Fernanda
Câncio – Diário de Notícias, opinião
As
pessoas espantam-se com cada coisa. Agora é porque um tribunal superior diz que
nas mulheres a atividade sexual serve sobretudo para a procriação, logo depois
dos 50 e já tendo parido dois filhos não poder ter sexo não releva grande coisa
para efeitos de indemnização por danos, e dá como assente que uma mulher deve
cuidar do marido.
Isto
no país e na semana em que, reagindo ao caso do homem que em Soure, Coimbra,
matou a mulher e uma filha à facada e deixou outra filha ferida, um porta-voz
da GNR disse ao DN: "É difícil perceber, ainda para mais quando se atacam
os filhos. Pertence ao domínio da psicologia." Ora bem. Se o homem matasse
só a mulher seria mais fácil perceber, até porque é o pão nosso de cada dia, a
gente já não estranha (só até junho foram 24, uma por semana) - e, como daquele
senhor tão engraçado chamado Palito que, estando com pulseira eletrónica por
violência contra a ex-mulher foi de caçadeira para a matar e matou a ex-sogra e
a irmã dela por se meterem à frente, diziam os populares (as populares, aliás)
que o aplaudiram à porta do tribunal, "se fez aquilo alguma razão
teria."
Aliás,
como nos lembrou nesta mesma semana e neste mesmo país o presidente da
Federação das Associações de Ciganos, contestando um projeto parlamentar de
criminalização de casamentos forçados (de menores, portanto), o papel da mulher
está muito bem definido e o resto são aberrações que podem levar os homens à
loucura e o mundo à ruína: "A cigana é preparada para o casamento. As
ciganas aprendem a lavar, a coser, a passar a ferro, a fazer tudo. Ao contrário
da sociedade maioritária em que a maioria delas nem sabem fritar um ovo. Até se
vê mulheres a conduzir um automóvel e os maridos a conduzir carrinhos de bebé.
As nossas são 100% femininas, 100% donas de casa."
O
mesmo país em que estas declarações passam sem uma única reação institucional
de repúdio (fosse um muçulmano a debitá-las, ui), que é o mesmo país em que uma
proposta de criminalizar o assédio sexual das mulheres na rua é acolhida com
gozo - o argumento predileto é "só as feias não gostam" - e no qual a
quebra da natalidade é invariavelmente imputada à "dificuldade de
conciliar maternidade e trabalho", é também o mesmo em que uma loja pode
apostar, como estratégia de marketing, num cartaz à porta a dizer "homens
e cães podem entrar, mulheres não." Fosse "proibida a entrada a
negros", "judeus" ou "ciganos", isso sim, era
inaceitável, discriminatório, insultuoso. Mas é com mulheres, pá. Qual é o
problema de discriminar e insultar as mulheres, que, toda a gente sabe, já não
se podem queixar de falta de igualdade? Se calhar queriam valer mais do que os
homens, ou ter um estatuto intocável, não? Um bocadinho de sentido de humor,
vá. E digam lá se aquele acórdão, bem vistas as coisas, não é a nossa cara.
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