andavam armados, o
motorista do ônibus andava armado. Um dos nossos passeios foi em Hebron, cidade
da Cisjordânia, em que a estrada era rodeada por telas para contenção das
pedras atiradas pelos palestinos. Em momento algum os guias se referiram àquele
território como “ocupado”, e hoje me envergonho de ter feito parte,
ainda que por poucas horas, deste “finca pé” em território ilegalmente ocupado.
Para piorar, na segunda viagem quebrei a perna jogando basquete e
tive de engessá-la, o que, por outro lado, me liberou da experiência
desagradável de ter de apertar o gatilho de uma arma, exatamente
naquela semana íamos acampar com o exército israelense.
Sei
lá, não me senti tocado por esta realidade, minha fantasia era outra. Não
encontrei minhas raízes no solo desértico do Negev, tampouco na neve das
colinas do Golan. Apesar disso, trouxe na bagagem uma bandeira de Israel, que
coloquei no meu quarto. Muitas vezes meu pai, judeu ateu, não sionista, me
perguntou o porquê daquela bandeira estar ali, e eu não sabia responder. Hoje
eu sei por que ela NÃO DEVERIA estar ali, porque minha identidade
judaica passa pela Europa, pelos vilarejos judaicos descritos nos contos de
Scholem Aleichem, pelo humor judaico característico daquela parte do mundo,
pela comida judaica daquela parte do mundo, pela música klezmer que os judeus
criaram naquela parte do mundo, pelas estórias que meus avós judeus da Polônia
contavam ao redor da mesa da sala nos incontáveis lanches nas tardes
de domingo.
Sou
um judeu da diáspora, com muito orgulho. Na verdade, questiono mesmo este
conceito de “diáspora”. Como bem coloca o antropólogo norte-americano James
Clifford, as culturas diaspóricas não necessitam de uma representação exclusiva
e permanente de um “lar original”. Privilegia-se a multilocalidade dos laços
sociais. Diz ele:
As
conexões transnacionais que ligam as diásporas não precisam estar articuladas
primariamente através de um lar ancestral real ou simbólico (...). Descentradas,
as conexões laterais [transnacionais] podem ser tão importantes quanto aquelas
formadas ao redor de uma teleologia da origem/retorno. E a história
compartilhada de um deslocamento contínuo, do sofrimento, adaptação e
resistência pode ser tão importante quanto a projeção de uma origem específica.
Há
muita confusão quando se trata de definir o que é judaísmo, ou melhor, o que é
a identidade judaica. A partir da criação do Estado de Israel, a identidade
judaica em qualquer parte do mundo passou a associar-se, geográfica e
simbolicamente, àquele território. A diversidade cultural interna ao judaísmo
foi reduzida a um espaço físico que é possível percorrer em algumas horas. A
submissão a um lugar físico é a subestimação da capacidade humana de produzir cultura;
o mesmo ocorre, analogamente, aos que defendem a relação inexorável de negros
fora do continente africano com este continente, como se a cultura passasse
literalmente pelo sangue. O que, diga-se de passagem, só serve aos racialistas
e, por tabela, racistas de plantão. Prefiro a lateralidade de que nos fala
Clifford.
Ser
judeu não é o mesmo que ser israelense, e nem todo israelense é judeu, a
despeito da cidadania de segunda classe exercida por
árabes-israelenses ou por judeus de pele negra discriminados por seus pares
originários da Europa Central, de pele e olhos claros. Daí que o exercício da
identidade judaica não implica, necessariamente, o exercício de defesa de toda
e qualquer posição do Estado de Israel, seja em que campo for.
Muito
desta falsa equivalência é culpa dos próprios judeus da “diáspora”, que se
alinham imediatamente aos ditames das políticas interna e externa israelense,
acríticos, crentes de que tudo que parta do Knesset (o parlamento israelense) é
“bom para os judeus”, amém. Muitos judeus diaspóricos se interessam mais pelo
que acontece no Oriente Médio do que no seu cotidiano. Veja-se, por exemplo, o
número ínfimo de cartas de leitores judeus em jornais de grande circulação,
como O Globo, quando o assunto tratado é a corrupção ou violência endêmica em
nosso país, em comparação às indefectíveis cartas de leitores judeus em defesa
das ações militaristas israelenses nos territórios ocupados. Seria o complexo
de gueto falando mais alto?
