quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A EUROPA EM GUERRA SANTA CONTRA O ISLÃO




Ao reagir de modo preconceituoso e brutal contra atentados em Paris, continente revela-se ignorante diante dos muçulmanos e estimula avanço do terror

Roberto Savio – Outras Palavras - Tradução Inês Castilho

É triste ver como um continente que foi um berço da civilização está caindo cegamente numa armadilha, a armadilha de uma guerra santa com o Islã – e que bastaram seis muçulmanos para chegar a isso.

É hora de sair da compreensível onda “Somos todos Carlie Hebdo” e encarar os fatos, para entender que estamos sendo joguetes nas mãos de uns poucos extremistas, e igualando-nos a eles. A radicalização do conflito entre o Ocidente e o Islã vai trazer consigo terríveis consequências.

O primeiro fato é que o Islã é a segunda maior religião do mundo, com 1,6 bilhão de praticantes, e os muçulmanos são maioria em 49 países do mundo, respondendo por 23% da humanidade. Desse 1,6 bilhão, somente 317 milhões são árabes. Cerca de dois terços (62%) vivem na região da Ásia-Pacífico; de fato, mais muçulmanos vivem na Índia e no Paquistão (344 milhões, juntos). Só a Indonesia tem 209 milhões.

Um estudo do Pew Research Center sobre o mundo muçulmano também nos informa que é no Sul da Ásia que os muçulmanos são mais radicais quanto à observância de preceitos e valores. Nessa região, os partidários de punição física severa para os criminosos são 81%, em comparação com 57% no Oriente Médio e Norte da África, enquanto os favoráveis a executar quem deixa o islã são de 76% no Sul da Ásia, em comparação com 56% no Oriente Médio.

Portanto, é óbvio que é a história do Oriente Médio que traz a especificidade dos árabes para o conflito com o Ocidente. E aqui estão as quatro principais razões.

Primeiro, todos os países árabes são criações artificiais. Em maio de 1916, François Georges-Picot pela França e Sir Mark Sykes pela Grã Bretanha encontraram-se e acordaram um tratado secreto, com apoio do Império Russo e do Reino Italiano, sobre como dividir o Império Otomano, ao final da Primeira Guerra Mundial.

Assim, os países árabes de hoje nasceram como resultado de uma divisão, pela França e Grã Bretanha, sem consideração pelas realidades étnicas e religiosas ou pela história. Alguns desses países, como o Egito, tinham uma identidade histórica, mas a outros, como Iraque, Arábia Saudita, Jordânia ou os Emirados Árabes, faltava até mesmo isso. Vale lembrar que a questão dos curdos – 30 milhões de pessoas divididas entre quatro países – foi criada pelo poder europeu.

Como consequência, a segunda razão. Os poderes coloniais instalaram reis e xeques nos países que criaram. Para governar esses países artificiais, exigiam-se mãos fortes. Assim, desde o início houve uma total falta de participação popular, com um sistema político completamente fora de sintonia com o processo de democracia que estava se dando na Europa. Com a bênção europeia, esses países foram congelados num tempo feudal.

Quanto à terceira razão, os poderes europeus nunca fizeram nenhum investimento em desenvolvimento industrial, ou real desenvolvimento. A exploração do petróleo estava nas mãos de empresas estrangeiras, e somente após o final da Segunda Guerra Mundial, e o processo de descolonização que se seguiu, é que os rendimentos do petróleo vieram de fato para mãos locais.

Quando os poderes coloniais foram embora, os países árabes não tinham sistema político moderno, infraestrutura moderna, gestão local.

Finalmente, a quarta razão, mais próxima dos nossos dias. Em Estados que não providenciaram educação e saúde para seus cidadãos, a religião muçulmana assumiu a tarefa de fornecer aquilo que o Estado não estava provendo. Assim, grandes redes de escolas religiosas e hospitais foram criadas e, quando finalmente se permitiram as eleições, elas tornaram-se a base para a legitimidade e a votação nos partidos muçulmanos.

Essa é a razão, para tomar como exemplo apenas dois importantes países, pela qual partidos islâmicos venceram no Egito e na Argélia, e como golpes militares, praticados com a aquiescência do Ocidente, foram o único recurso para detê-los.

O resumo de tantas décadas em poucas linhas é evidentemente superficial e deixa de fora várias outras questões. Mas esse processo histórico brutalmente abreviado é útil para compreender como raiva e frustração estão agora em todo o Oriente Médio, e como isso leva à atração pelo Estado Islâmico (EI) em setores pobres.

Não devemos esquecer que esse pano de fundo histórico, ainda que remoto para os jovens, é mantido vivo pela dominação de Israel sobre o povo palestino. O apoio cego do Ocidente, especialmente dos Estados Unidos, a Israel é visto pelos árabes como humilhação permanente, e a contínua expansão das colônias de Israel claramente elimina a viabilidade de um Estado Palestino.

O bombardeio sobre Gaza em julho-agosto de 2014, com algum protesto mas nenhuma ação efetiva do Ocidente, é para o mundo árabe a prova de que a intenção é manter os árabes sob domínio e buscar aliança apenas com governos corruptos e ilegítimos, que poderiam ser varridos para longe. E a contínua intervenção do Ocidente no Líbano, Síria, Iraque, e os drones soltando bombas em toda parte, são largamente percebidos entre o 1,6 bilhão como o esforço histórico do Ocidente para manter o Islã de cabeça baixa, como o relatório Pew observou.

Devíamos também lembrar que o Islã tem diversas divisões internas, das quais a sunita-xiita é apenas a maior. Mas, enquanto na região árabe ao menos 40% dos sunitas não reconhecem um xiita como companheiro muçulmano, fora da região isso tende a desaparecer. Na Indonésia somente 26% identificam-se como sunitas, enquanto 56% identificam-se como “apenas muçulmano”.

