sábado, 4 de julho de 2015

A BURGUESIA LUSITANA E AS ELEIÇÕES



José Ferreira [*]

Entre 1985 e 2008, ou seja, do primeiro governo de Cavaco Silva ao primeiro de Sócrates, Portugal foi governado por uma elite composta por poucos sectores: a banca, a construção civil, o sector empresarial do Estado (que inclui empresas recém-privatizadas, mas ainda vinculadas à estratégia conjunta desta fracção burguesa, como a EDP), além de outras empresas dependentes de contratos com o Estado como as empresas de produção de energia. A especulação imobiliária e as obras públicas foram o motor do crescimento económico lusitano e, enquanto pareceu dar certo, os "outros" – quer dizer, os sectores incluídos na outra fracção burguesa – aceitaram ou toleraram esse modelo. Afinal, esta fracção dependeu dos trabalhadores da primeira enquanto seus consumidores.

A crise de 2008 pôs em causa a capacidade de endividamento do Estado e, portanto, o modelo que havia sido organizado sob a batuta de Cavaco Silva. A crise do modelo data do final de 1999, quando a compra de casas começa a diminuir. Por isso, a banca necessitou colocar no governo um homem da sua confiança, José Sócrates, para prolongar o modelo à custa exclusivamente de obras públicas e do endividamento do Estado. Foi somente com o eclodir da crise que os "outros" se organizaram com a liderança dos supermercados. Deixámos de ter os restaurantes (e os supermercados) cheios de pedreiros e funcionários públicos e passámos a ter Soares dos Santos, nas televisões, dizendo mal de Sócrates. Esta segunda fracção da burguesia difundiu a ideia segundo a qual, não fosse o Orçamento de Estado ajudar tanto a construção civil, o país estaria cheio de Auto-Europas… E, ainda que a Auto-Europa, um enclave alemão em Portugal, tenha dado pouca importância a isso, a média e pequena burguesias, bem como um bom número de intelectuais e jornalistas, se alinharam com Soares dos Santos.

Entretanto Passos claudica

Curiosamente, o FMI apenas entrou em Portugal quando o BCE convenceu a banca, no início de Março de 2011, a puxar o tapete a Sócrates. O governo de Passos Coelho foi fruto desta campanha, portanto a expressão política dos sectores burgueses arregimentados e organizados pelos supermercados contra o establishment . Nesse sentido, foi um corte com todos os governos dos últimos 25 anos, como se viu pela sua dificuldade de encontrar ministros experientes. Lembremos as recusas de Manuela Ferreira Leite e António Nogueira Leite. Mas o neoliberalismo radical que ameaçava deixar os bancos à sua sorte, não durou muito. João Talone, administrador de várias empresas, foi taxativo: seguindo o caminho que se antevia no Verão de 2011, a banca seria nacionalizada em dois anos [1] . Ao mesmo tempo, Salgado, Ulrich e outros fizeram questão de lembrar a Passos Coelho que foram eles que chamaram o FMI; cobraram o apoio que o BCE lhes havia prometido. O novo governo, eleito em Junho, ajoelhou-se aos desejos da banca em Setembro!

De tal modo que, depois de se mostrar o mais acérrimo defensor do Estado mínimo contra os trabalhadores, na revisão do Código de Trabalho, Passos Coelho deu passos de tartaruga, quando não de caranguejo, na renegociação das PPPs e das rendas da energia. Aliás, caiu um secretário de Estado para não caírem os "direitos adquiridos" da burguesia. Por certo, os resultados de uma auditoria do Tribunal de Contas, a pedido do PCP, ao programa Parque Escolar desalojaram boa parte dos construtores civis da mesa do Orçamento de Estado. Não obstante, o sector empresarial do Estado e o sector privado dependente do Estado, como as empresas de energia, continuaram a funcionar como intermediários entre o Orçamento de Estado e a banca [2] . A austeridade, uma política apresentada pelos supermercados para desalojar a banca da mesa do Orçamento de Estado, tornou-se o seu inverso. É hoje uma desculpa para pilhar não só os trabalhadores, mas também sectores consideráveis da burguesia a fim de manter os negócios, há muito fracassados, dos banqueiros e seus amigos.

