sexta-feira, 17 de outubro de 2014

“O racismo em Angola precisa de ser desmistificado, desconstruído e esclarecido"



Dani Costa – O País (ao) - Entrevista

Professor titular na Universidade Agostinho Neto, Paulo de Carvalho é co-autor do livro ‘O que é racismo?’ que vai ser lançado nos próximos dias, em Luanda. O assunto é considerado por muitos como tabu. O sociólogo aceitou falar a O PAÍS sobre o tema, com ideias próprias, como, por exemplo, acreditar que a ‘mestiçagem é o futuro da humanidade’. De qualquer modo, o nosso entrevistado pensa que a questão do racismo no país precisa de ser debatida sem preconceito.

É co-autor do livro ‘O que é racismo’. Diga-nos, então: o que é o racismo?

A “raça” é uma coisa inventada pelos seres humanos, para demonstrar que uns são superiores a outros e que a algumas das diferenças biológicas perceptíveis a olho nu corresponderiam diferenças comportamentais, diferenças no coeficiente de inteligência e diferenças em termos de capacidades e competências. Há muito a ciência demonstrou que tudo isto é farsa, pois não condiz com a realidade.

Os bebés não notam as supostas diferenças raciais, o que significa que elas são aprendidas socialmente. E olhe que eu até já lidei com pessoas adultas de vários países, que não notam diferenças na tonalidade da pele das pessoas; só se apercebem disso quando se lhes chama à atenção para o facto. O racismo pressupõe uma suposta hierarquia nessa coisa a que se chama “raça” e essa hierarquia é muito elementar, pois considera que “o que é nosso é melhor”.

O racismo pressupõe preconceito e pressupõe normalmente discriminação com base nesse critério de diferenciação. Nada disso é natural, tudo isso é criação humana. E muitas vezes nós alinhamos nessas coisas, sem nos apercebermos que estamos realmente a fazer o jogo dos de fora, daqueles que não nos querem ver unidos, que nos querem ver desunidos.

O que é que pretendem com esta publicação?

O livro enquadra-se numa colecção, que é dirigida pelo sociólogo moçambicano Carlos Serra (da Universidade Eduardo Mondlane), intitulada “Cadernos de Ciências Sociais”, que já tem vários números publicados. O mais velho Carlos Serra conseguiu reunir seis dezenas de investigadores sociais dos quatro cantos do mundo (de Tóquio e Dili a Maputo e de Ottawa e Rio de Janeiro a Luanda). Este é o primeiro livro da colecção com a participação de um angolano, mas estão já no prelo outros livros desta série sendo coautores o sociólogo Víctor Kajibanga e o linguista José Pedro, também angolanos. Se calhar, vou propor a inclusão de mais alguns angolanos no grupo. A intenção é cada livro ter pelo menos três autores. É um projecto muito sério, em que cada autor tem autonomia para escrever o que considera mais oportuno e mais válido. A minha próxima participação será no livro “O que é Sociologia”, que vai ter quatro autores e deverá estar entregue na tipografia antes do final do ano.

E no caso concreto deste livro, qual foi a intenção dos autores com a sua publicação?

Eu inscrevi-me para este tema, porque considero ser um dos temas tabu em Angola, que precisa de ser desmistificado, desconstruído e esclarecido. Mas de um modo geral, penso que para os quatro autores do livro a intenção terá sido trazer a público, antes de mais, uma abordagem académica acerca do racismo, que é apresentada de forma a ser percebida por todos.

Os autores são duas brasileiras, um português e um angolano, com formação em quatro áreas distintas: antropologia, letras, psicologia social e sociologia. Todos nós trazemos elementos teóricos, mas também casos práticos e vivências próprias. Portanto, o livro é útil para estudantes e profissionais das ciências sociais, para políticos, investigadores e público em geral. As pessoas comuns devem ler o livro e perceber que, quando olhamos para o outro (qualquer que ele seja), devemos perceber as semelhanças que temos com ele e não as diferenças físicas ou culturais, como muitas vezes fazemos.

Em Angola existe ou não racismo?

É difícil responder taxativamente a essa pergunta, numa breve entrevista. O meu texto, no livro, intitula-se “Racismo enquanto teoria e prática social”. Incluo aí um item intitulado “Há racismo em Angola?”, cuja leitura aconselho. Mas vou tentar responder à pergunta, abordando dois aspectos distintos. Primeiro, se me pergunta se há casos de discriminação racial em Angola, respondo positivamente: há-os, sim. Aliás, não era de esperar outra coisa, pois saímos de um longo período colonial há muito pouco tempo, para se ultrapassarem as sequelas daí resultantes – incluindo as que têm a ver com aquilo que se designa habitualmente por “raça”. Mas se a pergunta é se existe racismo institucionalizado em Angola, a resposta só pode ser negativa.

Havia, sim, no período colonial, mas a proclamação da independência trouxe uma série de coisas boas, sendo uma delas a eliminação do racismo institucionalizado. Hoje, as pessoas têm acesso ao ensino superior (por exemplo), independentemente da cor da pele – coisa que não ocorria no período colonial. Hoje, não é a cor da pele que determina quem chega ao topo de qualquer carreira profissional em Angola.

E além disso, é preciso reconhecer que (ao contrário do que sucede com alguns grupos étnicos) não há reuniões de grupos raciais como tais, para se traçarem estratégias de actuação comum. Portanto, acredito que a fase do racismo institucional esteja ultrapassada em Angola, o mesmo não se podendo dizer de manifestações que encerram discriminação racial, que existem de forma isolada, não de forma organizada. As pessoas comuns (e até alguns jornalistas e políticos) confundem estas duas perspectivas, que são distintas e, por isso, não devem ser consideradas no mesmo patamar. Uma coisa é o racismo institucional (mais global, mais abrangente), outra são actos de discriminação racial (mais isolados, menos abrangentes e com menor percepção social).

Distinga os tipos de racismo que existem em Angola?

Há, realmente, vários tipos de racismo – desde aquele que encerra apenas preconceito, àquele que encerra discriminação e violência massiva. Em Angola, temos uma série de racismos aprendidos socialmente, seja na família, seja no grupo étnico, seja nos grupos de amigos, seja ainda através de alguns meios de comunicação social cujo objectivo é criar a divisão no seio dos angolanos.

Pode dizer-se que não há em Angola racismo que envolva violência massiva e praticamente não existem actos de racismo com violência. O racismo mais comum pelo mundo é o que pressupõe a supremacia dos mais claros, como se o dia tivesse supremacia sobre a noite e como se ambos não se complementassem apenas. Por cá existe este racismo tradicional, que foi herdado do período colonial.

