quinta-feira, 7 de agosto de 2014

OS SONHOS DA REPÚBLICA E OS PESADELOS DO IMPÉRIO (2)



Rui Peralta, Luanda (ler texto anterior)

VI - Os USA encontram-se numa encruzilhada. Este é um momento de deslocação do centro financeiro mundial. Os USA mantêm a sua posição dominante, mas perdem terreno para as restantes economias autocentradas (umas tentando ganhar espaço para a sua modernização e desenvolvimento, outras tentando adquirir uma posição hegemónica na economia-mundo). Na tentativa de manter a sua posição, os USA reestruturaram, com os seus aliados europeus, as áreas periféricas, redefinindo fronteiras e politicas locais. O Pacifico adquire preponderância e torna-se um espaço fundamental na nova geoeconomia. Os fluxos financeiros, comerciais e logísticos são profundamente alterados em função deste factor. Mas estas alterações  geoeconómicas implicam  alterações geopolíticas e geoestratégicas e não são matéria exclusiva das dinâmicas externas, reflectindo-se com grande impacto nas dinâmicas internas norte-americanas.

O mundo de hoje é diferente do mundo de finais do século XIX, ou do inicio do século XX, quando os USA, "pela graça de Deus" invadiram as Filipinas, anexando-a. O presidente McKinley alegou, na época, que o Senhor lhe disse que era um dever "educar, civilizar e cristianizar" os Filipinos. A "voz do Senhor" não passava do desejo de construir o Império, de dar seguimento á "vontade de Deus". Esta ideia está expressa em diversos discursos da época, como este do senador Beveridge: "Temos de seguir a lei do nosso sangue e adquirir novos mercados e se necessário novos territórios (...)nos planos superiores do Todo-Poderoso (...)".

O mundo de hoje não é o mesmo desses tempos (nem dos anos 50, da guerra da Coreia, ou das décadas de 60 e 70, da guerra do Vietname, dos bombardeamentos da Indochina, ou dos golpes militares na América Latina) mas as intervenções militares norte-americanas sucedem-se, sempre em nome dos mercados, da liberdade a da democracia e sempre com a "bênção de Deus".  A actual "guerra contra o terrorismo" conta com a habitual bênção divina mas também com a bênção da industria de segurança (altamente lucrativa, mesmo nestes austeros períodos de crise). E permite algo que arrepiaria os antigos colonos dissidentes e os fundadores da nação: o Estado omnipotente e omnipresente (duas qualidades que os norte-americanos apenas admitiam em Deus e no Capital). Novos mercados, novos territórios, mais recursos naturais, parece ser a nova trindade da mitologia fundamentalista norte-americana (o que implica menos liberdade, menos democracia e menos imigrantes).

VII - John Brennan, o actual director da CIA, admitiu que a Agência espiou o Senado norte-americano, em particular a comissão que investiga casos de tortura efectuados pela CIA no Afeganistão, Paquistão e Iraque. A alegação foi feita em Março por membros do Comité do Senado para controlo das agencias de Inteligência, que acusaram a CIA de ter monitorizado os computadores da comissão. O relatório do Senado ainda não foi publicado, mas têm chegado documentos da comissão e declarações de senadores e congressistas a público que dão conta da violação de computadores e escutas telefónicas.

É evidente o mal-estar do poder legislativo para com a CIA, a NSA e a miríade de serviços de inteligência e contra-inteligência que pululam pelos subterrâneos do Estado federal, a começar pelo Departamento de Estado e a acabar nas células clandestinas de grande autonomia de meios e de decisão criadas pela actual administração no quadro da luta antiterrorista e que actuam indiscriminadamente no exterior e no interior. Brennan negou as acusações, mas acabou por ser confrontado com um recente relatório interno da CIA  que comprova as suspeitas do Senado e do Congresso e onde são mencionadas diversas e sucessivas violações levadas a cabo por uma dezena de funcionários da agência. Brenan pediu desculpas aos legisladores, durante um encontro ocorrido na passada semana. Aparentemente continua a contar com o apoio da Casa Branca e com a confiança de Obama ("great confidence in your leadership", são as palavras de Obama), mas dois senadores democratas (Mark Udall, do Colorado e Martin Heinrich, do Novo México, ambos muito próximos a Obama), apelaram á resignação de Brennan.

Esta recente ocorrência é uma entre muitas que  caracterizam  o actual cenário dos direitos cívicos e liberdades individuais nos USA e a outro nível as guerrilhas institucionais instaladas durante a administração Obama. Os poderes reforçados dos serviços de inteligência (processo iniciado na anterior administração Bush, após o 11 de Setembro) correspondem a uma degradação das relações institucionais entre os três Poderes (legislativo, judicial e executivo), acompanhada da consequente degradação das liberdades, direitos e garantias sociais e individuais (logo, monopolizando interesses), situação agravada por uma crise financeira instalada e de longa duração, que paralisa diversas esferas do Estado, que aparenta estar á beira da falência.

