Zillah Branco*
Os
que lutaram, através de dezenas de anos, pelo fim da ditadura fascista em
Portugal, enfrentando uma dura realidade de sacrifícios e perseguições
políticas que impediram a fruição da vida familiar e profissional se houvesse
liberdade social no país, certamente hoje se ressentem da "derrota"
sofrida pela Revolução dos Cravos que floresceu em 1974.
Em
menos de um ano, sob os Governos dirigidos por Vasco Gonçalves, foram abertos
os caminhos iniciais de um processo democrático e de dignificação patriótica
pela esquerda organizada: fim da colonização, reforma agrária, apoio aos
pequenos e médios produtores, nacionalização da banca e das empresas
fundamentais ao Estado, legislação em função dos direitos dos cidadãos,
organização sindical, legislação trabalhista, escola pública, saúde pública,
previdência social, salário mínimo e férias, que se compunham com a defesa
ampla da liberdade de expressão, da defesa dos direitos de igualdade social
entre homens e mulheres, proteção aos idosos e crianças, combate aos
preconceitos raciais e de classe.
Durante
este tempo o Partido Socialista, que se apresentara inicialmente como parceiro
do PCP, bandeou-se para o combate ao comunismo sob a influência norte-americana
e alemã (representadas por Kissinger e Helmut Kohl) e dividiu os militares que
haviam dado o golpe fatal à ditadura marcelista. A direita sentiu-se
fortalecida para sair das cinzas do fascismo, criou grupos terroristas como o
ELP e outros com vestimentas multicoloridas de esquerda radical anti-comunista que
serviram de ponta de lança para criar desordens e confundir a população recém
saída de um longo período de repressão. A reboque do medo instilado naquele
ambiente de liberdade, exigiram uma primeira eleição que os colocou à frente do
Governo onde bloquearam as decisões democráticas.
As
reformas começaram com a devolução das nacionalizações ao capital privado e
estrangeiro, com o fim da reforma agrária e compensações aos proprietários do
latifúndio absentista, com a redução do apoio aos serviços sociais. O Governo
ficou entregue ao PS que passou a alternar os seus programas com o PSD que o
sucedia, dando início na década de 80 à submissão ao projeto da União Europeia
de centralizar o governo continental por meio da criação de um Banco Europeu e
da moeda única, o Euro. Aos poucos a UE estendeu os seus tentáculos sobre as
nações europeias substituindo os seus governos nacionais por verdadeiros
"interventores" eleitos pelos povos agora conduzidos por uma imprensa
anti-revolucionária, que despejou a cultura norte-americana disfarçada em
europeia, para alimentar a fome de conhecimento de uma população que preparada
para ser consumista podia comprar televisões e outros apetrechos da
modernidade.
No
início do século XXI desaparecera o ambiente de luta popular pelas conquistas
de Abril, por um desenvolvimento nacional em que o povo era o principal
sujeito, motor da produção nacional e da defesa da dignidade patriótica.
Reduziu-se o espaço da liberdade com a imposição do modelo europeu de grandes
superfícies de mercado e extensas estradas absolutamente inadequadas à vida
nacional mas que favoreciam a entrada dos produtos e turistas vindos dos países
ricos. O povo, este ficou à espera de algum emprego para os mais velhos,
mandando os jovens para a emigração, vivendo nas velhas casas onde cuidam dos
netos sem amparo social. Floresceram os agentes da prostituição internacional,
do tráfico de drogas e da corrupção dos políticos com poder público. Sentiu-se
o peso da derrota.
Os
sociais-democratas de turno no governo, sendo eleitos com o apoio dos grupos
económicos europeus e os órgãos de informação social orientados para selecionar
temas de debate ou entrevistas com base no anti-comunismo ditado pelo Clube de
Bildenberg onde são escolhidos os candidatos interventores na política
nacional, passaram a esbanjar riquezas em obras faraónicas e a tolher o
desenvolvimento de Portugal. O povo, levado pelo cabresto mediático e pelo medo
de perder o emprego e a liberdade anunciada
em tempos de revolução, votou nos que vestiam a capa do socialismo.