Mas existem também outras manifestações de racismo, que pressupõem que à supremacia demográfica de uns deva corresponder a sua hegemonia e o afastamento dos grupos “raciais” menos expressivos. Um e outro racismo consideram elevada dose de egoísmo, pois em cada um dos casos se pega nalgumas das diferenças somáticas perceptíveis para tirar algum benefício. Esta é a questão fulcral a considerar: tal como sucede com a utilização da diferenciação étnica, também se utilizam supostas diferenças “raciais” de forma mais ou menos subtil, para procurar tirar vantagem económica, social ou política. Temos, pois, de estar atentos a isso.

O racismo ainda é considerado tabu no seio da sociedade ou tem sido visto de maneira apaixonada?

É um dos tabus presentes na nossa sociedade. Aliás, a nossa sociedade é perene em tabus. Posso apresentar um outro caso: eu falo de sexo nas minhas aulas, pois considero ser preciso ultrapassar tabus, quanto mais não seja, para sermos mais felizes. Pois em tempos alguém se foi queixar à direcção da faculdade depois de ter reprovado numa minha disciplina, dizendo que eu falo de sexo nas aulas, como se isso não fosse a coisa mais comum, como se não se devesse falar de sexo na escola, desde a adolescência. Claro que, na minha geração, fomos todos educados com base em todos esses tabus. Acho que o segredo está em sabermos ultrapassá-los. E para ultrapassarmos os tabus, temos de os abordar com seriedade e de forma desapaixonada. Não há outra via. Calar é manter os tabus, é deixar perpetuar a sua existência social nefasta.

Que outros tabus pode enumerar?

Para além da questão racial, já referi o sexo enquanto elemento que faz parte da natureza humana. Sem sexo não existiríamos, sem sexo não seríamos tão felizes quanto somos. Então como é possível não podermos abordar um assunto que faz parte da nossa própria natureza? Mas atenção, que não está certo aquilo que vi em tempos num programa da TPA, em que um suposto “especialista” abordava detalhes e dizia impropérios e asneiras em público, ao ponto de a apresentadora do programa ficar encabulada. Isso não tem nada a ver com abordagem séria de assuntos que são tabu.

É preciso que haja conhecimento de facto e que haja o mínimo de sensibilidade, para não ferirmos susceptibilidades. Um outro dos grandes tabus tem a ver com a questão étnica. Por que razão não se pode dizer que temos por cá elites de vários grupos étnicos que se juntam e traçam estratégias? Por que razão não se pode dizer que há empresários e dirigentes que se rodeiam maioritariamente de pessoas do seu grupo étnico? Não creio que essa seja actuação correcta, por isso mesmo considero ser necessário abordar este tipo de matéria, até para que possamos ultrapassar isso para garantirmos a harmonia social e para que possamos dar passos mais significativos rumo à consolidação da nação angolana.

Voltando ao nosso tema, acredita que o conturbado processo de descolonização de Angola, provocado pelos portugueses, terá pesado de alguma forma para a existência de alguns resquícios de racismo no país?

Claro que isso ocorreu, mas naquela altura. A forma como decorreu o processo de descolonização (que foi um processo conturbado, temos de assumir) foi prejudicial para aquele período, mas do ponto de vista da racialização até não terá sido tão prejudicial para o futuro.

A esmagadora maioria dos colonizadores e seus descendentes abandonou Angola, de modo que terão desaparecido muitos dos focos de racismo tradicional. Os “brancos” que ficaram são maioritariamente pessoas que estavam contra a colonização, pessoas até que lutaram contra a colonização, com armas e com canetas na mão. Portanto, o processo de descolonização em Angola e em Moçambique não fez perpetuar a manutenção do poder por parte de quem o detinha antes. Essa possibilidade existia, mas felizmente não ocorreu.

Se tivesse ocorrido, aí sim, poderia continuar a haver derramamento de sangue com base na racialização, até que a situação mudasse e atingisse o patamar que tem hoje. Hoje, estamos felizmente libertos desse mal que antes existia institucionalmente.

Quais são os sectores da sociedade angolana onde se assistem mais actos de racismo e como é que ele se tem manifestado?

O que me parece que haja mais, hoje, em Angola são actos de racismo subtil, que visam algum benefício – emocional, social, económico ou político. A “raça” é mais utilizada de forma instrumental, como um dos elementos que se utiliza para afastar “a concorrência”.

Estou lembrado, por exemplo, de um antigo colega que falava permanentemente contra mulatos e brancos, mas quando estava diante de um mestiço dizia: “Até os meus filhos são mestiços…” Enfim, esta utilização instrumental da “raça” é de uma tal desonestidade intelectual, que demonstra a toda a gente que o seu autor apenas quer beneficiar afastando eventuais concorrentes.

Mas ultimamente, temos de reconhecer que a crise económica internacional está a trazer para Angola problemas do foro laboral que, ou têm, ou se supõe terem base racial. Não generalizemos, mas temos de reconhecer que há empresas e organizações estrangeiras ou de âmbito internacional em que existe claramente alguma discriminação contra angolanos.

Quando se fala em racismo estaremos apenas cingidos à questão rácica ou há outros elementos que devem ser considerados?

Parece-me que estão erradas aquelas pessoas que consideram “raça” e etnia no mesmo patamar. Uma coisa é a identidade étnica e outra a “raça”, enquanto construção social que supõe aquelas diferenças físicas ou somáticas que nos interessam. Por que razão a tonalidade da pele ou o formato do nariz hão-de ser biologicamente mais importantes que o formato das orelhas ou o tamanho dos dedos? Mas as “raças” foram socialmente construídas como foram, de modo que temos de viver com isso. Agora, mesmo que consideremos a existência de várias raças humanas, não podemos colocar “raça” e etnia no mesmo patamar. Ambas essas identidades são aprendidas socialmente, mas enquanto a identidade étnica está presente em nós, com base nos nossos elementos culturais e na nossa vivência, a verdadeira identidade racial existe apenas naqueles países onde há racismo institucionalizado. Angola está fora desse grupo, felizmente.

MCK, um rapper angolano, diz numa das suas músicas que em Angola o ‘mercado de emprego está colorido’ e que os poucos negros que vê no banco são apenas o homem que limpa o chão e o segurança. Há algum exagero nisso? Qual é a realidade actual?

Bem, eu não vou diariamente a bancos, mas frequento esses locais. Só quem não vai a bancos pode dizer que a maioria dos funcionários bancários são “brancos”. Isso não é verdade. Pode até haver uma agência bancária com mais “brancos” que “negros”, mas isso não é comum por cá. Para quem tiver dúvidas a este respeito, que vá a agências bancárias lisboetas; se, estando aí e olhando à volta, não vir diferenças, ou seja, se pensar que está em Luanda, aí então sim, o rapper terá razão.