A industria norte-americana tem em Detroit a imagem do seu futuro e os trabalhadores da industria (norte-americanos ou imigrantes) vêem nos desempregados de Detroit - outrora uma próspera área industrial - a realidade do seu futuro, despido das fantasias dos discursos eleitoralistas. Por outro lado a vergonhosa e fascizante politica anti-imigração é uma atraente fonte de negócios que cativa os musculados sectores da industria de segurança que vêem na militarização da fronteira um vasto campo de comercialização para os seus freudianos produtos (que constituem uma reprodução das reprimidas fantasias homossexuais e da incontornável sensação de controlo e domínio que esses produtos oferecem ás mentes debilitadas dos funcionários e burocratas da repressão e dos primatas territoriais) e para os bandos de traficantes de mão-de-obra barata, os bandos de tráfico sexual, de tráfico de menores, redes pedófilas e carteis da droga (aliás, todos parceiros na industria de segurança que, conjuntamente com os bandos terroristas, desempenham funções complementares fundamentais para a expansão do negócio). 

Desde meados dos anos 70, a burguesia norte-americana executa uma ofensiva que tem como objectivo aliviar ao máximo os custos de mão-de-obra especializada, visando reduzir os quadros das empresas e modernizarem as suas empresas, para melhor competirem no mercado internacional. A ameaça de desemprego forçou os trabalhadores a aceitarem salários mais baixos e horários de trabalho mais prolongados, para além de reduções de direitos e  nos benefícios contratuais. A administração Reagan foi o braço armado desta ofensiva. Em finais de 80, a GM e outros gigantes  norte-americanos desviam a produção para países onde o custo da mão-de-obra não especializada era irrisória e o dos assalariados (convertidos em contratados) era substancialmente inferior ao dos norte-americanos. 

Claro está que hoje (apesar da taxa de desemprego não ser das mais altas) o rendimento familiar médio é muito baixo, a precariedade das condições de trabalho é norma e a desigualdade social no país regrediu aos níveis anteriores da II Guerra Mundial. O American Dream, a grande utopia capitalista degenerou no pesadelo do Great American Disaster, já fora das utopias e assente no calculismo da realpolitik. Se querem uma imagem dessa nova realidade procurem um postal de Detroit. Não encontram? Pois...passou para segredo de Estado.

VIII - Os povos autóctones da América do Norte foram conduzidos a uma situação de quase extermínio, em tudo similar ás comunidades e nações indígenas do Centro  e do Sul do continente americano, mas por métodos muito diferentes. Enquanto a colonização espanhola fez da violência e do extermínio a regra fundamental do seu domínio, os colonos dissidentes e os seus herdeiros independentistas usaram a violência aberta a titulo excepcional, preferindo assentar o seu domínio na negociação, na trapaça e num misto de "boa vontade" e de "força de dissuasão" (embora existissem massacres, torturas e violações). A subtileza, a manipulação e a mentira fazem parte, desde o inicio, da epopeia do "predestinado" povo da "nação eleita" e da sua "abençoada" democracia, quando se tratou  de excluir da sociedade norte-americana os povos e comunidades indígenas.

Estas técnicas de manipulação do Poder  tornaram-se essenciais para as elites dominantes norte-americanas numa sociedade que assumiu a liberdade de expressão e o direito de reivindicar e de resistir como valores fundamentais. Estes métodos são utilizados num vasto espectro de assuntos internos e externos e são constantemente aperfeiçoados, de forma a contornarem os mecanismos democráticos. O resultado final é uma sociedade alienada, onde a realidade não é percepcionada.

Repare-se na forma como os  "excedentários" são colocados em guetos, (camuflados de bairros miseráveis) nas grandes metrópoles norte-americanas. Quando os guetos revelam-se insuficientes, restam as prisões, privatizadas ou em regime de parceria publico/privada (mais um lucrativo negócio). Nos anos 80, por exemplo, durante a administração Reagan, a população prisional dos USA triplicou e os números mantêm-se elevados até hoje. Uma das razões que levaram a esta situação foi a "drug war", um óptimo exemplo de cruzamento das dinâmicas internas com as externas.

A guerra da droga, internamente, serviu para aliviar a densidade populacional nos guetos, enchendo as prisões (e os bolsos dos investidores no negócio prisional). No plano externo é um dos principais instrumentos de ingerência dos USA na América Latina, Ásia e África. O "negócio das prisões privadas" é alimentado por grandes campanhas como a "drug war" ou pela introdução de leis mais duras e alterações que aumentem a gravidade de algumas penas. Nomes sonantes das finanças, como a Goldman Sachs, do sector da construção, ou dos grandes consórcios de advogados, multinacionais da industria de armamento e da industria da segurança entre outros, competem entre si para financiarem a construção de edifícios prisionais e pela aquisição de títulos bolsistas do sector.

