Criá-lo
foi ato desumano de colonialismo. Extinto, pode dar lugar a Estado
plurinacional e secular, onde judeus e palestinos convivam pacífica e
dignamente
Boaventura
de Sousa Santos – Outras Palavras
Podem
simples cidadãos de todo o mundo organizar-se para propor em todas as
instâncias de jurisdição universal possíveis uma ação popular contra o Estado
de Israel no sentido de ser declarada a sua extinção, enquanto Estado judaico,
não apenas por ao longo da sua existência ter cometido reiteradamente crimes
contra a humanidade, mas sobretudo por a sua própria constituição, enquanto
Estado judaico, constituir um crime contra a humanidade? Podem. E como este
tipo de crime não prescreve, estão a tempo de o fazer. Eis os argumentos e as
soluções para restituir aos judeus e palestinianos e ao mundo em geral a
dignidade que lhes foi roubada por um dos atos mais violentos do colonialismo
europeu no século XX, secundado pelo imperialismo norte-americano e pela má
consciência europeia desde o fim da segunda guerra mundial.
O
termo sionismo designa o movimento que apoia o “regresso” dos judeus à sua
suposta pátria de que também supostamente foram expulsos no século V AC. Há, no
entanto, que distinguir entre sionismo judaico e sionismo cristão. O sionismo
judaico tem origem no antissemitismo que desgraçadamente sempre perseguiu os
judeus na Europa e que viria a culminar no holocausto nazi. O sonho de Theodor
Herzl, judeu austríaco e grande poponente do sionismo, era a criação, não de um
Estado judaico, mas de uma pátria segura para os judeus. O sionismo cristão,
por sua vez, é antissemita, e a ideia de um Estado judaico deveu-se a políticos
britânicos, sionistas e anglicanos devotos, como Lord Shaftesbury, que, acima
de tudo, [1]desejavam ver o seu país livre dos judeus-enquanto-judeus. Eram
tolerados os judeus cristianizados (como Benjamin Disraeli, que chegou a ser
Primeiro Ministro), mas só esses. Esta tolerância estava de acordo com a
profecia cristã de que é destino dos judeus converterem-se ao cristianismo. O
mesmo sentimento se encontra hoje entre os evangélicos norte-americanos, que
apoiam Israel como Estado judaico, bem como a sua desapiedada expansão
colonialista contra os palestinianos, por acreditarem que a redenção total
ocorrerá no fim dos tempos, com a conversão dos judeus na Parusia (o regresso
de Jesus Cristo).
Terá
sido Lord Shaftesbury quem, ainda no século XIX, formulou o pensamento “uma
terra sem povo para um povo sem terra” que ajudaria mais tarde a justificar a
criação do Estado de Israel na Palestina em 1948. E alguns anos mais tarde, foi
outro sionista não judeu (Arthur James Balfour) quem propôs a criação de “uma
pátria para os judeus” na Palestina, sem consultar os povos árabes que
habitavam esse território há mais de mil anos.
“Os
Grandes Poderes” (Áustria, Rússia, França, Inglaterra), lê-se no Memorandum
Balfour de 11 de Agosto de 1919, “estão comprometidos com o Sionismo. E o
Sionismo, correto ou incorreto, bom ou mau, tem as suas raízes em antiquíssimas
tradições, em necessidades atuais e em esperanças futuras, que são bem mais
importantes do que os desejos de 700.000 árabes que neste momento habitam
aquele antigo território”. Urgia, pois, transformar esses árabes em um
não-povo. Em 1948, com o beneplácito dos poderes ocidentais, especialmente da
Inglaterra, foi criado o Estado de Israel numa Palestina povoada de árabes e
10% de judeus imigrantes.
Argumentava-se
então que havia de se encontrar um espaço para o povo judeu, que ninguém queria
receber depois do genocídio alemão. Muito antes dessa catástrofe, os sionistas
judeus tinham já pensado em vários locais para[2] o seu futuro Estado. No final
do século XIX, a região do Uganda, no que é hoje o Quénia, então colónia
inglesa, foi ponderada como um possível local para o futuro Estado de Israel.
Um espaço na Argentina chegou também a ser considerado. Mais tarde, auscultado
sobre um local no norte de África (no que é hoje a Líbia), o rei da Itália,
Victor Emmanuel, terá recusado, respondendo: “Ma è ancora casa di altri”. Mas
nenhum europeu, por mais preocupado com a situação dos judeus, jamais pensou
num lugar dentro da própria Europa. Havia que inventar-se “uma terra sem povo
para um povo sem terra”. Mesmo que fosse necessário obliterar um povo. E assim
se vem paulatinamente eliminando um povo da face da terra desde há sessenta e
seis anos. A Cisjordânia palestiniana vem sendo desmantelada pelos colonatos
ilegais e a Faixa de Gaza transformada em prisão a céu aberto. A
extrema-direita israelita é apenas mais estridente do que o governo ao reclamar
que os “árabes fedorentos de Gaza sejam lançados ao mar”. O que é espantoso,
comenta o historiador judeu israelita, Ilan Pappé em The Ethnic Cleansing
of Palestine (2006), é ver como os judeus, em 1948, há tão pouco tempo expulsos
das suas casas, espoliados dos seus pertences e por fim exterminados,
procederam sem pestanejar à destruição de aldeias palestinianas, com expulsão
dos seus habitantes e massacre daqueles que se recusaram a sair. O controverso
comentário de José Saramago de há alguns anos de que o espírito de Auschwitz se
reproduz em Israel faz hoje mais do que nunca.
Assim
foi sacrificada a Palestina, invocadas razões bíblicas e históricas, que a
Bíblia não sanciona e a história viria a desmistificar. Muitos judeus, como os
que constituem a Jewish Voice for Peace, não são sionistas e consideram que o
Estado de Israel, nas condições em que foi criado (um território, um povo, uma
língua, uma religião) é uma arcaica aberração [3] colonialista fundada no mito
de uma “terra de Israel” e de um “povo judaico”, que a Bíblia nem sequer
confirma. Como bem demonstra, entre outros, o historiador judeu israelita,
Shlomo Sand, a Palestina como a “terra de Israel” é uma invenção recente (The
Invention of the Land of Israel, 2012). Aliás, ainda segundo o mesmo autor,
também o conceito de “povo judaico” é uma invenção recente (The Invention of
the Jewish People, 2009).
A
criação do Estado judaico de Israel configura um crime continuado cujos abismos
mais desumanos se revelam nos dias de hoje. Declarada a sua extinção, os
cidadãos do mundo propõem a criação na Palestina de um Estado secular,
plurinacional e intercultural, onde judeus e palestinianos possam viver
pacifica e dignamente. A dignidade do mundo está hoje hipotecada à dignidade da
convivência entre palestinianos e judeus.
Na
foto: 8/3/2013: Jovem manifestante palestino foge dos guardas de fronteira
israelense, durante confronto contra a expropriação de terras palestinas em Kafr Qaddum
1 comentário:
Nossa, que monte de asneiras.
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