Mas não tem razão, felizmente. Isso é aquilo que eu designo por “conversa de kandongueiro” – ou seja, é apenas conversa, que não tem expressão na realidade. Parece o caso de um conhecido jornal da nossa praça, que há alguns anos veio garantir que nos postos de direcção da Sonangol havia então mais “brancos” que “negros”. Só depois de o terem afirmado foram contabilizar e viram que era conversa gratuita. Claro que numa afirmação dessas só pode haver falta de seriedade. Agora, se houver meia dúzia de “brancos” a trabalhar em bancos, por que razão isso poderá constituir problema? Se forem angolanos, que problema haverá nisso? Mas se forem estrangeiros a trabalhar em balcões de agências bancárias, aí sim, podemos torcer o nariz e notar que alguma coisa não vai bem. Mas isso não tem a ver com a cor da pele; quando o problema se apresenta em termos de cor da pele, apresenta-se de forma errada. A questão deve ser analisada em termos de competências e de postos de trabalho que devem ser destinados maioritariamente a angolanos (independentemente da cor da pele).

Acredita que o facto de alguém ter a tez da pele mais clara do que outrem é um passaporte para um melhor emprego e sucesso na vida?

Depende de onde se estiver. Se for no Brasil, muito provavelmente sim. Se for nalguns estados norteamericanos, certamente que sim. Mas se for em Angola, obviamente que não. Eu atingi o topo da carreira universitária, sou Professor Titular há 3 ou 4 anos. Então quer dizer que eu cheguei a Professor Titular por ser um pouco mais claro que os meus colegas? Ou por ser um pouco mais claro não deveria lá ter chegado? Nada disso, a ascensão em qualquer carreira deve fazer-se por critérios objectivos. A maioria dos Professores Titulares da UAN tem tez mais escura que a minha e a esmagadora maioria até tem menos investigação e menos publicações que eu – então por que razão eu não poderia lá chegar? Fixe que o exemplo da universidade não é excepção à regra. É o comum por cá. E o ensino superior é um bom sector para olharmos para esse tipo de diferença. Eu já estive em universidades brasileiras, às quais a maioria (“negros” e índios) quase não tem acesso. Não é isso que se passa em Angola. Estamos até muito longe disso. Agora, não digo que não haja em Angola quem discrimina. Há. E no acesso ao emprego há elevada dose de discriminação, sim. Há sobretudo discriminação étnica e discriminação sexual, mas também há discriminação racial. Quando alguém diz, por exemplo, que o gerente de um restaurante deve ser europeu, está claramente a discriminar. Só que quem faz essa discriminação não são normalmente “brancos”, são “negros”. É isso que temos de assumir!

Brasil, que integra a Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa, estabeleceu quotas para o ingresso de negros na universidade. Como é que pensa que a nossa sociedade reagiria se se adoptasse uma medida idêntica para os brancos em Angola em relação a determinados sectores, tendo em conta que são uma minoria?

Não, isso não faria qualquer sentido em Angola. No Brasil sim, faz todo o sentido, porque (como disse há pouco) existe clara discriminação de “negros” no acesso à instrução. Em Angola, os “brancos” não têm qualquer dificuldade de acesso ao que quer que seja, por serem “brancos”. Portanto, as quotas por cá não farão qualquer sentido, qualquer que seja o sector para o qual olhemos.

Criou mossa à sociedade angolana uma matéria publicada há vários anos no Semanário Angolense de que a riqueza em Angola teria mudado de cor. O que achou na altura? Houve algum exagero dessa publicação?

Terá realmente criado mossa? Se criou, então quem se sentiu mal vive noutro país que não o nosso. Claro que, se considerarmos haver “raças” na espécie humana, então a conclusão só pode ser essa, de a riqueza ter claramente mudado “de cor” com a proclamação da independência e com a liberalização económica. Se houvesse a possibilidade de termos acesso aos montantes depositados em bancos e à fotografia dos titulares das contas bancárias, constataríamos exactamente isso. Porquê então alguém se sentir ofendido, se a realidade é essa? E não era de esperar outra realidade, isso é o que está correcto. Mas, felizmente, isso não foi feito olhando para a cor da pela das pessoas, ocorreu normalmente. Olhe, recordo-me que dei na altura os parabéns ao meu amigo Graça Campos, pela profundidade de análise – que foi uma análise puramente sociológica. Sem qualquer exagero.

Como sociólogo, o senhor acha que a nossa legislação pune actos que constituem práticas de racismo?

Não, que eu saiba, a nossa legislação é praticamente omissa nesta matéria. A questão da discriminação está presente nalgumas normas, mas não está noutras. Nós temos grande deficiência em termos de legislação laboral. Diz-se que estamos bem a este respeito, mas a verdade é diferente. E é preciso mudar rapidamente este quadro, pois esta é matéria que considero fundamental para a estabilidade e a harmonia social. Atrevo-me até a dizer que, hoje, fala-se demasiado em racismo, sobretudo devido a essa lacuna na legislação laboral. Confunde-se discriminação de outro âmbito com racismo, mas há discriminações várias no acesso ao mercado de trabalho e esses actos não são punidos como deviam. Aliás, até se o faz publicamente, com total impunidade. Só mesmo em Angola isso é possível. Também digo isso no livro.

Como encara o facto de algumas instituições nacionais e até mesmo estrangeiras anunciarem nas páginas do Jornal de Angola que pretendem empregar preferencialmente cidadãos estrangeiros?

Era mesmo disso que falava. É uma aberração. O que foi que aconteceu às empresas que têm esse tipo de comportamento anti-angolano? Nada! Fazemos de conta que não aconteceu nada e, por isso, vão continuar a agir dessa forma, com toda a desfaçatez. Acha que seria possível sair uma coisa dessas num jornal português, chinês, russo ou até americano, com total impunidade? Acha mesmo? Isso não era possível. Mesmo nos Estados Unidos, onde existe nalguns estados racismo institucionalizado, a identidade nacional fala mais alto. Por cá, não. Passámos de 8 para 888. Permitimos de tudo. Isso aconteceu durante muito tempo em empresas petrolíferas. Olhe, até já aconteceu comigo, num episódio que relato no livro e que não podia tornar público na altura, pois estive algum tempo contratualmente vinculado à organização para a qual trabalhava na altura e me demiti por ter sido alvo de discriminação, por ser angolano. É a esses comportamentos que chamo o “complexo do colonizado”: a colonização já passou, mas continuamos nós a vergar-nos, como se ainda mantivéssemos essa condição. Não está certo. Temos de superar isso.

Não será uma prática de racismo camuflada?

É difícil chamar a isso racismo, porque quando se diz que “não há nenhum angolano para assumir tal função”, fala-se de todos os angolanos, independentemente da cor da pele. As características são similares às do racismo, mas o coordenador da colecção, o moçambicano Carlos Serra, esclarece no livro que isso é mais xenofobia. Eu diria que será, sim, xenofobia, mas com um pouco de racismo tradicional camuflado pelo meio. Aliás, é muito provável que seja mesmo o racismo que está na base desse tipo de xenofobia. Mas o que é pior em tudo isso é que, por incrível que pareça, há angolanos (fundamentalmente de pele escura) que apadrinham esse tipo de xenofobia, contra nós próprios.

O luso-tropicalismo é ou não uma teoria falida?

