sábado, 18 de outubro de 2014

HISTÓRIAS DO FUTURO (1)



Outono em Madrid

Rui Peralta, Luanda

I - A vida mudou muito depois do Grande Colapso. Não que três quartos da população de Madrid tivessem uma vida pacata, um bom emprego e essas coisas, antes do Grande Colapso. Muitos nunca tiveram um emprego na vida e sempre viveram de subsídios, enquanto os houve. Depois de 2016 os subsídios acabaram e passaram a viver de serviços prestados, ou dos contratos diários, fazendo pequenos trabalhos não qualificados e mal remunerados, onde e quando apareciam, até ao Grande Colapso.

Após o Grande Colapso, os monopólios tomaram conta da vida pública. Consórcios formados para o efeito geriam cidades, regiões, nações…O aparelho estatal continuava a existir, em termos de administração central e local, mas tinham o funcionamento de Conselhos de Administração. Os partidos políticos na U.E. foram reduzidos a dois: O Partido Europeu Democrático e o Partido da Europa Livre, ambos compostos por gestores assalariados dos monopólios que assumiam, em função dos interesses dos seus patrões, os cargos relacionados com a vida pública. Havia eleições e diversos actos eleitorais, mas apenas para eleger os órgãos locais regionais e autárquicos, votando somente os que pagavam impostos, ou tinham caderneta fiscal. Em Madrid não passavam de duzentos e cinquenta mil, mais ou menos, o resto, porque não tinha emprego ou não tinham rendimentos fixos mínimos, estava impedido de votar (curioso principio: quem não trabalha, não vota).

Havia, é claro, outros partidos e organizações, mas eram clandestinos ou, em raras excepções, semilegais, podendo realizar meetings, marchas pacíficas, protestos, campanhas, mas impedidos de concorrer no processo eleitoral. As confederações sindicais e outras organizações de assalariados foram empurradas para esta situação. Não era proibido ser membro de sindicatos, mas era proibido fazer greve.

Nas empresas, os trabalhadores são constantemente avaliados, não apenas pelo seu desempenho e nível de produtividade, como também pelo grau de satisfação no trabalho e na sociedade. Os técnicos de Recursos Humanos (conhecidos por RH) detêm o completo controlo da vida dos trabalhadores e deles, dos RH, depende a permanência no posto de trabalho.

II - Tipos letrados, bem formados e profundamente canalhas, não vivem do ar nem do bom comportamento e este é o perfil dos que compõem os núcleos dedicados á prática de pirataria. Assaltam lojas, bancos, armazéns e laboratórios, pilham os transportes de mercadorias, são hackers, roubam viaturas e são raptores. Mantêm contactos estreitos com grupos de nómadas, o que permite-lhes uma maior mobilidade e uma melhor informação do que se passa no mundo.

Nos abrigos, além do colchão para descansar, só existe um portátil miniatura, uma pequena biblioteca e um imenso arsenal, com todo o tipo de armas e respectivas munições. E quando digo todo o tipo de armas é porque assim o é: desde o simples taser até pequenos drones, adquiridos pelos nómadas, no Médio Oriente e no Cazaquistão, passando por metralhadoras, armas automáticas, explosivos, lança-mísseis portáteis, etc. Basta haver uma cave ou antiga adega nas imediações do abrigo.

Já agora aproveito para exemplificar melhor este conceito de abrigo. Quando as primeiras vagas de desemprego começaram a prolongar-se, foram muitos os que ficaram sem casa. Surgiram movimentos diversos, alguns dos quais ocupavam residências em construção ou desabitadas. Este movimento foi crescendo através dos decénios e após o Grande Colapso, os monopólios passaram a gerir apenas partes das cidades, as áreas que podiam ser utilizadas no mercado da habitação. As cidades tornaram-se demasiado amplas, para o número real de habitantes (segundo o conceito dos monopólios, habitantes eram os que votavam e pagavam impostos, logo podiam pagar renda, ou comprar casa, pagando os empréstimos, sendo os restantes uns meros indigentes).

No caso de Madrid, dois terços da cidade caiu em mãos dos “indigentes”. As áreas residenciais desabitadas tornaram-se abrigos. De início esta ocupação era organizada, mas aos poucos os gangues, os senhores da guerra e outros bandos, começaram a controlar imensas áreas. Como resultado, grande parte das populações urbanas caíram em mão dos bandos armados, exceptuando nómadas e piratas. Os nómadas porque nunca paravam muito num sítio e os piratas porque estabeleciam comunidades autogeridas e possuidoras de grandes meios defensivos.

