Expresso
das Ilhas, editorial
Dados
do Afrobarómetro publicitados na semana passada trazem informações no mínimo
intrigantes. A percentagem de cabo-verdianos que consideram que as eleições de
2011 reflectem a escolha dos cabo-verdianos (54%) é a mesma que acredita que
houve suborno no processo eleitoral. A percepção de que houve aumento de
corrupção de 2011 para 2014 é acompanhada da ideia de que não há denúncias
porque as pessoas têm medo das consequências (56%) e que os órgãos de
comunicação social não são eficazes em revelar erros do governo e actos de
corrupção.
A
impressão que sobressai da sondagem é que está-se perante uma sociedade em que
a funcionalidade das instituições e o exercício das liberdades foi de alguma
forma comprometida. É o que basicamente deixa a entender a maioria dos sondados
quando diz que há medo, que a liberdade de imprensa é limitada ou autolimitada
e que o processo eleitoral sofre pressões. A dependência cada vez maior dos
indivíduos em relação ao Estado seria a principal causa deste minguar da
democracia. Dependência essa que acelerou nos últimos anos, à medida que, por
um lado, o peso do Estado aumentou e predominam os investimentos públicos e,
por outro, a economia não cresce o suficiente, o desemprego mantém-se alto e o
sector privado nacional vive tempos difíceis.
Sabe-se
que em situações similares de precariedade e de riscos diversos no futuro
próximo a tendência das pessoas é agarrar no “certo e garantido” que vem do
Estado. Ao enveredar por essa via de assegurar favores e acessos especiais
contêm-se enquanto cidadãos atentos e críticos. Já uma outra motivação tem quem
gere os recursos públicos. Aí a tentação é de usar as múltiplas oportunidades
criadas pelas fragilidades do momento para a compra de lealdades e
condicionamento de comportamentos particularmente em tempos eleitorais. A
institucionalização de facto destas práticas de encontro de dadores e
beneficiários pela via da repetição na televisão e em outros órgãos dá-lhes um
ar de normalidade. Mas ninguém ignora o aproveitamento político subjacente.
Em momentos eleitorais, nacionais, locais e intrapartidários ouvem-se denúncias
desse aproveitamento de recursos do Estado para ganhos eleitorais. Logo depois,
porém, desaparecem numa espécie de buraco negro onde a percepção de que tais
práticas fazem parte do “nosso normal” desculpa os que acusaram, iliba os
alegados prevaricadores e isenta o Ministério Público e outras entidades
fiscalizadoras do trabalho e da preocupação em verificar a veracidade das
afirmações feitas publicamente.
Algum
sentimento de que o “actual normal” não deve ser o normal desejado
pode estar traduzido em parte nessa percepção do aumento da corrupção em certas
entidades detentoras do poder concreto que afecta as pessoas no dia-a-dia. Da
mesma forma a sensação de quase impotência perante o que se passa à volta
poderá estar a manifestar-se na constatação de que os mídia não estão a ser
eficazes em controlar os erros do governo e os actos de corrupção.
Curiosamente, um sentimento similar surgiu há algum tempo atras, sendo
ventilado em relação aos deputados e ao próprio Parlamento. A frustração com a
aparente falta de efectividade do Parlamento levou então a uma espécie de crise
de representação que trouxe à tona discussões várias à volta do
parlamentarismo, dos sistemas eleitorais e do papel dos partidos políticos.
Algo
que alguns podiam chamar de dissonância cognitiva poderá estar a verificar-se.
Por um lado, as pessoas e a sociedade sentem-se apanhadas na teia da realidade
criada pelo discurso oficial que basicamente anuncia “manhãs que cantam” com
clusters diversos e água nas barragens. Por outro, no quotidiano vive-se num
ambiente de letargia económica, de falta de perspectiva de emprego e de algum
receio sobre o que a dívida pesada que o país acumulou poderá representar no
futuro próximo. E todos estão a ver neste mundo de dificuldades crescentes as
consequências de não se encontrar soluções para os problemas de endividamento
do Estado. Perante tudo isto, não há o debate necessário que seria capaz de
revelar a real situação do país e ajudar na ponderação das opções. Nem também a
fiscalização adequada dos actos do governo como se pode extrair dos dados
trazidos a público por este e outros jornais que dão conta de transferências de
recursos públicos a associações diversas num processo que prima pela falta de
transparência.
Na
celebração de mais um Dia Internacional da Democracia (15 de Setembro) os dados
trazidos pelo Afrobarómetro alertam para uma perda da qualidade da nossa
democracia. Não é de estranhar, considerando que a democracia dificilmente pode
dar frutos quando o peso do Estado se faz sentir cada vez mais a todos os
níveis: económico, social e cultural. Democracia, sem uma sociedade civil por
definição autónoma em relação ao Estado, não consegue consolidar-se. Faltará
sempre pressão para se respeitarem as liberdades, para o Estado e seus agentes
se sujeitarem à Lei e para se dar prioridade à criação das condições para que
todos se realizarem e serem felizes e no processo contribuírem para a
prosperidade geral. Problema grave surge quando actos que visam reproduzir a
dependência e manter as pessoas sob controlo passam a ser a forma normal e o
objectivo principal de fazer política. Aí, além da liberdade e da democracia,
está-se a arriscar o futuro. Esta é armadilha que se tem evitar a todo o custo.
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