domingo, 19 de outubro de 2014

Portugal: NOTAS ORÇAMENTAIS



Pedro Marques Lopes – Diário de Notícias, opinião

1 "O governo optou por não aumentar os impostos", disse Maria Luís Albuquerque na conferência de imprensa de apresentação do Orçamento de Estado para 2015. Ficamos logo a saber que a ministra das finanças não fala com Paulo Portas, nem devem frequentar o mesmo conselho de ministros. Pelos vistos, a dúvida era se se subiam os impostos ou não, logo, o vice-primeiro-ministro, quando defendia publicamente a descida da sobretaxa, não fazia a mais pequena ideia do que se estava a passar. Digamos que estamos perante um Governo sui generis.

No dia seguinte, titulava o DN: "um orçamento que não sobe impostos mas agrava a carga fiscal". Ou seja, os impostos não aumentam, mas vamos pagar mais impostos. Não vamos empobrecer, mas vamos ficar mais pobres. Ninguém se está a rir da nossa cara, estão apenas a gozar connosco.

Estávamos a assistir às habituais críticas ao Tribunal Constitucional por este insistir em fazer cumprir a Constituição, quando apareceram boas notícias: acaba parte da CES e começam-se a repor os salários dos funcionários públicos. A sra. ministra disse que a responsabilidade por estas duas medidas era do Governo. Se calhar, desta vez, nem estava a gozar, nem queria enganar ninguém, devia estar, com certeza, confusa por ter estado a falar do Tribunal Constitucional.

2 "Eu sei que há políticos que acham que as eleições se ganham baixando impostos e aumentando salários", disse o primeiro-ministro, no dia da apresentação do OE. Ou seja, Passos Coelho não perde uma oportunidade para humilhar Paulo Portas.

Não consta que o irrevogável Vice-primeiro-ministro tenha dito saber que existem políticos que não hesitam em dizer que não vão cortar salários e pensões para ganhar eleições. Também não foram divulgadas declarações de Paulo Portas sobre o novo rumo do ex-partido do contribuinte e do pensionista.

3 Segundo Maria Luís não dá para cortar na despesa. Pelos vistos, não havia assim tantas gorduras, nem tanto consumo intermédio. Mesmo os cortes em salários e pensões - os que a Constituição permite - não chegam. Nem mesmo a genial reforma do Estado que ia reduzir estruturalmente a despesa, desenhada por Paulo Portas e explicada num documento que fica para a história do anedotário político, conseguiu vergar o monstro batizado por Cavaco Silva.

Mas nem tudo está perdido. Afinal cai haver cortes na despesa.

Voltam os cantados consumos intermédios. Pelos vistos só agora é que foi possível descobrir 507 milhões deles para cortar. Também se esperou pelo próximo ano para acabar com as despesas em licenças de software, pareceres e assim: 317 milhões de euros... gente esquecida. Depois temos ainda mais 300 milhões de poupança na misteriosa rúbrica "Outras medidas sectoriais", que é como quem diz logo se vê. Resumindo, com estas e outras mais de metade dos cortes na despesa ninguém sabe como serão feitos.

Deixemos de lado o corte de 700 milhões na educação. Segundo o ministro Crato, para o ano não há mais experimentalismos, logo o dinheiro não deve fazer falta.

Alguém se lembra da consolidação através dum esforço de 1/3 na receita e 2/3 na despesa?

Lá está, baixando impostos e aumentando salários podem-se não ganhar eleições, mas já mentindo...

4 Anedotas, brincadeiras, despesa que desaparece sem se saber bem como e, não podia faltar, um pouco de ilusionismo. Temos, por exemplo, uma previsão de crescimento do consumo privado de 2% e uma previsão de aumento na receita do IVA de 4,6%. Ou seja, ou vamos ter um crescimento inimaginável na detecção da fuga a este imposto ou estamos perante um puro delírio. E por falar em delírio, teremos a devolução da sobretaxa se o IVA e o IRS subirem 6,4%, sabendo que a previsão do crescimento do PIB é de 1,5%. Talvez seja aquele ilusionismo já nosso conhecido: o que faz desaparecer o coelho mas não o faz reaparecer.

5 É por estas e por outras que concordo com algumas análises que tenho lido e ouvido, que este é um orçamento na linha dos anteriores: ficcionista nas previsões mas muito real a destruir a economia. A mesma economia de cuja evolução positiva depende a execução deste OE. Isto é, faz-se depender tudo do bom desempenho económico quando a carga fiscal aumenta, as economias dos mercados para onde exportamos fraquejam, o investimento continua anémico e os nossos conhecidos mercados não andam propriamente estáveis. Talvez fosse bom lembrar que ultimamente não tem havido grande fartura de milagres.

6 Há, porém, sempre um pouco de paraíso na zona de desastre. A reforma do IRS e a pacote da Fiscalidade verde vão no bom sentido. É verdade que o efeito no rendimento é, para a esmagadora maiorias das famílias, muito baixo, mas a possibilidade de mais tipos de deduções serem admitidas é um bom sinal. Tal como é uma excelente indicação a substituição do quociente conjugal pelo familiar, apoiando, por pouco que seja, as famílias com dependentes a cargo.

A Fiscalidade verde é um dossier bem pensado e com uma visão que vai muito para além do aspeto fiscal. Incentiva comportamentos que beneficiam a comunidade, como a diminuição dos sacos de plástico, menos emissões de CO2, os apoios à utilização de carros elétricos.

No fundo os dois pacotes são bons exemplos do que seria um bom caminho, e não só fiscal: uma visão de política global com contributos para mais apoios às famílias e a uma boa política ambiental. O problema, claro está, é que essa visão não existe, e a que há é de forma a destruir até as boas iniciativas.

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