Preocupado
com as repercussões eleitorais, para o seu partido, da grave crise da água em São Paulo e na tentativa
de desqualificar qualquer crítica a seu governo em relação ao tema, o
governador Geraldo Alckmin enviou uma “dura”
carta ao secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, queixando-se das
análises e condutas da relatora especial da ONU para o direito à água, Catarina de
Albuquerque, que visitou o Brasil em missão oficial no final do ano passado.
Alckmin
questiona declarações feitas pela relatora à Folha de S. Paulo, em agosto deste ano, ocasião na qual
esteve novamente no país, em visita não oficial, a convite da Associação
Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), da Frente Nacional
pelo Saneamento Ambiental e de outras instituições, para participar de debates
e aulas sobre o tema de sua especialidade – o direito humano à água.
Irritado
com as posições da relatora, que questiona a atuação da Sabesp em relação à
garantia deste direito para a população de São Paulo, o governador reclama que
ela não conversou com a empresa em agosto para ouvir seus argumentos e que
incorreu em grave erro ao dizer que as perdas de água em São Paulo são de 40% (e
não de 31,2%!, depois corrigido pelo jornal, que reconheceu o erro do
jornalista), e ainda afirma que a ONU não pode se manifestar em momentos
eleitorais.
Tive
a oportunidade de conhecer Catarina de Albuquerque, jurista portuguesa, durante
meus dois mandatos como relatora da ONU para o direito à moradia, concluídos em
junho deste ano. Neste período pude atestar a seriedade e independência com que
Catarina desenvolve seu trabalho. Infelizmente, o governador Geraldo Alckmin
demonstra que não conhece o papel de um relator especial, nem o funcionamento
do sistema de procedimentos especiais, ao qual as relatorias da ONU estão
vinculadas, nem muito menos o “código de conduta” que acusa Catarina
Albuquerque de ter violado.
Ao
enviar carta ao secretário-geral Ban Ki-moon, Alckmin ignora que a relatora não
é funcionária da ONU e que não responde, portanto, ao seu comando central. Os
relatores são especialistas eleitos pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU
para desenvolver um trabalho com total independência, visitando países e
realizando pesquisas temáticas na sua área de atuação. Esse trabalho é então
apresentado ao Conselho de Direitos Humanos ou à Assembleia Geral, a partir de
relatórios que trazem análises e recomendações.
Além
disso, a relação entre o Conselho de Direitos Humanos e os países se dá por
meio da representação diplomática dos países junto aos escritórios da ONU em
Genebra ou em Nova York.
O Estado de São Paulo não é um Estado Membro da ONU. Ao se
dirigir diretamente ao órgão, o governador parece também ignorar as atribuições
de cada instância de governo em sua relação com a ONU.
Quando
da realização de sua visita oficial, em dezembro de 2013, Catarina cumpriu
todos os requisitos exigidos: reuniu-se com órgãos governamentais das cidades
que visitou, ouviu dirigentes de empresas de abastecimento de água e
saneamento, inclusive a Sabesp, visitou municípios em diversos estados e
escutou também representantes da sociedade civil. Só depois disso dirigiu-se à
imprensa. Quando retornou ao país em agosto, concedeu entrevista à Folha, que
queria comentar o seu relatório oficial, já então divulgado publicamente.
Evidentemente, como a qualquer membro da imprensa, interessava ao jornalista
relacionar o relatório (elaborado antes do colapso da água em São Paulo ) à crise, assunto
“quente” do momento.
A
maior parte do conteúdo da entrevista é uma explicação, em termos mais diretos,
do conteúdo de seu relatório oficial. O relatório, aliás, já apontava perigos
de desabastecimento de água no país, citando dados da Agência Nacional de Águas
(ANA), assim como a inadequação de posturas como a da Sabesp de não fornecer
serviços de abastecimento de água e de saneamento em assentamentos informais.
De acordo com o marco internacional dos direitos humanos, referência a partir
da qual a relatora deve avaliar as situações que analisa, se o abastecimento de
água é um direito humano, estamos diante, sim, da uma violação de um direito.
Na
entrevista à Folha, Catarina afirma que o governo do Estado viola o direito
humano à água ao priorizar a distribuição de recursos entre os acionistas da
Sabesp – que tem capital aberto na bolsa de valores – em detrimento dos
investimentos necessários à garantia de abastecimento de água para consumo
atual e futuro da população. Isso deve ser prioridade em relação aos demais
usos da água (industrial, agrícola, turismo), questão que ela também levanta em
seu relatório oficial.
Finalmente,
exatamente por ser independente, um relator não pode deixar de se manifestar
“em função de uma conjuntura eleitoral”, como quer o governador, sob pena de, aí
sim, pautar sua postura por cálculos eleitorais e não pelo marco dos direitos
humanos, que devem ser cumpridos sempre: antes, durante, depois e – sobretudo –
independentemente de eleições.
A
tática “shoot the messenger” (mate o mensageiro) é velha conhecida dos
relatores independentes: quando um governo não gosta das críticas que ouviu,
procura desqualificar quem as formulou.
Infelizmente,
para o governador, o tiro saiu pela culatra. Ao tentar desqualificar Catarina,
sua atitude apenas chama mais atenção para um tema fundamental no debate
público eleitoral deste momento: qual é a responsabilidade do Estado em relação
aos direitos humanos dos cidadãos, dos quais o direito à água faz parte? A
primazia da lógica de mercado na gestão de empresas que oferecem serviços
públicos, como a Sabesp, permite a garantia de direitos? A proposta do não
controle do Estado sobre os preços dos serviços públicos em geral – como a que
defende o PSDB – pode garantir os direitos da população de acesso a estes
serviços?
No
debate eleitoral sobre a crise da água, a competência em fazer ou deixar de
fazer obras é muito menos relevante do que esta questão de fundo: o papel do
Estado na garantia de direitos. Questão que, claramente, também divide as
propostas dos candidatos à presidência em campos opostos.
*
Arquiteta e urbanista especializada em planejamento e gestão da terra urbana. É
professora da FAUUSP e Relatora Especial para o Direito à Moradia do Conselho
de Direitos Humanos da ONU. Foi diretora de Planejamento da Cidade de São Paulo
(1989-1992), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades
(2003-2007), e Coordenadora de Urbanismo do Instituto Pólis (1997-2002).
Prestou consultoria a governos, organizações não governamentais e agências
internacionais, como UN-Habitat, em política urbana e habitacional. É autora
dos livros “A Cidade e a Lei” e “O que é Cidade”, além de vários artigos e
publicações sobre a questão urbana. Colabora com o portal Yahoo, onde tem uma
coluna quinzenal, e mantém o blog da Raquel Rolnik, onde escreve regularmente
sobre questões urbanas.
Habitat, em Yahoo
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