Considero o luso-tropicalismo, não uma teoria, mas uma ideologia. E como ideologia, é realmente algo falido, algo que caiu em desuso logo à partida. A ideia de que os portugueses eram o máximo e a colonização portuguesa serviu para “aproximar” os “negros” dos “brancos” é coisa que não colhe. Posso ser acusado de estar a simplificar a análise, mas penso estar a fazê-lo bem. Até porque uma das muitas coisas esquecidas pelos adeptos do luso-tropicalismo é que a colonização (qualquer que ela seja) nunca é benéfica, pois traz consigo imposições várias. Passar paninhos quentes por aí não resolve, não altera nem atenua o que quer que seja.

A terminar, gostaria que falasse na questão dos mestiços.

Esta é realmente uma questão importante, que não deve ser ignorada. A mestiçagem é o futuro da Humanidade. Vamos lá tentar desmistificar a questão dos mestiços. Biologicamente falando, o que é o nosso mestiço? O nosso mestiço, resultado do cruzamento entre “negros” e “brancos”, é biologicamente “negro”. Se olharmos para as características somáticas do mestiço (que se têm em conta quando se consideram raças na espécie humana), só podemos concluir que o mestiço é “negro”. O mestiço não tem as características fisionómicas do “branco”, tem as características fisionómicas do “negro”.

A tonalidade da pele, para a qual se olha em primeiro lugar, é apenas um dos elementos, e até o menos importante – pois eu posso escurecer ou clarear a minha pele de um dia para outro, se o pretender. E sem ter de recorrer a cirurgia. Além dos traços característicos da suposta “raça” negra, o mestiço possui também as doenças características da “raça” negra. Biologicamente falando, o mestiço é negro e ponto final.

Sociologicamente falando, o que eu penso é que devemos deixar de olhar para o mestiço como “acidente de percurso”, para olharmos para a mestiçagem como o futuro da Humanidade. Vistas as coisas em termos raciais, o que posso dizer é que, nas cidades angolanas, a maioria somos mesmo mestiços, podemos crer. Não é uma questão de cor de pele, é preciso olharmos para as características somáticas como um todo e para as árvores genealógicas de cada um, e aí vamos verificar que tenho razão.

Qual será o seu próximo livro?

Essa é uma pergunta à qual não consigo responder taxativamente, porque tenho 3 livros começados em diferentes etapas da minha vida. Se calhar, vou concluir primeiro o último deles, para em 2015 tratar de concluir os livros acerca do ensino superior em Angola e acerca da delinquência e criminalidade em Luanda. Fiz, no ano passado, com um colega polaco de nome Jaroslaw Jura, um estudo acerca da percepção que os angolanos têm da China e dos chineses. O estudo produziu resultados interessantes, que constam de um artigo que vai ser publicado em duas revistas científicas (de Luanda e Varsóvia) e que constam de um livro em inglês que foi produzido sob direcção do Jaroslaw Jura. Acerca do livro em português, que é de minha responsabilidade, tenho já meio livro escrito, com a contribuição também do meu colega. Penso concluí-lo ainda este ano, para chegar ao público leitor em 2015.

A CORRUPÇÃO TAMBÉM DEFINE OS NÍVEIS DE DEMOCRATICIDADE



Folha 8, 11 outubro 2014

Numa demo­cracia mo­derna, em Angola nem é moderna nem antiga – não exis­te, o poder é atribuído em função de uma escolha popular no pressuposto de ser usado para benefício da sociedade em geral, e não para benefício pessoal do indivíduo que o detém, ou do seu clã de familiares e amigos. Só por aqui se vêm em que ponto está o nosso país.

A corrupção – abuso do poder público para fins pri­vados – é intrinsecamente contraditória e irreconci­liável com a democracia. Isso não significa que a corrupção não ocorra nos sistemas democráticos. A tentação continua a ser um desafio em qualquer país e sistema do mun­do. Daí a necessidade de lutar permanentemente contra o abuso praticado por quem o Povo escolhe. Se é uma árdua tarefa nas democracias, nos países totalitários ou nos que a democracia só existe para consumo do marketing é uma missão impossível. Ou quase.

A Transparência Interna­cional define a corrupção como o abuso de um po­der delegado para benefí­cio próprio ou de terceiros (que podem ser familiares, amigos, empresas, grupos políticos ou sociais).

Mas há também compor­tamentos que, mesmo não sendo puníveis por lei, constituem formas de corrupção. A título de exemplo, basta referir as situações de conflito de interesses e favoritis­mos de variada natureza. Em resumo, a corrupção manifesta-se de várias for­mas, mas todas elas têm o mesmo objectivo: ob­ter um privilégio pessoal ilegítimo que prejudica o bem comum.

Por sua vez a transpa­rência pode ser definida como o princípio que per­mite a todos os que de al­guma forma são afectados por decisões administrati­vas, transacções de negó­cios ou trabalhos de cari­dade conhecer não só os factos e os números mais elementares, mas também os mecanismos e proces­sos envolvidos naquelas acções.

Constitui um dever alar­gado a funcionários públi­cos, gestores e administra­dores, contribuindo para que estes ajam de uma forma perceptível, previ­sível e compreensível. O exemplo deveria partir de cima para baixo.

Os custos da corrupção são transversais a diver­sos campos: político, eco­nómico, social e ambien­tal. No campo da política, a corrupção constitui um grande obstáculo à de­mocracia e ao Estado de Direito. Num sistema de­mocrático, as empresas e as instituições perdem a legitimidade quando são usadas de forma abusiva para proveitos privados.

Uma liderança política responsável não se pode desenvolver num clima corrupto. Economicamen­te, a corrupção extenua a riqueza nacional, sendo muitas vezes responsável pela canalização de recur­ sos públicos escassos para projectos de alta visibilida­de mas sem rentabilidade, em detrimento de projec­tos com menos aparato, mas fundamentais para a qualidade de vida das po­pulações, como escolas, hospitais e estradas ou o fornecimento de energia e água a zonas rurais.

Por se tratar de uma acti­vidade quase subterrânea, não é possível quantificar os custos da corrupção. Alguns especialistas utili­zam análises de regressão e outros métodos empíri­cos para traduzir mone­tariamente os custos da corrupção. No entanto, é praticamente impossível fazer estes cálculos, na medida em que os paga­mentos de subornos não são registados publica­mente.

Ninguém sabe exacta­mente quanto dinheiro é anualmente “investido” em funcionários, dirigen­tes e outros dignitários corruptos. Além do mais, o próprio suborno não se restringe à questão mone­tária: favores, “jeitinhos” e presentes são práticas comuns. No máximo, é possível investigar a cor­relação entre os níveis de corrupção e, digamos, de democratização, de desen­volvimento económico ou de degradação ambiental.

Os custos sociais da cor­rupção são ainda menos quantificáveis, na medida em que seria inadequado medir a tragédia huma­na em termos de custos monetários. É, portanto, justificável a existência de um cepticismo geral em relação à tentativa de quantificar os custos da corrupção.