A crise da TSU foi uma nova investida dos supermercados contra o es tablishment que já se tinha apoderado mais uma vez do governo. A negociata que visou colocar os trabalhadores a financiar o investimento das grandes empresas, a maioria delas entre amigos da banca, não poderia agradar aos "outros". Por outro lado, os construtores civis tentaram voltar a ser convivas à mesa do Orçamento de Estado. Se os primeiros se apresentaram diretamente por Belmiro de Azevedo, os segundos se fizeram representar por Carlos Zorrinho, prolongando a crise quando os supermercados já tinham engolido o sapo do apoio da Comissão Europeia ao governo, quer dizer, aos banqueiros. (José Seguro, entretanto, foi um cata-vento, indicando com bastante precisão o sentido da correlação de forças entre fracções burguesas.)

A classe trabalhadora também saiu às ruas. Os ataques, por dois lados, ao governo podiam até não ser bem compreendidos pelos trabalhadores; tornaram, entretanto, evidente que a política do governo não era uma inevitabilidade, mas uma escolha. Por isso, Setembro de 2012 viu duas grandes manifestações e Novembro uma grande greve geral onde os trabalhadores exigiram também ser ouvidos. A burguesia assustou-se; basta comparar a forma como a CIP reagiu a esta greve geral e àquela de Março de 2012. A participação de trabalhadores do sector privado, ainda que pequena, é perigosa, pois põe em causa a táctica dos patrões para mitigar os efeitos das greves. Eles declaram as greves como feitas por funcionários públicos e, portanto, coisa de trabalhadores privilegiados e um problema do Estado. Por essa razão, a burguesia tratou imediatamente de fazer as pazes, com o único objetivo de apresentar ao povo as decisões tomadas – nas lutas intestinas dos corredores do poder – como inevitabilidades. Essa paz podre tem sido, nesse aspecto, bem sucedida, como mostra o refrear do movimento sindical e inorgânico desde Março de 2013 para cá.

Os impasses de António Costa 

Pressionado pela construção civil e pela aristocracia operária que ainda existe no PS, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa tentou derrubar José Seguro, que fora "incapaz" de derrubar o governo durante a crise da TSU. Na verdade, Seguro entendeu bem as consequências para o PS da queda de Passos Coelho no final de 2012. Com o governo cairia o consenso em torno da austeridade, como alertou Jorge Sampaio [3] . E, nessas condições, os "socialistas" não estão dispostos a governar. Costa demorou pouco tempo a aperceber-se disso: anunciou a sua candidatura em Janeiro de 2013 e recuou em Março, fazendo do Congresso de Coimbra um tedioso comício de Seguro.

A paz podre, que encerrou a crise da TSU, foi marcada pela decisão dos construtores civis em voltar à mesa do Orçamento de Estado à boleia no PS. A saída de Jorge Coelho da Mota Engil para regressar à política somente pode ser lida nesse sentido. Mas haveria que esperar pelas eleições ordinárias para que tudo ocorresse por meio da mais suave transição.

Até porque essa decisão dos construtores se deu em simultâneo com a resignação dos "outros" que não sabem como evitar um regresso ao passado. A ideia original está duas vezes morta! Morreu quando ameaçou nacionalizar a banca e morreu novamente com o falecimento do seu melhor ideólogo: António Borges. O seu governo está vencido, embora não convencido. Soares dos Santos emigrou para a Holanda; mas José Gomes Ferreira, o mais competente publicitário deste projecto, parece nem sequer ter dado conta do seu fracasso. Quer dizer, sem capacidade de renovar o seu programa político, a segunda fracção da burguesia, os "outros", divide-se entre calar-se resignados e insistir no mesmo. Quanto melhor conhecem os meandros do poder, mais se resignam; quanto pior conhecem, mais insistem no mesmo.

No final de 2014, quando o sucesso da exploração de gás de xisto nos EUA fez baixar as taxas de juro na Europa, e o Banco Europeu de Investimento ameaçou se tornar alguma coisa de importante, a banca abriu os braços aos construtores civis [4] . Tudo parecia correr bem a Jorge Coelho e António Costa. Mas depressa o céu ensolarado se encobriu de nuvens: a nova indústria norte-americana mostrou enfrentar muitas incógnitas e, mais importante, a Comissão Europeia transformou-se em intransigente defensor do neoliberalismo radical para dar uma lição ao "impertinente" governo grego. Entretanto por cá, uma parcela importante da burguesia tenta, por todos os meios que conhece, impedir o regresso da indústria do betão à mesa do Orçamento de Estado. É este o verdadeiro sentido da candidatura de Henrique Neto a Presidente da República. Por isso teve de ser apresentada antes das eleições legislativas e para influir nelas. Uma atitude pouco adequada; mas a única que o engenheiro soube imaginar.