Os bandos, com o tempo, aprenderam a afastar-se das áreas piratas e a evitar os nómadas que, por sua vez, aproveitaram a sua superioridade militar e tecnológica e implantaram, no terreno, Zonas Autónomas. Os territórios administrados pelos monopólios, demasiado enfraquecidos para ingerirem-se nos assuntos das Zonas Autónomas, ignoram-nas e os bandos armados, evitam-nas a todo o custo, pois naqueles territórios foram dizimados bandos inteiros e desmantelados enormes consórcios de gangues como os russos e brasileiros da Kremlin Karioka, os chineses da Casa Amarela, os sul-africanos da Black Klan, e os hindus da Hindu World (Gangues BRICS, que negoceiam directamente com os monopólios generalizados e com o actual poder europeu), ou o consórcio colombiano da Casa de Narquino, que apoderou-se de grande parte do território português a sul do Tejo e de vastas áreas da Andaluzia.

Aqui em Madrid, as Zonas Autónomas são formadas por quatro Republicas e seis núcleos piratas (os núcleos piratas dominam bairros, enquanto as Republicas dominam distritos. Por sua vez os núcleos podem ser Ilhas, Sovietes, núcleos ou apenas pontos logísticos). A maior é a Republica Verde de Fuencarral-El Pardo, um enclave verde e socialista libertário. Depois tem a Republica de Vicálvaro, anarco-comunista, a Republica Livre de Hortaleza, zona de trabalho-zero, ponto de encontro dos nómadas que a transformam num grande mercado alternativo e por fim a Republica Sindical-Comunista de Vilaverde, um enclave anarco-sindicalista. Existem, ainda o Soviete de Numancia, no Distrito de Puente de Vallecas, o núcleo pirata de Goya, no distrito de Salamanca, o núcleo pirata de Jerónimos, no distrito de Retiro, o Soviete de Legazpi, em Arganzuela, o núcleo pirata de Ciudad Jardin e o Soviete Hispanoamérica, ambos em Chamartin.

A vida nas Republicas é melhor, uma vez que estão bem protegidas e não sofrem a constante pressão dos monopólios, como acontece nos núcleos. Daí os núcleos não serem habitados por crianças, velhos, doentes e mulheres grávidas. Estes são grupos que residem nas zonas autónomas. O limite de idade mínima nos núcleos é de dezassete anos e a idade máxima de sessenta anos. Os que atingem esta idade são transferidos para uma das Republicas.  

Os monopólios dominam o Centro, Arganzuela (excepto Legazpi, um Soviete), Retiro (excepto Jerónimos, uma ilha pirata), Salamanca (excepto Goya, uma ilha pirata), Chamartin (excepto Ciudad Jardin um núcleo pirata e Hispanoamérica, um Soviete), Tetuan, Moncloa-Aravaca, Latina, Carabanchel, Usera, Puente de Vallecas (menos Numancia, um Soviete), Moratalaz, Ciudad Lineal, parte de Villa Vallecas (território reclamado pelos bandos BRICS), San Blas e parte de Barajas (apenas a área do aeroporto e do Casco Histórico, sendo o resto dominado pelos colombianos da Casa de Narquino e pelos senegaleses de Omar Kaita, um capo do ramo nigeriano da Black Klan, sul-africana).

III - Em algumas zonas do mundo a situação não é tão pacífica como em Madrid. Na Península Ibérica, a Andaluzia e o Algarve vivem momentos de extrema conflitualidade. Os monopólios tentam dominar as áreas dos bandos e as Zonas Autónomas vivem numa situação de guerra permanente entre uns e outros. Nestas situações surgem sempre alianças provisórias, realizadas em função de objectivos imediatos. No resto da União Europeia a situação é idêntica á de Madrid, uma situação caracterizada pela erradicação e perda de influência dos gangues, por debilidades estruturais dos monopólios e dificuldades económicas nas áreas por eles controladas, militarmente debilitados, embora possuidores de uma grande tecnologia bélica. As Zonas Autónomas aproveitam o enfraquecimento dos seus dois arqui-inimigos e reforçam-se.

Na Confederação das Comunidades Independentes as coisas não variam muito, embora as áreas de conflitualidade intensiva sejam de maiores proporções. O núcleo central desta comunidade, os BRICS, vive diferentes situações e nas periferias da comunidade, países como a Colômbia e o Sri-Lanka vivem grandes conflitos abertos. No Brasil a situação é controlada pelos monopólios, que avançam sobre as áreas urbanas dominadas pelos imensos gangues. Nas áreas rurais, as zonas autónomas fazem enormes progressos, através dos Sem Terra, que constituíram mais de dez Republicas e centenas de núcleos.