À primeira vista, o Índice de Percepção da Corrup­ção (CPI) publicado anual­mente pela Transparência Internacional parece con­firmar a ideia estereotipa­da de que a corrupção é um problema que afecta predominantemente os países do Sul. Enquanto os países escandinavos ocu­pam o topo do ranking da transparência, a maioria dos lugares da base são ocupados por países da África Subsariana.

O CPI não tem como ob­jectivo, todavia, realçar determinados países ou fazer a oposição Norte/Sul. Pelo contrário, é uma ferramenta de sensibili­zação da opinião pública para o problema da cor­rupção e de promoção de uma melhor governação.

A corrupção é um proble­ma transversal a todos os países, desenvolvidos ou em desenvolvimento. Os recentes escândalos na Alemanha, França, Japão, EUA ou Reino Unido con­firmam esta realidade. É a existência de um siste­ma de controlo, monito­rização e prevenção bem estabelecido que marca a diferença.

Em qualquer país, as pes­soas são tão corruptas quanto o sistema permite que sejam. Onde a tenta­ção é acompanhada pela permissividade, a corrup­ção enraíza-se em larga escala. Até muito recen­temente, os governos do Norte não só toleravam estas práticas como as incentivavam, através do direito à dedução de im­posto. Felizmente, com a entrada em vigor da Con­venção Anti-Suborno da OCDE, em 1999, o subor­no de funcionários públi­cos estrangeiros passou a constituir uma ofensa criminal.

Alguns críticos argumen­tam que a luta contra a corrupção representa mais um caso em que o Norte tenta impor os seus pontos de vista e valores ao Sul. Muitos poderão afirmar que o acto de dar e receber na esfera públi­ca constitui uma tradição normal em muitas cultu­ras não-ocidentais.

Os defensores do relati­vismo cultural poderão argumentar que onde não existem conceitos como procedimentos de contratação pública, não existem subornos para obter contratos de obras públicas. As normas e os valores estão vinculados ao contexto e variam en­tre as culturas. As ofertas fazem parte da negociação e construção de relações em algumas partes do mundo. No entanto, o re­lativismo cultural termina onde a conta na Suíça, por exemplo, entra em cena.

Os especialistas e activis­tas sediados em cada país sabem avaliar melhor do que ninguém o que é uma mera tradição ou prática cultural e o que consti­tui uma infracção à regra num determinado país. Desta forma, a rede Trans­parência Internacional consegue ser mais eficaz na luta contra a corrupção e na promoção da trans­parência e da boa gover­nança. Mas, claramente, o abuso de poder para pro­veito pessoal ou o desvio de recursos públicos para os bolsos privados são inaceitáveis em qualquer cultura ou sociedade.

Angola: CONTINENTE ESTÁ PARA CHEGAR, SÓ FALTA A BÊNÇÃO DA SANTA



Folha 8, 11 outubro 2014

Ao certo não se sabe. A mais falada depois de muitas ou­tras, é o Ve­rão de 2015. Mas a verdade é que, de­pois de muitos impasses, é sabido que a Sonae já está a constituir equipa para acompanhar a abertura dos hipermercados Conti­nente em Angola. Primei­ro foi necessário engolir uns tantos sapos, o que fez esgotar os stocks de “alka seltzer” das próprias lojas. Depois seguiram-se doses industriais de hóstias para tirar o pecado de negociar com um dos regimes mais corruptos do mundo.

O projecto que marca a en­trada do maior emprega­dor privado português no território angolano é fruto de uma parceria estabele­cida entre o grupo e, como não poderia deixar de ser e corresponde à Lei da Probidade do nosso país, a empresária e não se sabe quantas vezes milionária Isabel dos Santos que, para quem não saiba, é filha do presidente José Eduardo dos Santos.

Para a eventualidade de algum leitor só agora ter chegado a este mundo, re­corde-se que José Eduardo dos Santos é o presidente de Angola desde 1979, sem nunca ter sido nominal­mente eleito, bem como do MPLA (partido que está no poder desde a indepen­dência).

Hipermercados, super­mercados, lojas de con­veniência, lojas de pro­ximidade, restauração, para-farmácias, livrarias, vestuário, desporto, elec­trónica, centros comer­ciais, administração de imóveis, investimentos financeiros, telecomunica­ções, software e sistemas de informação e media são as áreas do império funda­do por Belmiro de Azeve­do, a Sonae.

Mas como tudo na vida, Belmiro de Azevedo é mui­to diferente do seu suces­sor dinástico, o filho Paulo Azevedo. O pai, que nem ao domingo descansava, dizia a a mesma coisa em qualquer dia de semana. Hoje a estratégia é diferen­te. O filho diz às segundas, quartas e sextas uma coisa, às terças quintas e sábados outra coisa. E ao domingo vai à missa.

O acordo com a Condis – detida maioritariamente, como também não poderia deixar de ser e sempre res­peitando espírito e a letra da tal Lei da probidade, por Isabel dos Santos – aconte­ceu ainda em 2011, sendo que o projecto prevê, ou previa, a abertura de uma rede de hipermercados Continente nosso país.

João Seara é apontado pelo Diário Económico como o homem forte do grupo para este projecto, sendo que deverá ocupar o cargo de director executivo. A empresa não adianta gran­des pormenores sobre es­tas novas informações, di­zendo apenas que “não está definida nenhuma data em concreto, mas tanto a So­nae como a Condis estão a envidar todos os esforços para proceder à abertura da primeira unidade o mais breve possível”.

No entanto, a mesma pu­blicação aponta o Verão de 2015 como uma data de referência para a abertura da primeira loja da marca Continente em Angola, acrescentando mesmo que as equipas estão já manda­tadas para começar a defi­nir as gamas de produtos que serão enviados para Luanda e que se juntarão a outros aqui produzidos. Sa­be-se também que a Con­dis iniciou já a construção de uma infra-estrutura que acolherá as instalações do hipermercado.

A entrada da Sonae em Angola tem sofrido alguns contratempos, explicando­-se assim a relutância do grupo português em avan­çar com uma data concre­ta. A internacionalização da empresa para o nosso país está em desenvolvi­mento desde 2012, ano em que a Sonae e a ANIP assi­naram um contrato de in­vestimento no valor de 100 milhões de dólares, com vista à abertura de cinco hipermercados.

Todos os atrasos poderão ter a ver com o facto de, durante algum tempo, a Sonae ter tido dificuldades em engolir as regras da corrupção angolana. Daí as coisas não terem corrido tão bem como o inicial­mente previsto, isto por­que Paulo Azevedo anun­ciara a 17 de Março de 2011 que a entrada da empresa no mercado angolano po­deria acontecer já nesse ano.

