quarta-feira, 1 de abril de 2015

Industrialização em África: um "blue" de B.B.King ou uma "jam-session" de Mingus?



Rui Peralta, Luanda

I - Os movimentos de libertação nacional tinham três objectivos principais: a independência politica, a modernização do Estado e industrialização da economia. Esta necessitava da construção de um mercado nacional e de tecnologia, que só poderia ser adquirida pela importação e recorrendo ao aforro nacional ou ao capital estrangeiro.

A construção do mercado interno é o eixo de todas as políticas de desenvolvimento. Na generalidade das políticas governamentais os Estados africanos confundem este processo com estratégia de industrialização para reduzir importações (e quem sofre são os consumidores, pois ou os produtos não chegam á prateleira - por insuficiência da produção nacional - ou chegam mais caros que os produtos importados, com a agravante de uma qualidade, geralmente, inferior ao produto importado. O nacional não é - para desencanto dos "nacionalistas da mercadoria" e para os sempre incompetentes "empresários patriotas", criados nos gabinetes dos aparelhos políticos e militares e que passam o tempo de mão estendida, indignados com os "estrangeiros - obrigatoriamente bom). Construir mercado interno não é pegar numa estratégia para a exportação e dar-lhe o nome pomposo de "Estratégia Nacional para o Desenvolvimento" ou outro, tirado dos manuais de alcova do marketing politico e/ou empresarial. A fórmula "a industrialização abre o seu próprio mercado, o que permite substituir as importações + a expansão do consumo final + expansão do consumo de bens intermediários e equipamentos simples localmente produzidos + a procura gerada pelo gasto público corrente e trabalhos de infraestrutura" das políticas elaboradas em Bandung atiraram as economias africanas para os braços peludos do neocolonialismo e da eternização periférica.

A modernização, embora alicerçada na industrialização, não é só produção industrial. Urbanização, educação, formação técnico-profissional, serviços sociais, redes de saúde pública, comunicações e transportes, trabalhos de infraestruturas, têm por objectivo parcial servir a industrialização com mão-de-obra qualificada e competente, sem dúvida, mas são também objectivos que têm outros fins: o da construção de um Estado nacional e a modernização da sociedade.

O fracasso da industrialização (e do processo de modernização do Estado e da sociedade) apenas pode ser explicado no seu conjunto, o que implica uma teia complexa de interações entre inúmeros factores inerentes às dinâmicas internas nacionais, regionais e continentais e às complexas interações das dinâmicas externas no cruzamento com as dinâmicas internas e dinâmicas da economia-mundo.  Tentemos pois...

II - 1. Responsabilidades da colonização. A divisão internacional do trabalho que gerou a desigualdade entre os centros industrializados e as periferias não-industrializadas remonta ao século XIX, mais especificamente, á revolução industrial na Europa. África possuía uma vantagem competitiva, os seus recursos naturais que a Europa estava, agora, em condições de aproveitar, uma vez que possuía a vantagem da produtividade. Desta forma África é atirada para o comércio mundial, através da exportação de matérias-primas que abundam no seu subsolo. A Conferencia de Berlim, em 1885, repartiu o continente saqueado entre as potências europeias, que desta forma adquiriram um direito preferencial sobre as riquezas naturais do continente.

Conquistado o continente havia que atribuir-lhe valor. Os recursos das diversas regiões africanas foram quantificados e iniciaram-se os estudos sobre as populações africanas, da história pré-colonial e a análise económica das anteriores fases (pré-industriais, mercantilistas) da colonização. Legitimado e valorizado o saque, inicia-se a exploração. Convém aqui retermo-nos brevemente nos três modelos de colonização: economia de trato; economia de reservas; economia de pilhagem.

A economia de trato incorporou o camponês africano no mercado mundial de produtos tropicais. O camponês africano foi submetido aos monopólios que cartelizavam o mercado e que, com a incorporação do camponês africano na economia-mundo, puderam esbanjar terras e reduzir custos de produção. A economia de reservas foi um modelo utilizado, essencialmente, na África meridional e caracterizava-se pela utilização da migração forçada provinda da agricultura tradicional. Essa mão-de-obra era aplicada a muito baixo custo na extração mineira. A economia de pilhagem, praticada pelas empresas concessionadas, obrigava a que o camponês entregasse um décimo das colheitas á empresa concessionária. Era praticada em regiões onde a economia de trato não tinha condições sociais para a sua  implementação e onde a ausência ou a fraca concentração de recursos mineiros não proporcionasse condições para o desenvolvimento da economia de reserva.

Os resultados destes modos de inserção nos mercados mundiais revelaram-se catastróficos. A valorização colonial é a principal responsável pelas debilidades que fazem-se, hoje, sentir no continente. Atrasou qualquer esboço de revolução agrícola. As condições naturais do continente permitem que se possam extrair excedentes do trabalho dos camponeses, sem investimento na modernização (máquinas e fertilizantes). Por outro lado o trabalho reproduz-se no quadro da autossuficiência tradicional, pelo que não necessita de ser pago. A valorização colonial encontrou um autêntico jardim do Éden, que nem necessitava de custos para a manutenção das condições naturais de reprodução da riqueza, uma vez que os solos agrários e florestais foram saqueados.

2. Responsabilidades do neocolonialismo. As debilidades dos movimentos de libertação nacional e dos Estados africanos independentes remontam à influência colonial, não sendo um produto exclusivo da Africa pré-colonial. As burguesias nacionais e as burocracias africanas corruptas, a deriva macroeconómica que conduz o continente para a subserviência e a persistência das estruturas rurais comunitárias forjaram-se entre 1880 e 1960.