Não
preciso de Israel para ser judeu e não acredito que a existência no presente e
no futuro de nós, judeus, dependa da existência de um Estado judeu, argumento
utilizado por muitos que defendem a defesa militar israelense por quaisquer
meios, que justificam o fim. Não aceito a justificativa de que o holocausto
judaico na Segunda Guerra Mundial é o exemplo claro de que apenas um
lar nacional única e exclusivamente judaico seja capaz de proteger a etnia da
extinção.
A
dor vivida pelos judeus, na visão etnocêntrica, reproduzida nas gerações
futuras através de narrativas e monumentos, é incomensurável e acima de
qualquer dor que outro grupo étnico possa ter sofrido, e justifica
qualquer ação que sirva para protegê-los de uma nova tragédia. Certa vez, ouvi
de um sobrevivente de campo de concentração que não há comparação entre o
genocídio judaico e os genocídios praticados atualmente nos países africanos,
por exemplo, em Ruanda, onde tutsis e hutus se digladiaram sob as vistas
grossas das ex-potências coloniais. Como este senhor ousa qualificar o
sofrimento alheio? Será pelo número mágico? Seis milhões? O genial Woody Allen
coloca bem a questão, num diálogo de Desconstruindo Harry (tradução
livre):
-
Você se importa com o Holocausto ou acha que ele não existiu?
-
Não, só eu sei que perdemos seis milhões, mas o mais apavorante é saber que
recordes são feitos para serem quebrados.
O
holocausto judaico não é inexplicável, e não é explicável pela maldade latente
dos alemães. Sem dúvida, o componente antissemita estava presente, mas,
conforme demonstrado por diversos pensadores contemporâneos, dentre os quais
insuspeitos judeus (seriam judeus antissemitas Hannah Arendt, Raul Hilberg e
Zygmunt Bauman?), uma série de características do massacre está relacionada à
Modernidade, à burocratização do Estado e à “industrialização da morte”,
sofrida também por dirigentes políticos, doentes mentais, ciganos, eslavos,
“subversivos” de um modo geral. Práticas sociais genocidas, conforme descritas
pelo sociólogo argentino Daniel Feierstein (outro judeu antissemita?), estão
presentes tanto na Segunda Guerra Mundial quanto durante o Processo
de Reorganização Nacional imposto pela ditadura argentina a partir de 1976.
Genocídio é genocídio, e ponto final.
A
sacralização do genocídio judaico permite ações que vemos atualmente na
televisão, o esmagamento da população palestina em Gaza, transformada em campo
de concentração, isolada do resto do mundo. Destruição da infraestrutura, de
milhares de casas, a morte de centenas de civis, famílias destroçadas, crianças
torturadas em interrogatórios ilegais conforme descrito por advogados
israelenses. Não, não são a exceção, não são o efeito colateral de uma guerra
suja. São vítimas, sim, de práticas sociais genocidas, que visam, no final do
processo, ao aniquilamento físico do grupo.
Recuso-me
a acumpliciar-me com esta agressão. O exército israelense não me representa, o
governo ultranacionalista não me representa. Os assentados ilegalmente são meus
inimigos.
Eu,
judeu brasileiro, digo: ACABEM COM A OCUPAÇÃO!!!
(1)
Marcelo Gruman é antropólogo.
Referências
bibliográficas: CLIFFORD, James. (1997). Diasporas, in Montserrat Guibernau and
John Rex (Eds.) The Ethnicity Reader: Nationalism, Multiculturalism and
Migration, Polity Press, Oxford.
Vídeo:
Tortura de crianças palestinas: https://www.youtube.com/watch?v=z5AkFlAeCHE
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