Fernando Ulrich, presi­dente do BPI, banco pre­sente em Angola desde 1996, poderá ter tido um papel importante ao ga­rantir a pés juntos que em Angola não há corrupção. Ao ouvi-lo dizer que “o BPI nunca pagou nada a ninguém para obter nada em troca como nem nunca ninguém nos pediu nada para fazer o que quer que fosse em troca”, Paulo Aze­vedo (Belmiro não foi nes­sa) sorriu e mandou avan­çar as suas tropas.

Angola é um dos países lu­sófonos com a maior taxa de mortalidade infantil e materna e de gravidez na adolescência, segundo as Nações Unidas. Mas o que é que isso importa? Impor­tante é saber de facto que a Sonae vai avançar com o lançamento dos hipermer­cados Continente, mesmo sabendo-se que o regime é um dos mais corruptos do mundo. Ou será por isso mesmo?

Se calhar é por isso mes­mo. Recorde-se que o pro­curador português que em tempos investigava o caso “BES Angola” ingressou no Banco Internacional de Crédito (BIC), presidido pelo cavaquista Luís Mira Amaral, uma instituição de capitais luso-angolanos que, mais uma vez, é do­minada pela tal impoluta cidadã que é filha do não menos impoluto cidadão, Isabel dos Santos e José Eduardo dos Santos, res­pectivamente.

Seja como for, o que conta é o “Hello tomorrow” (olá amanhã), rapidamente e em força para... Angola.

Aliás, muitos dos ango­lanos (muitos mesmo) vivem na miséria e rara­mente sabem o que é uma refeição. Poderão, no en­tanto, fazer incursões ao Continente, ou melhor, aos caixotes do lixo do Conti­nente e lá encontrar restos quase novos de comida. Cães não haverá porque esses são alimentados, como em tempos disse o actual governador do Huambo, Kundi Paihama, pelos altos dignitários do regime, todos eles verda­deiros filantropos.

A Sonae, contudo, não é uma empresa filantrópica e, por isso, negoceia com os donos do poder e, no caso de Angola, do país. E, como sempre, é muito mais fácil negociar com dirigentes vitalícios do que com os que resultam de uma vida democrática. Aliás, a família Azevedo gosta muito de viver em democracia. Já se os ou­tros vivem em ditadura, o problema é deles. O que importa é haver gente com muitos dólares. E o regime tem fartura dessa espécie.

Também é verdade que se a comunidade interna­cional não se preocupa com o facto de, em Ango­la, poucos terem cada vez mais milhões e cada vez mais milhões terem pouco ou nada, porque carga de chuva deveria ser a Sonae a preocupar-se?

Portugal – PROPRIEDADE E VOTOS: O ESPÍRITO SANTO ENCOBERTO



Carlos Pimenta – jornal i, opinião

A subserviência do político em relação ao económico faz-se tanto nacional como internacionalmente. O crime organizado de colarinho branco aproveita-o sempre que pode

1. Afirmar que a corrupção faz parte da natureza humana, ou que é um produto cultural, engana-nos e reforça a inoperacionalidade social. A corrupção envolvendo baixos recursos, a mais frequente, pode criar essa ilusão. Contudo não é ela que destrói o nosso labor por uma vida mais digna, e impede que sejamos plenamente cidadãos.

Muito mais preocupante é a corrupção que enfraquece a autonomia relativa da política perante o mundo dos negócios. A propriedade cria poder, a produção e a apropriação da riqueza moldam as interacções sociais dominantes, os referenciais ideológicos. E se os economicamente poderosos sempre tiveram intensa e sistemática capacidade de influenciar a organização política vigente, a fortíssima concentração da riqueza mundial num restrito número de famílias, a circulação dos capitais sem entraves e a desregulação têm diminuído a fraca autonomia do Estado em relação ao poder económico. A postura social-democrata de controlo político da actividade económica metamorfoseou-se na dependência do Estado do funcionamento dos mercados, espaços invisíveis e míticos de manifestação do poder da propriedade.

A corrupção de elevados recursos pretende quebrar os poucos laços de autonomia que o Estado preserva.

2. A corrupção política continua a existir, mas uma parte dela faz-se de uma forma mais abrangente e "racional": pelo financiamento aos partidos políticos, particularmente aquando das campanhas eleitorais. O partido ganhador sabe a quem deve a vitória. As malhas interpessoais de compromisso envolvem os principais decisores e os financiadores, e alastram-se a todos os centros de decisão, ocupados pelas forças vencedoras. As portas giratórias entre o político e o económico rodam melhor, a violação das regras da concorrência e o favorecimento aparecem como actos espontâneos entre amigos: não se hostilize os "amigo do partido".

Esta arma da subserviência do político em relação ao económico faz-se tanto nacional como internacionalmente. O crime organizado de colarinho branco aproveita-o sempre que pode.

O financiamento privado das campanhas eleitorais enche as contas dos políticos e o domínio dos senhores do dinheiro, mas diminui a confiança das populações, aumenta o absentismo, reduz a solidariedade, enfraquece a democracia, transforma progressivamente "um voto, uma pessoa" em "um euro, um voto".

3. O caso Espírito Santo tem revelado algumas facetas deste mundo sórdido.

Agora que já saiu do átrio, a sucessão de acontecimentos apontam o calvário para muitos: novas fraudes a serem descobertas, prolongado fechar de olhos da supervisão, declarações políticas de apoio a Ricardo Salgado (que participou num Conselho de Ministros sobre política económica!) quando já havia dados suficientes para se ter intervindo, subserviência ao Banco Central Europeu, risco sistémico sobre o débil e endividado sistema bancário português, impactos de desestruturação e destruição da actividade produtiva do país.

As declarações formais da primeira hora esfumam-se e a CGD, o Estado e os contribuintes pagam uma parte do que os antigos administradores e proprietários colocaram em contas protegidas pelo sigilo.

A pressa de vender pode não ser apenas tontearia, ausência de senso comercial e preocupação orçamental. É uma forma de arquivar investigações inoportunas (veja-se, por exemplo, as comissões da compra dos submarinos e a chantagem implícita de Ricardo Salgado), quiçá render luvas e vender barato a "amigos", de campanhas eleitorais e circuitos financeiros internacionais previamente estabelecidos. 

Escreve à sexta-feira

Portugal: Secretário de Estado muda regras de concurso e beneficia empresa de Rui Rio



Carlos Diogo Santos – jornal i

Presidente de agência pública diz que Secretário de Estado Castro Almeida deu a indicação para alterar as regras do concurso, o que permitiu a escolha da empresa de Rio para seleccionar futuros gestores de fundos europeus

A empresa de Rui Rio não venceu em Julho um concurso limitado lançado para encontrar uma entidade que seleccionasse futuros gestores para parte significativa dos fundos europeus (2014/2020). Mas uma decisão do governo voltou a trazê-la a jogo. Dias após ter sido conhecida a decisão do júri foram modificadas as regras do concurso, e o serviço não só foi adjudicado à empresa que  apresentou a proposta mais vantajosa como também à de Rui Rio.