(Sampaio Nóvoa não é, por seu turno, o candidato dos construtores civis ou mesmo do regresso ao tempo que vai de Cavaco a Sócrates. Nem sequer é o candidato de António Costa. Ele é o candidato de Mário Soares que, preso a uma mentalidade de Guerra Fria, quer secar o terreno ao nascimento de um populismo de esquerda e ao crescimento do PCP. É, por isso, aquilo que foi Manuel Alegre nas palavras de Vital Moreira: "Um bom candidato para perder". E, sobretudo, para impedir a fuga de votos do PS para a sua esquerda.)

O recuo nos avanços tímidos do keynesianismo na Comissão Europeia obrigou António Costa a dar o dito pelo não dito. Foi obrigado a recuar, mas nem ele mesmo entendeu até onde recuar. Ele necessita de mostrar que há alternativa a Passos Coelho, seja para se justificar, seja para abrir espaço para o relançamento das obras públicas. Mas não muito. Costa não se quer arriscar a uma crise como a da TSU, nem está disposto a ir além daquilo que a Comissão Europeia permite. E o espaço de incerteza que parecia haver no final de 2014 parece revelar-se esguio à medida que ele é tacteado por um Syriza, sem as mesmas objecções para mobilizar as massas. Assim, Costa vacila nas suas incertezas e perde votos. Consequentemente, as últimas sondagens já colocavam o PS atrás da coligação de governo nas intenções de voto [5] .

O que deve fazer a esquerda frente a tudo isto? 

Os construtores civis apostaram todas as fichas no regresso do Partido Socialista ao governo. Por essa razão, António Costa está a ser alvo da crítica das estruturas políticas que os "outros" montaram recentemente, em particular o panfleto que dá pelo nome de Observador , para além da candidatura de Henrique Neto. Uma série de acções desconexas (fundadas na dificuldade de organização de uma fração de classe muito heterogenea, que, em comum, têm apenas oposição ao establishment ), encontra, entretanto, a sua força nessa desconexão. Elas apresentam-se como a expressão do sentimento de muitas pessoas e não um projecto político de defesa do governo.

É certo que não se trata de escolher entre dois males. Qual é o menor para os trabalhadores: a aliança entre a banca e os construtores civis ou o mito do Estado mínimo que termina por desaguar numa aliança entre a banca e parceiros de ocasião? Trata-se, por um lado, de esperar, do PS, a exigência dessa escolha do mal menor. Os partidos e organizações de esquerda não podem vacilar: é impossível fazer alianças com um partido previamente aliado àqueles que levaram o país à situação de crise em que se encontra. A esquerda não é avessa a alianças; é avessa a alianças com a burguesia monopolista que, há pelo menos 25 anos (para não dizer desde o 25 de Novembro), conduz os destinos do país.

Mas é necessário também afirmar, frente aos neoliberais empedernidos, sua estupidez ao exigir um Estado mínimo. Passos Coelho, se serviu para algo, foi para provar que ou a banca manda no Estado, ou o Estado manda na banca. O mesmo é válido para empresas too big to fail , como a EDP, a GALP, etc. A sua influência na economia nacional é suficiente para fazerem chantagem com o Estado. É necessário insistir que a única forma de o Estado se livrar da influência desses interesses privados é nacionalizando tais empresas. Ou os monopólios são nacionalizados definitivamente ou o governo é privatizado todos os dias.

Não faltarão certamente oportunidades, na campanha eleitoral que se segue, para afirmar estas duas verdades elementares.

Notas

[1] www.jornaldenegocios.pt/...
[2] Vale, a este respeito, citar o patético Camilo Lourenço: cortar nas PPP "é a conversa habitual de quem não faz contas. (…) Renegociar o que foi assinado implica perdas monumentais para a banca… que já está em situação delicada.". www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/hummm__isto_vai_correr_mal.html .
[3] www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/hummm__isto_vai_correr_mal.html .
[4] www.jornaldenegocios.pt/...
[5] www.jornaldenegocios.pt/... 


[*] Português, pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro. 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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