Na Rússia a situação é totalmente controlada pelos monopólios, que aniquilam as bolsas dos fortes gangues russos, (por isso estes passaram a actuar em força fora do país) e que amordaçaram, até agora, todas as tentativas de criação de Zonas Autónomas, que resumem-se a alguns núcleos resistentes. Na China a situação é idêntica á da Rússia. Já na Índia o panorama é muito diferente. Existe uma aliança entre os monopólios e os gangues, numa tentativa de eliminar as grandes zonas autónomas surgidas na cintura florestal, vivendo-se uma guerra aberta, embora centrada apenas na larga cintura florestal, o que a torna facilmente encoberta pelos monopólios hindus.

Por fim a África do Sul, centro da SADC. Aqui o nível de conflitualidade entre os monopólios e as zonas autónomas é enorme e embora não exista uma situação de guerra aberta, existem confrontos militares diários. Nas grandes cidades, controladas pelos monopólios, os gangues tentam fortalecer-se, mas o nível de confrontação entre os monopólios e as zonas autónomas, criou uma situação desfavorável á sua implementação, pois o estado de emergência em vigor nas principais cidades sul-africanas dificulta os seus movimentos. Nas zonas autónomas os gangues sofreram grandes dissabores pelo que as suas acções são extremamente cautelosas, preferindo actuar fora das fronteiras, em grandes consórcios com os senegaleses e nigerianos.

Nos USA, a situação é confusa, uma vez que as duas facções rivais dos monopólios (as mineiras e as petrolíferas) reorganizaram-se em dois novos partidos. Os monopólios saídos dos sectores mineiros que controlavam os Democratas transformaram a sua estrutura política em Partido Nacional-Liberal, os Naclibs. Os que do sector petrolífero, cujo aparelho político eram os Republicanos, transformaram a sua estrutura em Repcon, Partido Republicano-Conservador, onde aglutinaram todas as dissidências de direita (os fundamentalistas cristãos, os old conservative e o Tea Party, para além dos separatistas texanos e do Alasca).

O problema desta reorganização surge quando uma das facções dos Naclib, os obamistas, partidários do black capitalism e que ostentavam orgulhosamente as suas raízes afro, decidem romper o old agreement, levando á radicalização dos fundamentalistas cristãos e da extrema-direita dos Repcon. Criaram-se bandos armados, o que reduziu imenso o poder dos monopólios, pois ficaram reduzidos ao controlo de apenas cinco estados (três Repcon moderados e dois Naclib, da Irish Line, também conhecidos por Clintonites ou Hillaristas). Os restantes estados radicalizaram as suas posições e deixaram de ser fiéis ao governo federal e às elites dos seus partidos. A situação é de guerra civil, entre os obamistas e a extrema-direita, o que levou a que os bandos armados dos gangues latinos assumissem o controlo da Florida e da região fronteiriça com o México (o que inclui mais de metade do Texas, que é partilhado com os moderados do Repcon, ou seja com o governo federal, que a custo controla parte deste estado, enquanto os gangues da Coligação Ariana controlam toda a região fronteiriça com o Canadá.

Mas se nos USA a situação é confusa e catastrófica (embora a catástrofe yankee tenha começado em 2014, com o Colapso Fiscal, imediatamente anterior ao Grande Colapso) não é menos confusa na Comunidade do Pacifico, criada sob a égide dos USA no período obamista e deixada órfã cedo demais. Todos estes estados caíram em mãos dos gangues locais e hoje esta comunidade não passa de uma coligação de interesses entre todos os gangues locais e um foco de perpétuas guerras internas e curtos períodos de cessar-fogo. O mesmo pode-se dizer do México, em que três quartos do território são disputados por bandos rivais. Os neo-zapatistas formaram uma grande zona autónoma em Chiapas e arredores, embora a conflitualidade com os bandos seja intensa.

Quanto ao Médio Oriente e a Eurásia são terra de ninguém (e de todos), onde os interesses afluem, convergem e divergem, numa intensa guerra aberta, que levou ao extermínio de grande parte das populações desde a península arábica até ao Iraque, passando por Israel (que desapareceu num monte de cinzas e nuvens químico-nucleares), Líbano (um imenso cemitério, onde não resta nenhum edifício em pé), Síria (região inabitada, depois de toda a população ter morrido em consequência das armas bacteriológicas lançadas pelo exército turco) e Irão, ocupado pelos bandos armados do gangue de Xerxes, um gangue dedicado ao tráfico de droga, que domina todo o país, transformado num imenso bordel. Este bando administra os seus territórios a partir de Cabul, no Afeganistão, região que partilha com os talibãs, o mesmo sucedendo com o Paquistão. No que respeita á Eurásia, não passa, actualmente, de um imenso território partilhado entre a CCI e os gangues locais, sendo a sua geografia política irreconhecível. Os territórios mudam de mãos todos os dias e as populações são vítimas de genocídios, estimando-se que já desapareceram mais de três quartos dos seus habitantes.

Continua

Imagem: Pablo Picasso

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