Não é de estranhar que o neocolonialismo se tenha perpetuado e estendido nas dinâmicas políticas africanas. As elites africanas foram geradas no capitalismo mundial e moldadas nas debilidades do capitalismo periférico. Através delas África independente foi relegada para fornecedor de matérias-primas e perpetuada a anterior divisão do trabalho. O conluio entre as elites dirigentes e o imperialismo, ou a inserção das burguesias nacionais africanas e das elites oriundas das burocracias continentais (que ainda não ascenderam á condição de "burguesia", não porque não tenham dinheiro, mas porque ainda não adquiriram a cultura de classe que caracteriza a burguesia nacional como classe social), nas estratégias geoeconómicas do capitalismo mundial (a complacência do capitalismo mundial para com estas elites subservientes contrasta com a hostilidade que o capitalismo mundial encara as burguesias norte-africanas, factor que é explicado pelos objectivos estratégicos geoeconómicos do capitalismo mundial e pelos objectivos geoestratégicos e geopolíticos do imperialismo, que contrastam com os interesses das estruturadas burguesias norte-africanas e do Médio-Oriente).

3. Outros factores. A corrupção da classe politica (factor que está ligado á penetração neocolonial), a debilidade da base económica (causada pelo colonialismo), a baixa produtividade agrícola, são resultantes dos dois pontos anteriores. Isoladamente apresentados estes factores conduzem a uma análise errónea (e comum) que apresentam como solução uma maior integração no capitalismo mundial. África necessita de um forte, inovador e criativo nicho empreendedor, sem dúvida, mas em que contextos sectoriais esse nicho se desenvolveria? A partir da rotura com o casulo da autossuficiência rural, através da promoção de uma agricultura comercial e da agroindústria? Este é um raciocínio de vistas curtas (e - o que é grave - banalizado pelo discurso oficial) que abstrai-se da economia-mundo, em cujo âmbito este processo iria operar e ignora dois factores: a) a via capitalista na agricultura produz um enorme excedente de mão-de-obra sem trabalho e que não poderia transitar para a indústria, comércio ou serviços (África do século XXI não é a Europa do século XIX); b) a construção do mercado nacional tem de começar pela realização de um projecto realista de reforma agrária, que parta das condições existentes e não de pressupostos ideológicos e demagógicos.

4. A guerra fria. Foi uma página virada, na década de 80. Acompanhou os movimentos desde os anos 50 e esteve presente na formação dos Estados africanos. Inseriu o continente nos mecanismos concorrenciais da economia-mundo e definiu processos de acumulação de capital, através do alinhamento num dos dois blocos concorrentes (capitalismo de raiz liberal - mesmo que "social" - e capitalismo  monopolista de Estado), ou no "alinhamento" dos "não-alinhados", reunidos em torno dos princípios de Bandung. A solução seria o "desalinhamento" do projecto pan-africano (em particular o seu desenvolvimento pragmático) mas os contextos em que se desenvolveram os projectos de libertação nacional impossibilitaram essa leitura dissidente (a leitura existia e em alguns casos estava subjacente á formação dos movimentos e ao desencadear de algumas lutas e revindicações, mas estava impossibilitada de expandir-se no seio dos movimentos e das lutas de emancipação politica nacional).

5. O factor guerra e o factor desestabilização politica. Em muitos dos novos Estados africanos a desestabilização política (causada por processos dinâmicos internos ou por aproveitamento externo desses processos) debilitou, ainda mais, a frágil infraestrutura económica. A radicalização de alguns destes processos (a Nigéria, com a guerra do Biafra, ou os sucessivos golpes de Estado em todo o continente)   conduziu a guerras civis ou a conflitos internos de alta intensidade (guerra civil latente ou não proclamada). A estes processos não foram estranhas as dinâmicas externas imperialistas ou as dinâmicas dos mecanismos concorrenciais (guerra fria), nem as alterações nos processos de acumulação de capital, registadas na fase final da ordem mundial do período 1945-1990.

III - 
O conjunto destes factores (sendo o primeiro deles - o colonialismo - o factor central e o segundo  - o neocolonialismo - o factor gerador das diferentes amplitudes dos restantes) constitui o impeditivo principal do arranque industrial em África. A sociedade industrial é uma realidade estranha ao continente, curiosamente cantada, no outro lado do Atlântico (no Norte do Novo Mundo) pelos afrodescendentes da escravatura... basta ouvir um blues de B.B.King ou um solo de Charlie Mingus, um lamento de John Lee Hoocker ou um fraseado do Charlie "Bird" Parker, ou uma curta frase melódica, profundamente "industrial" de Miles Davis...

Basta ouvirmos com os olhos secos, para nos apercebermos dos ecos da sociedade industrial. Neto sabia-o...e Angola (mesmo durante na luta contra os títeres do imperialismo e os seus agentes internos) foi um dos países africanos que quase conseguiu. Faltou-lhe o Pessoano “quase”...talvez por herança colonial. Sozinha continua a África do Sul…o arco-íris industrial.

Bibliografia
Aron, R. Dezoito lições sobre a Sociedade Industrial Ed. Presença, Lisboa, 1981
Dahrendorf, R. Las classes sociales y su conflicto en la sociedad industrial Ed. Rialp, Madrid 1977
Amir, S. Os desafios da mundialização Ed. Dinossauro, Lisboa,2000

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