Democracia, mercados e Direitos Humanos são abalroados pelas elites económicas e financeiras dos USA. O mercado livre, uma das bíblias sagradas dos "predestinados", é uma mistificação criada pelas ultra proteccionistas  elites do centro financeiro mundial (os USA). Mercado livre implica resolução dar assimetrias entre os mercados, apresentando-se todos os mercados (e as forças que os compõem) em condições de igualdade de oportunidades, de molde a permitir que as potencialidades inerentes a cada mercado possam surgir nas relações de troca e não secundarizadas e artificialmente desvalorizadas. Ora isso implicaria uma subversão do actual esquema (hegemonizado pelos USA) centro/periferias, pilar do  domínio das relações capitalistas no mercado mundial (a começar pelos mercados locais, nacionais - não é o Estado Nação a grande incubadora do capitalismo? - e regionais).   Desde muito cedo os USA transformaram-se numa enorme manjedoura proteccionista, sob a aparência do mercado livre e do comércio livre (e sob os escombros destas instituições, impedidas de funcionar pelo colonialismo britânico e mortas à nascença pela burguesia norte-americana, que via nelas um perigoso instrumento de nivelarão social, que conduziria á democratização económica, o que ficava muito além do permitido pela burguesia oligopólios norte-americana, que apenas previra a democracia politica).Após a independência os norte-americanos iniciaram politicas de desenvolvimento, alicerçadas na protecção e na subsidiarização, nos têxteis. Mais tarde essas politicas foram alargadas ao aço, siderurgia, industrias transformadoras e caminhos-de-ferro. O âmbito proteccionista alargou-se ao sector extractivo e energético e desde a II Guerra Mundial foram canalizados subsídios públicos para todos os sectores avançados da industria (aeronáutica, metalurgia, farmacêutica, electrónica, foram os sectores que mais subsídios receberam e que gozaram de maior protecção.

A administração Reagan (que fez do free market e do free trade baluartes de campanha) aumentou, em 1983, a participação do Estado no PIB em mais de 35%  (um aumento superior a 1/3 em relação á década anterior) através de despesas militares. Um dos seus inúmeros projectos foi a "Guerra das Estrelas", vendida á opinião pública  como programa de defesa, mas publicitado nos meios empresariais como um subsidio público ás empresas que apostarem na tecnologia de ponta. A utilização de dinheiros para subsidiar o sector privado impediu o fim da industria automóvel norte-americana e do aço (que desde então arrastam-se á custa das contribuições públicas), completamente ultrapassados (em qualidade, preço e inovação) pela industria japonesa da década de 80. De forma hipócrita, James Baker, o Secretário do Tesouro na administração Reagan, afirmava, numa reunião com homens de negócios que o governo de Reagan "aliviou a pressão das importações sobre a industria norte-americana, mais do que qualquer das administrações  antecessoras".

De facto as restrições ás importações duplicaram. A administração Reagan especializou-se em técnicas de "comércio manobrado", que restringe o comércio e estreita a porta dos mercados. Estas insidiosas formas de proteccionismo fazem subir os preços, reduzem a concorrência e reforçam a cartelização. Os cidadãos norte-americanos, devido ao proteccionismo, são obrigados a subsidiar o sector privado nacional e consomem a preços mais elevados (e produtos de pior qualidade). O mercado livre e o comércio livre, bases fundamentais dos USA e bíblia sagrada do capitalismo, são, efectivamente, factores mitológicos, adorados na teoria e vendidos como ícones, mas, na prática, considerados demoníacos pelas elites, que em seu lugar praticam a proteccionista lei do funil que reza a máxima: o largo para mim, o estreito para os outros.

É que o "free market" e o "free trade" só podem ser praticados por Homens livres e iguais, em sociedades livres e igualitárias, num mundo solidário e assimétrico. No fundo são valores que o capitalismo abomina, ao ponto de os mistificar. Para inimigos basta Satanás no inferno e o fantasma do comunismo na terra...Mesmo nas suas versões pós-modernas, em que Deus morreu (logo também o seu inverso) e o fantasma do comunismo foi consumido na tragicomédia do "socialismo real" (a grande manipulação que eternizou as algemas e os açaimes colocados ao proletariado) em que a alienação tomou conta da realidade e onde o Homem é, simultaneamente, recurso e mercadoria (mas não humano), o "free market é o grande coveiro do capitalismo.

Por isso Estado e Capital colocaram-no fechado no grande cemitério em que transformaram a economia-mundo.

(Continua)

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