quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Filme confronta Indonésia com passado sangrento e a nós com a banalidade do mal



Carlos Fino – África 21, opinião

Perante realidade tão estranha, há um momento em que somos tentados a atribuir ao outro – no caso, o asiático – a origem do problema. Mas é o próprio Joshua Oppenheimer quem nos alerta, em entrevista, que o horror foi estimulado e apoiado pelo ocidente. Todos somos, portanto, responsáveis.

Realizado em 2012, candidato a um Óscar de melhor documentário e premiado em vários festivais internacionais, o filme The Act of Killing (O Acto de Matar), do norte-americano Joshua Oppenheimer, começa agora a ser largamente visto no mundo inteiro e está a provocar na Indonésia um movimento de revisão do seu passado sangrento.

Os factos remontam aos anos 1965-1966, quando o então presidente Sukarno, líder anti-colonialista e inspirador do movimento dos não-alinhados, foi afastado por um golpe militar apoiado pelos Estados Unidos.

Seguiu-se uma violenta onda de repressão em larga escala que levou, em menos de um ano, ao assassinato sumário de mais de um milhão de pessoas – membros do partido comunista, sindicalistas, professores, intelectuais, chineses, javaneses... -  acusadas de participarem ou serem coniventes com uma tentativa (real ou imaginária?) de instaurar no país um regime comunista.

O instrumento desse genocídio foi um corpo para-militar transformado em esquadrão da morte, que recorria aos "serviços" dos elementos sociais mais desclassificados.

O filme mostra-nos um desses torcionários – Anwar Congo - que juntamente com alguns parceiros seus descreve sem aparente remorso a forma como procediam às execuções.

A nova ordem que desde então e até hoje prevalece no país não só nunca questionou esse período sangrento como consagrou até como heróis os assassinos.

Tudo com a conivência cúmplice dos media, com jornalistas confessando terem falsificado os factos para justificar a repressão e órgãos de impacto nacional como a televisão pública acolhendo entre sorrisos e entrevistando em prime time os criminosos, que admitem os assassinatos como se fosse tudo muito natural.

Só no final, depois de ter assumido no cenário o lugar das suas próprias vítimas, é que o assassino confesso esboça um início de arrependimento.

Na Indonésia, apesar de alguma resistência das autoridades, o filme levou a que, pela primeira vez desde os anos 60, as pessoas começassem a interrogar-se sobre a legitimidade do golpe e do genocídio que se seguiu.

O filme – que oscila entre o documentário e a ficção surreal - é perturbador porque recusa a condenação à priori, dá voz aos criminosos e assim fazendo confronta-nos com a aparente banalidade do mal.

Perante realidade tão estranha, há um momento em que somos tentados a atribuir ao outro – no caso, o asiático – a origem do problema. Mas é o próprio Joshua Oppenheimer quem nos alerta, em entrevista, que o horror foi estimulado e apoiado pelo ocidente. Todos somos, portanto, responsáveis.

Quer isso dizer que não há salvação? O filme não chega a ser tão pessimista.

O esboço de arrependimento final – sincero ou encenado, nunca saberemos – resgata-nos para a possibilidade de um sentido de humanidade universal e intrínseco, em que o mal é radicalmente condenado, independentemente quem o pratique e de ser ou não legitimado pela correlação de forças dominante neste ou naquele momento.

Ver mais sobre este tema:
1.     http://www.theguardian.com/film/2013/jun/20/joshua-oppenheimer-act-of-killing
2.     https://www.youtube.com/watch?v=hHGbb64YxAk
3.     https://www.youtube.com/watch?v=Q3FcB1UZHlg&feature=share

* Carlos Fino, jornalista português, foi enviado especial e correspondente internacional da RTP - televisão pública portuguesa - em Moscou, Bruxelas e Washington, e correspondente de guerra em diversos conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão,  Albânia, Oriente Médio e Iraque.  Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012), cidade onde atualmente reside.

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