quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Cabo Verde. CUIDAR DA QUALIDADE DA DEMOCRACIA



Expresso das Ilhas, editorial

Dados do Afrobarómetro publicitados na semana passada trazem informações no mínimo intrigantes. A percentagem de cabo-verdianos que consideram que as eleições de 2011 reflectem a escolha dos cabo-verdianos (54%) é a mesma que acredita que houve suborno no processo eleitoral. A percepção de que houve aumento de corrupção de 2011 para 2014 é acompanhada da ideia de que não há denúncias porque as pessoas têm medo das consequências (56%) e que os órgãos de comunicação social não são eficazes em revelar erros do governo e actos de corrupção.

A impressão que sobressai da sondagem é que está-se perante uma sociedade em que a funcionalidade das instituições e o exercício das liberdades foi de alguma forma comprometida. É o que basicamente deixa a entender a maioria dos sondados quando diz que há medo, que a liberdade de imprensa é limitada ou autolimitada e que o processo eleitoral sofre pressões. A dependência cada vez maior dos indivíduos em relação ao Estado seria a principal causa deste minguar da democracia. Dependência essa que acelerou nos últimos anos, à medida que, por um lado, o peso do Estado aumentou e predominam os investimentos públicos e, por outro, a economia não cresce o suficiente, o desemprego mantém-se alto e o sector privado nacional vive tempos difíceis.

Sabe-se que em situações similares de precariedade e de riscos diversos no futuro próximo a tendência das pessoas é agarrar no “certo e garantido” que vem do Estado. Ao enveredar por essa via de assegurar favores e acessos especiais contêm-se enquanto cidadãos atentos e críticos. Já uma outra motivação tem quem gere os recursos públicos. Aí a tentação é de usar as múltiplas oportunidades criadas pelas fragilidades do momento para a compra de lealdades e condicionamento de comportamentos particularmente em tempos eleitorais. A institucionalização de facto destas práticas de encontro de dadores e beneficiários pela via da repetição na televisão e em outros órgãos dá-lhes um ar de normalidade. Mas ninguém ignora o aproveitamento político  subjacente. Em momentos eleitorais, nacionais, locais e intrapartidários ouvem-se denúncias desse aproveitamento de recursos do Estado para ganhos eleitorais. Logo depois, porém, desaparecem numa espécie de buraco negro onde a percepção de que tais práticas fazem parte do “nosso normal” desculpa os que acusaram, iliba os alegados prevaricadores e isenta o Ministério Público e outras entidades fiscalizadoras do trabalho e da preocupação em verificar a veracidade das afirmações feitas publicamente.

Algum sentimento de que o “actual normal” não deve ser o normal desejado pode estar traduzido em parte nessa percepção do aumento da corrupção em certas entidades detentoras do poder concreto que afecta as pessoas no dia-a-dia. Da mesma forma a sensação de quase impotência perante o que se passa à volta poderá estar a manifestar-se na constatação de que os mídia não estão a ser eficazes em controlar os erros do governo e os actos de corrupção. Curiosamente, um sentimento similar surgiu há algum tempo atras, sendo ventilado em relação aos deputados e ao próprio Parlamento. A frustração com a aparente falta de efectividade do Parlamento levou então a uma espécie de crise de representação que trouxe à tona discussões várias à volta do parlamentarismo, dos sistemas eleitorais e do papel dos partidos políticos.

Algo que alguns podiam chamar de dissonância cognitiva poderá estar a verificar-se. Por um lado, as pessoas e a sociedade sentem-se apanhadas na teia da realidade criada pelo discurso oficial que basicamente anuncia “manhãs que cantam” com clusters diversos e água nas barragens. Por outro, no quotidiano vive-se num ambiente de letargia económica, de falta de perspectiva de emprego e de algum receio sobre o que a dívida pesada que o país acumulou poderá representar no futuro próximo. E todos estão a ver neste mundo de dificuldades crescentes as consequências de não se encontrar soluções para os problemas de endividamento do Estado. Perante tudo isto, não há o debate necessário que seria capaz de revelar a real situação do país e ajudar na ponderação das opções. Nem também a fiscalização adequada dos actos do governo como se pode extrair dos dados trazidos a público por este e outros jornais que dão conta de transferências de recursos públicos a associações diversas num processo que prima pela falta de transparência.

Na celebração de mais um Dia Internacional da Democracia (15 de Setembro) os dados trazidos pelo Afrobarómetro alertam para uma perda da qualidade da nossa democracia. Não é de estranhar, considerando que a democracia dificilmente pode dar frutos quando o peso do Estado se faz sentir cada vez mais a todos os níveis: económico, social e cultural. Democracia, sem uma sociedade civil por definição autónoma em relação ao Estado, não consegue consolidar-se. Faltará sempre pressão para se respeitarem as liberdades, para o Estado e seus agentes se sujeitarem à Lei e para se dar prioridade à criação das condições para que todos se realizarem e serem felizes e no processo contribuírem para a prosperidade geral. Problema grave surge quando actos que visam reproduzir a dependência e manter as pessoas sob controlo passam a ser a forma normal e o objectivo principal de fazer política. Aí, além da liberdade e da democracia, está-se a arriscar o futuro. Esta é armadilha que se tem evitar a todo o custo.

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