quinta-feira, 28 de maio de 2015

A história repete-se como farsa: Concessão de terras sem consulta pública em Moçambique



Timothy Wise* - Verdade (mz), em Tema de Fundo

Em finais de Abril de 2015, o Governo de Moçambique começou um processo de consulta pública às comunidades locais do Corredor de Nacala, a respeito do grandioso projecto ProSAVANA, amplamente denunciado por oponentes como uma iniciativa de usurpação de terras. Tais consultas foram imediatamente repudiadas por membros das comunidades, os quais disseram que as reuniões violavam uma série de leis moçambicanas sobre o acesso à informação e o processo de consulta pública com as comunidades afectadas.

O mais ultrajante ainda é que as consultas não aconteceram antes de se falar do projecto, mas, sim, seis anos depois de os investidores brasileiros terem ouvido falar, pela primeira vez, sobre o plano. Dois anos depois, o projecto chegou ao conhecimento do público num momento em que vários conflitos de terra estavam e continuam a eclodir ao longo do Corredor de Nacala.

Agora, a controvérsia história do ProSAVANA está a repetir-se como uma farsa. O Conselho de Ministros de Moçambique está a considerar aprovar um projecto massivo ao longo do rio Lúrio, na região norte do país, sem fazer uma consulta junto a uma população de aproximadamente 500.000 pessoas afectada pelo programa nessa área.

O vale do rio Lúrio: o próximo ProSAVANA?

Em Dezembro passado, um funcionário do Ministério da Agricultura facultou-nos uma informação sobre o projecto do vale do rio Lúrio. Segundo ele, o ProSAVANA era, em larga escala, um fracasso; por isso os investidores não estavam interessados nele, e que o lançamento do plano tinha sido conduzido de forma ruim. Esperava que isso fosse levar a uma mudança, sincera, de comprometimento por parte do Governo em relação a tais projectos controversos de larga escala, mas nada disso aconteceu. O funcionário a que nos referimos disponibilizou-nos uma proposta do programa detalhado para o vale do rio Lúrio.

O projecto em questão continua envolvido num manto de segredos, pese embora o Conselho de Ministros esteja a ponderar aprová-lo. A única informação pública disponível é uma breve apresentação em Power Point feita em Janeiro de 2014 para um grupo selectivo de investidores, agências de desenvolvimento e oficiais do Governo. A proposta de projecto, cujo documento tem quatro centímetros de espessura, não foi disponibilizada ao público.

O projecto do rio Lúrio é enorme, tão grande como qualquer iniciativa do ProSAVANA. Com um orçamento de 4.2 biliões de dólares norte-americanos, ele inclui dois planos de barragens e uma série de programas de desenvolvimento agrário que cobrem uma área de mais de 240.000 hectares (cerca de 600.000 acres). Os planos incluem a construção de infra-estruturas de irrigação para dar apoio a uma ampla gama de grandes, médias e pequenas farmas interessadas em cultivar uma variedade de produtos: algodão, milho, açúcar, etanol e gado.

De acordo com uma análise feita pelo grupo de pesquisa moçambicano Acção Académica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais (ADECRU) e pela organização internacional de movimento social GRAIN, a área da proposta do projecto afectaria cerca de 500.000 pessoas ao longo de nove distritos de três províncias da região norte. O relatório estima que o projecto do rio Lúrio iria deslocar 100.000 pessoas, já que ele atravessa uma das regiões mais populosas da zona rural de Moçambique.

Pesquisadores da ADECRU visitaram, no início de Maio corrente, oito dos distritos afectados. Os residentes e líderes comunitários relataram que eles, para além de não terem sido consultados, nunca ouviram falar sobre esse projecto. A ADECRU solicitou ao Governo uma cópia da proposta do projecto, como previsto pelas leis moçambicanas, mas até 13 de Maio de 2015 eles ainda não tinham recebido resposta alguma. O grupo divulgou, naquele mesmo dia, com a GRAIN, um comunicado de imprensa a denunciar o carácter sigiloso e secretista do projecto e a falta de consulta pública, e solicita ao Conselho de Ministros que o mesmo não seja aprovado.