O
Estado foi subordinado aos apadrinhados dos interventores que, abdicando de
pensar em português foram contratar assessores estrangeiros para ditar modelos
de conhecimento da realidade e de condução ao enriquecimento de uma elite
superior que bebe o saber junto ao Conselho da Europa e FMI. Começaram a venda
ao desbarato o património nacional, inclusive as velhas construções de Lisboa e
os recantos aprazíveis do Alentejo e Algarve, e a privatização dos serviços
sociais. A soberania nacional foi oferecida como brinde aos assessores que,
para serem contratados, o país pediu créditos que o conduziram à bancarrota. A
história do BES, com todo o malabarismo para roubar os contribuintes,
estendeu-se a outras instituições. Temos um ex-primeiro ministro preso por
crimes de peculato e improbidade administrativa, mas os outros vestiram-se de
defensores de Abril em ano de eleições.
A
vitória da Revolução dos Cravos, no entanto, prossegue o seu curso histórico no
mundo. Como todas as revoluções, desde a revolta de Espártaco, antes da Era
Cristã, e depois a Revolução Francesa que se manteve por 15 anos, a Comuna de
Paris que durou semanas, a Revolução Soviética que aguentou quase 80 anos, a da
China, a do Vietnam, a de Cuba, todas semearam conquistas que alteraram a
história mundial fazendo avançar a humanidade contra o poder de uma elite que
tem o poder do capital. As revoluções não morrem, deixam as brasas sob as
cinzas da destruição causada pela ambição capitalista. Uma lufada de ar livre
reacende o movimento histórico com a sua força imbatível.
A
Revolução de Abril deixou em Portugal o sentido da justiça social gravado na
Constituição e nas leis sociais do trabalho e da segurança social que os
interventores da União Europeia fazem tudo para enterrar. Poucos são os países
que têm sindicatos da polícia e que o movimento sindical reúne operários,
professores, artistas, médicos, funcionários públicos, juízes, pescadores,
trabalhadores rurais, enfermeiros e todas as categorias de trabalhadores unidos
nas reivindicações. A força revolucionária de Abril está viva e recebe a
solidariedade de outros povos que cultivaram as sementes de 1974. A
dignificação do trabalho, a defesa patriótica, formou a mentalidade popular com
os valores políticos de esquerda que sempre está ao lado dos que sofrem e lutam
pela sobrevivência de uma sociedade justa.
O
importante é perceber quem vestiu a pele do revolucionário como o lobo a do
cordeiro. Tornou-se hábito falar em democracia como um modelo a ser aplicado
sobre a sociedade capitalista que mantém a estrutura de exploração de uma elite
privilegiada sobre os que trabalham. Os Estados Unidos, que lidera o poder
imperialista, escolheu um negro para Presidente demonstrando a ausência de
preconceitos para ganhar os votos da população mestiça que predomina no seu
território e elevou. Nada mudou na sua política de invasões e destruição para
espoliar os povos indefesos, a miséria invadiu as casas da classe média
norte-americana e a revolta dos jovens foi liderada pelo terrorismo que a CIA
espalhou como modelo nas sociedades árabes para quebrar a sua estabilidade
mantida pelos princípios tradicionais.
Na
comemoração do 25 de Abril no Parlamento Português, os partidos de direita
louvaram a Revolução dos Cravos substituindo o sentimento impregnado pela
participação do povo pela "inteligência e eficiência" que julgam ser
os únicos que as têm. Típico complexo de superioridade de uma elite que está
longe de conhecer a realidade do seu povo expressa pelos políticos de esquerda.
Vestirão a pele revolucionária para quem não conhece a falta de ética e de
patriotismo que procuram ocultar. "Cuidado com as imitações!"
* Zillah Branco (na foto) Cientista Social, consultora do Cebrapaz. Tem experiência de vida e trabalho no
Brasil, Chile, Portugal e Cabo Verde.