No mundo árabe, somentes no Iraque e no Líbano, onde as duas comunidades viveram lado a lado, uma larga maioria de sunitas reconhecem xiitas como companheiros muçulmanos. O fato de que xiitas, apenas 13% dos muçulmanos, sejam a maioria no Irã; e os sunitas, a grande maioria na Arábia Saudita, explica os conflitos internos em andamento na região, que estão sendo agitados pelos dois respectivos líderes.

A Al-Qaeda na Mesopotâmia, então dirigida por Abu Musab al-Zarqawi (1966-2006), implantou com sucesso uma política de polarização no Iraque, continuando os ataques a xiitas e provocando uma limpeza étnica de um milhão de sunitas de Bagdá. Agora o ISIS, o califado radical que está desafiando todo o mundo árabe, além do Ocidente, é capaz de atrair muitos sunitas do Iraque, sunitas que sofreram tantas represálias xiitas, e buscavam o guarda-chuva do mesmo grupo que havia provocado deliberadamente os xiitas.

O fato é que, todo dia, centenas de árabes morrem por causa do conflito interno, uma sina que não afeta a maioria da comunidade muçulmana.

Hoje, todos os ataques terroristas que aconteceram no Ocidente, em Ottawa, Londres, e agora em Paris, têm o mesmo perfil: um jovem do país em questão, não alguém da região árabe, que não era nada religiosos durante a adolescência, alguém de alguma maneira à deriva, que não encontrou um emprego, e era solitário. Em quase todos os casos, alguém que já tinha passagem pelo sistema judiciário.

Somente nos últimos anos esse jovem havia se convertido ao Islã e aceitado o chamado do ISIS para matar infiéis. Ele sentia que com isso encontraria uma justificativa para sua vida, se tornaria um mártir, alguém em outro mundo, afastado de uma vida na qual não havia perspectiva de um futuro brilhante.

A reação a tudo isso tem sido uma campanha do Ocidente contra o Islã. A última edição da New Yorker publicou um artigo forte definindo o Islã não como uma religião, mas como uma ideologia. Na Itália, Matteo Salvini, líder do partido de direita e anti-imigrante Liga Norte, condenou publicamente o Papa por engajar-se em diálogo com o Islã, e o comentarista conservador Giuliano Ferrara declarou na TV “estamos numa Guerra Santa”.

A reação geral na Europa (e nos EUA) tem sido denunciar os assassinatos de Paris como resultado de uma “ideologia mortal”, como o presidente François Hollande a denominou.
É certamente um sinal da maré antimuçulmana, e a chanceler alemã Angela Merkel foi obrigada a posicionar-se contra as recentes marchas em Dresden (população muçulmana de 2%) organizadas pelo movimento populista Pegida (sigla em alemão para “Europeus Patrióticos Contra a Islamização do Ocidente”).

Estudos de toda a Europa mostram que a imensa maioria de imigrantes foram bem sucedidos em integrar-se às economias anfitriãs. Estudos das Nações Unidas também mostram que a Europa, com seu declínio demográfico, precisa de ao menos 20 milhões de imigrantes até 2050 para manter-se viável em suas práticas de bem-estar social, e competitiva no mundo. Contudo, o que estamos vendo?

Partidos xenófobos de direita, em todos os países europeus, capazes de levar o governo sueco à renúncia, impor condições aos governos do Reino Unido, Dinamarca e Holanda, e parecendo prestes a vencer as próximas eleições na França.

Deve-se acrescentar que, embora o que aconteceu em Paris tenha sido, evidentemente, um crime hediondo, e a expressão de qualquer opinião seja essencial para a democracia, poucas vezes se assistiu ao nível de provocação do Charlie Hebdo. Especialmente porque, em 2008, como Tariq Ramadan salientou no The Guardian de 9 de janeiro, o jornal demitiu um cartunista que fez piada sobre um link judaico com o filho do presidente francês Nicolas Sarkozy.

Charlie Hebdo era uma voz defendendo a superioridade da França e sua supremacia cultural no mundo, e tinha poucos leitores, os quais obtinha vendendo provocação. Exatamente o oposto de uma visão de mundo baseada em respeito e cooperação entre culturas e religiões diferentes.

Então agora somos todos Charlie, como todo mundo está dizendo. Mas radicalizar o choque entre as duas maiores religiões do mundo não é um assunto menor. Devíamos combater o terrorismo, seja ele muçulmano ou não (não nos esqueçamos de que um norueguês, Anders Behring Breivik, que desejava manter seu país livre da penetração muçulmana, matou 91 de seus conterrâneos).

Mas estamos caindo numa armadilha mortal, e fazendo exatamente o que os muçulmanos radicais desejam: engajando-nos numa Guerra Santa contra o Islã, de modo que a imensa maioria de muçulmanos moderados será tentada a pegar em armas.

O fato de que partidos europeus de direita vão colher os benefícios dessa radicalização resulta muito bom para os muçulmanos radicais. Eles sonham com um conflito mundial, em que transformem o Islã – não apenas qualquer Islã, mas a sua interpretação do sunismo – na religião única. Ao invés de uma estratégia de isolamento, estamos nos envolvendo em uma política de confronto.

E, com exceção do 11 de setembro em Nova York, as perdas de vidas têm sido minúsculas em comparação com o que está acontecendo no mundo árabe, onde em apenas um país – a Síria – 50 mil pessoas morreram no ano passado.

Como podemos cair tão cegamente na armadilha, sem perceber que estamos criando um choque terrível em todo o mundo?

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