A história está a repetir-se? Não teria sido uma das falhas fundamentais do ProSAVANA o seu carácter oculto e secreto, além das consultas públicas tardias com comunidades afectadas? As leis de terra em Moçambique são progressistas e prevêem acesso público à informação e consultas públicas prévias junto às populações impactadas pelo projecto. Alguns investidores seguiram tais leis e muitos encontraram comunidades dispostas a trabalhar com eles. Muitos outros não as seguiram.

Durante a nossa visita, em Dezembro último à província nortenha de Nampula, vimos, repetidamente, casos de camponeses que perdem as suas terras em benefício de estrangeiros sem qualquer aviso prévio. Em alguns casos, eles simplesmente encontraram uma cerca a atravessar as suas terras, mesmo quando eles tinham título de posse legal (Direito de Uso e Aproveitamento da Terra – DUAT). Outros não conseguiram sequer encontrar qualquer documentação que indicasse a identidade ou a nacionalidade dos farmeiros que ameaçam as suas terras, e tampouco puderam encontrar os mapas que delineavam as terras que tinham sido concedidas a tais usurpadores.

Em relação ao projecto do rio Lúrio, as investigações da ADECRU não puderam identificar, sequer, os investidores envolvidos. Por outro lado, eles descobriram um consórcio criado para gerir o projecto. Trata-se da Companhia do Vale do Rio Lúrio (CVRL). Dois dos principais membros são a companhia TurConsult, com um passado de desenvolvimento em hotelaria e turismo, e a AgriCane, uma companhia açucareira da África do Sul, que também faz consultoria para projectos de larga escala em África. Até agora ninguém identificou outros investidores internacionais ou as possíveis fontes de financiamento para desenvolvimento provenientes de credores internacionais, embora um dos projectos de barragem possa envolver o Banco Mundial.

Consentimento Crítico

O Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) é um princípio sagrado dos direitos humanos internacionais. As partes afectadas devem ser informadas antes do início de um projecto e elas devem dar o seu consentimento num processo livre de coerção ou intimidação. Esse princípio é consagrado em praticamente todas as directrizes e normas criadas recentemente, tais como as “Directrizes sobre Investimentos Responsáveis em Agricultura” elaboradas pela Comissão Mundial em Segurança Alimentar, e o “Plano de Acção de Nairobi para Investimentos Agrários de larga escala”. Muitos destes instrumentos estavam em discussão na conferência  organizada pela Coligação Internacional para o Acesso à Terra, da qual participámos em Dakar, Senegal.

O que torna um projecto de desenvolvimento agrário de larga escala numa expropriação de terra é a falta de consentimento. No projecto do rio Lúrio, o Governo de Moçambique optou por não disponibilizar as informações antes de aprovar um projecto de larga escala e falhou por não informar e consultar as comunidades afectadas e, muito pior, por não obter o seu consentimento.

As consultas tardias do ProSAVANA podem dificilmente ser consideradas como melhorias. A ADECRU e a Comissão Episcopal de Justiça e Paz de Nampula denunciaram o processo recente de consulta pública como sendo manipulado e por violar as leis de informação do país. Os dois grupos monitoraram 24 das 38 consultas previstas e descobriram membros das comunidades que foram excluídos e intimidados, reuniões abarrotadas com oficiais de Governo, e as informações acerca do novo Plano Director não disponibilizadas a tempo. As consultas não envolveram as muitas comunidades afectadas previstas no plano do projecto.

Projectos agrários internacionais de larga escala continuam a ser controversos mesmo quando são introduzidos de acordo com a lei. Quando esses projectos ignoram os princípios de consentimento livre, prévio e informado, eles estão destinados a gerar sérios conflitos. Veremos mais conflitos como este na região norte de Moçambique, caso o Conselho de Ministros aprove o projecto do vale do rio Lúrio.

* Timothy A. Wise é Director do Programa de Política e Pesquisa do Instituto de Desenvolvimento Global e Meio Ambiente da Universidade de Tufts.

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