A mudança de termos feita foi simples: afinal era necessário que houvesse mais que uma empresa a seleccionar candidatos para trazer “mais rigor ao processo”. E a consequência também não é difícil de entender: em vez de custar 40 mil euros, a selecção de futuros gestores teve um custo que ascendeu a 100 mil euros.

A indicação de alterar o que fora inicialmente solicitado foi transmitida à Agência para o Desenvolvimento e Coesão (ADC)  – responsável por lançar os concursos – pelo Secretário de Estado do Desenvolvimento Regional, Castro Almeida, que mantém desde há alguns anos relações políticas com o ex-autarca do Porto. Em 2005, por exemplo, foi indicado por Rui Rio, então  presidente da Junta Metropolitana do Porto, para ocupar o cargo de vice-presidente daquela junta.

Os futuros gestores destes quatro programas operacionais terão a seu cargo uma importante fatia dos fundos que Bruxelas disponibiliza a Portugal – quase 12 mil milhões de um bolo total de 25,6 mil milhões de euros.

Mudam-se as regras, inclui-se a Boyden O presidente da Agência para o Desenvolvimento e Coesão, José Soeiro, confirmou ao i ter recebido inicialmente a indicação por parte do secretário de Estado Castro Almeida para escolher apenas a empresa que apresentasse a proposta mais vantajosa. O responsável atestou ainda que Castro Almeida só solicitou que fosse feita a adjudicação a todos os concorrentes após ter sido escolhida pelo júri a Heidrick & Struggles. Esta concorrente da Boyden de Rui Rio, é uma empresa pertencente ao grupo Ongoing que apresentou uma proposta de 37 250 euros (Sem IVA).

Com a mudança de regras, inicia-se assim uma segunda ronda de contactos à Boyden – que inicialmente apresentara uma proposta de 60 mil (sem IVA) – e à empresa Egon Zehnder que tinha apresentado uma proposta de 69 mil euros (sem IVA).

Porém, nesta segunda consulta apenas a empresa do ex-autarca do Porto se mostrou disponível, o que fazia com que a Egon ficasse de fora da corrida.

“Assim que fomos informados da indisponibilidade da Egon, tal informação foi concedida ao senhor secretário de estado e adjudicou-se o serviço à empresa Boyden”, explicou o presidente da ADC.

Com esta adjudicação, a selecção de profissionais para gerir parte dos fundos comunitários deixou de ter um preço total de cerca de 40 mil euros e ascendeu a mais de 100 mil euros.

Segundo Castro Almeida, contactado pelo i, “a  adjudicação do trabalho a duas empresas distintas teve em vista assegurar dois objectivos: alargar as hipóteses de escolha, através da diversificação do leque de contactos de cada uma das empresas e evitar a hegemonia de uma só empresa no processo de recrutamento para funções tão importantes.”

Sem referir que a decisão de optar por um ajuste directo ou de abrir concurso público caberia sempre à Agência para o Desenvolvimento e Coesão, o secretário de Estado justifica: “Se fosse o objectivo [favorecer uma das empresas], teria sido legal fazer a adjudicação directa à empresa que se pretendesse beneficiar, sem necessidade de efectuar outras consultas e colher outros preços.”

Braço de ferro Mas este processo foi muito complexo desde o início e segundo o iapurou o lançamento de um concurso limitado para elaboração de listas de candidatos a gestores dos quatros programas operacionais não era o que Castro de Almeida e o governo haviam idealizado. O secretário de Estado do ministério de Poiares Maduro terá mesmo transmitido à agência que pretendia outra solução, que passava por envolver as três maiores empresas de “executive search” que trabalham em Portugal na selecção destes profissionais.

A ADC terá feito, porém, braço de ferro ao considerar que não fazia sentido a proposta de adjudicar por lotes, ou seja, que os candidatos à gestão de cada um dos quatro programas operacionais (competitividade e internacionalização, inclusão social e emprego, capital humano e por fim o de eficiência de recursos e sustentabilidade) fossem seleccionados por empresas diferentes.

Ainda que José Soeiro não tenha querido responder a qualquer questão sobre esta matéria, informações a que o i teve acesso revelam que o receio da ADC era o Estado ter de pagar a mais de uma empresa – um valor que poderia ir até 75 mil euros. Isto, porque havia a sensação de que  uma empresa seria, em teoria,  suficiente para fazer todo o trabalho e escolher os potenciais gestores para todas os programas operacionais.

Foi aí que o secretário de Estado do desenvolvimento Regional, Castro Almeida, aceitara então, em Julho, que fosse escolhida apenas uma empresa para fazer as listas de candidatos para os quatro programas. Uma concordância que durou até ser tomada a decisão de escolher uma empresa concorrente da de Rui Rio.

Várias fontes ligadas a este processo explicaram ao i que o facto de ter sido adjudicado a várias empresas o mesmo serviço criou algum desconforto entre os concorrentes. “O normal é contratar uma empresa e ainda que não fosse inédito adjudicar a mais de uma, houve algum desconforto”, explica fonte conhecedora do processo que preferiu não se identificar.

Contactada pelo i, a Boyden  optou por salientar que esta decisão do governo é inédita, dado que pela primeira vez os gestores estão a ser recrutados fora “das redes pessoais das pessoas que pretendem preencher os lugares”. Fernando Neves de Almeida, Managing Partner da empresa, considera “natural” que tenha havido outra empresa a fazer a mesma pesquisa. Apesar de questionado através da empresa, Rui Rio não fez qualquer comentário até ao fecho desta edição.

Foto: Nelson D’Aires

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EUROPA EM PÂNICO COM RECESSÃO E UMA NOVA CRISE NA GRÉCIA



António Ribeiro Ferreira – jornal i

Com as bolsas a pique e os juros da dívida em alta, salva-se o porto de abrigo alemão, com Merkel a defender com unhas e dentes a austeridade

Foi mais um dia negro para a Europa e também para o mundo. Os mercados estão em pânico com a possível terceira recessão na zona euro e com os maus ventos que sopram em Atenas. As bolsas caíram a pique pela oitava sessão consecutiva e só não caíram mais porque na hora do fecho dos mercados vieram umas vozes de Bruxelas garantir que não iam deixar cair a Grécia por nada deste mundo. Acontece que as palavras não fazem crescer as economias da zona euro de muito menos fazer subir a inflação. Com recessão à vista e a deflação atrás da porta, só faltava mesmo uma nova crise grega. De facto. a Grécia está de novo no radar da atenção dos mercados financeiros após os juros das obrigações soberanas a 10 anos terem subido acima dos 8%, o que acontece pela primeira vez desde Fevereiro.

GRÉCIA MAIS UMA VEZ 

O movimento de venda de títulos de dívida grega a 10 anos está a ser suportado, pela tentativa de saída prematura da Grécia do programa de ajuda por parte do Fundo Monetário Internacional (FMI) apontado para 2016. Uma saída já recusada pelo FMI e pela Comissão Europeia e que pode levar à queda do governo de coligação de Samaras e à vitória do Syriza, partido de extrema-esquerda liderado por Alexis Tsipras.

HOLLANDE ATACA ESTAGNAÇÃO 

A queda dos mercados bolsistas é resultado da "estagnação" europeia, do abrandamento da economia norte-americana e da "incerteza internacional", declarou ontem o presidente francês, François Hollande. "Há uma incerteza internacional", "os Estados Unidos abrandam e a Europa tem um crescimento fraco", afirmou em declarações aos jornalistas em Milão, onde participa numa cimeira euro-asiática.

"É preciso que a Europa possa encontrar o caminho do crescimento e de um crescimento mais vigoroso, tem sido esse o meu combate", acrescentou. O presidente francês referiu que "a zona euro saiu da crise, mas a Europa não retomou o caminho do crescimento e vive uma estagnação". Segundo Hollande, a fraqueza dos mercados deve-se em primeiro lugar à "instabilidade da situação internacional" na Ucrânia, no Médio Oriente e na África Ocidental com a epidemia de ébola. "Mas também há causas na Europa" como "o crescimento fraco, as interrogações e as incertezas quanto ao plano de investimento que deve ser aplicado e os planos de austeridade que se seguem uns aos outros", prosseguiu.

A ÂNCORA ALEMà

A chanceler alemã, Ângela Merkel, considerou ontem que a Europa tomou desde o início o caminho "correcto" para ultrapassar a crise e instou de novo todos os países-membros a respeitarem o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). "Todos, e sobretudo, os Estados-membros devem respeitar as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC)", disse Merkel no plenário do parlamento alemão, antes da próxima reunião do Conselho Europeu. Para Angela Merkel, o respeito pelas regras do PEC é a "âncora central" para que se volte a confiar na zona euro. Com Lusa

Kofi Annan - Ébola: Resposta internacional foi lenta por crise ter começado em África




Os países ricos foram lentos em reagir à epidemia do vírus Ébola, por esta ter começado em África, criticou hoje o antigo secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan.

"Estou profundamente desapontado pela resposta (...). Estou desapontado por a comunidade internacional não se mexer depressa", disse Annan a um programa de referência da BBC, o Newsnight.

"Se a crise tivesse começado em outra região, provavelmente teria sido gerida de forma muito diferente. De facto, se se vir a evolução da crise, a comunidade internacional acordou realmente quando a doença atingiu a América e a Europa", especificou.

Este diplomata ganês, que liderou a ONU durante uma década, até 2006, disse que deveria ter sido evidente que o avanço do vírus para fora de África, a partir do seu epicentro, era apenas uma questão de tempo.

O surto deste vírus já matou 4.493 das 8.997 pessoas que foram registadas como tendo sido infetadas, segundo a Organização Mundial de Saúde.

Lusa, em Notícias ao Minuto

UNS SÃO PRETOS… OUTROS NÃO. RACISMO? QUE IDEIA!


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Cartoon do André Carrilho, publicado no DN a 10 de Agosto

OC

Eleições: MOÇAMBIQUE NÃO QUER DHLAKAMA NEM A RENAMO DE DHLAKAMA



Romano Prates, Maputo

A notícia já correu mundo e quase não há quem lhe dê crédito. O pómio da discórdia são as eleições em Moçambique, onde a Frelimo e Filipe Nyusi começaram logo no principio da contagem de votos por se sobrepor à Renamo e a Afonso Dhlakama. Perspetiva lógica e racional: Frelimo e Nyusi são os vencedores das eleições gerais em Moçambique. Em segundo lugar - mas com muito menos votos - está a Renamo e Afonso Dhlakama. A Renamo não quer aceitar a realidade e reagiu. Essa a razão da notícia. Da Lusa e aqui postada no Página Global sob o título Moçambique – Eleições: RENAMO REIVINDICA VITÓRIA E NÃO RECONHECE RESULTADOS

Somente três parágrafos:

“A Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) reivindicou hoje vitória nas eleições gerais de 15 de outubro em Moçambique e disse que não reconhece os resultados eleitorais, anunciou o porta-voz do partido.

Em conferência de imprensa na sede nacional do partido, em Maputo, António Muchanga denunciou aquilo que considera ser várias irregularidades que interferiram no processo eleitoral.

A conferência de imprensa realizou-se depois de terem sido divulgados os primeiros resultados das eleições gerais moçambicanas, que colocam o candidato presidencial da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), Filipe Nyusi, na liderança da contagem, com 60,69%, quando estavam apuradas apenas 8,55% das mesas de voto.”

O que sobra para perguntar é o que a Renamo e Afonso Dhlakama esperavam do resultado destas eleições? Vencer? Impossível. Seria uma manifestação de quase demência os moçambicanos elegerem um partido e um indivíduo (Dhlakama) que lhes tem trazido a destruição, a morte, feridos e deficiências físicas, terror e declarações de baboseira. Na sua declaração de guerra há tempos atrás Dhlakama sentenciou-se a perder estas eleições e provavelmente todas aquelas em que possa vir a concorrer. Dhlakama é apologista de possuir um exército armado absolutamente na ilegalidade. Isso é banditismo, é crime, com demasiada tolerância por parte do Estado de Moçambique. Dhlakama é um guerreiro frustrado por não ser aceite pela maioria dos moçambicanos. E então pega em armas e num "exército mercenário" que destrói viaturas nas estradas do centro do país, assassina civis, fere-os e deixa-os incapacitados, aterroriza pacatas famílias. É então este individuo, que conduz o seu partido político para o banditismo, a criminalidade, que quer vencer eleições? Só se os moçambicanos fossem dementes masoquistas.

A Renamo e Dhlakama entram sempre em terreno de declarações babosas e ações criminosas contra o Estado moçambicano (que somos todos nós) quando não vence pela razão, no diálogo e nas eleições. Porque a razão não está com eles. Querem o Poder mas a qualquer preço. Em vidas humanas, destruição e terror. Não por conquistá-lo democraticamente. 

Na realidade existiram algumas irregularidades no decorrer destas eleições. Como foi noticiado pela comunicação social. Mas nunca com importância que justifique a diferença de votos que vai de Dhlakama para Nyusi ou da Renamo para a Frelimo. A vitória dos vencedores marca uma diferença abissal em números de votos para com os derrotados. Os eleitores moçambicanos não querem Dhlakama e a Renamo. Não querem a Renamo enquanto lá estiver Dhlakama, nem enquanto tiver um exército irregular vocacionado para o banditismo e a ilegalidade. Foi isso que ficou expresso em democracia. Dhlakama já cometeu erros de mais e arrastou sempre a Renamo para esse teatro de ações prejudiciais à democracia, à paz, a Moçambique e aos moçambicanos. Quando será que Dhlakama adquire olhos e percepção para a realidade?

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