Tal
como fez no passado, em que reuniu em dois volumes a sua experiência de vida e
de Governo, Cavaco começou a passar ao papel as suas memórias enquanto chefe do
Estado. O Presidente quer falar para a História
Luísa
Meireles - Expresso
Cavaco
Silva está já a preparar as suas memórias presidenciais e há mesmo quem
arrisque que poderão estar prontas rapidamente, até ao final do próximo ano. O
trabalho preparatório das memórias vai sendo feito a cada momento. Meticuloso
como é, o Presidente faz anotações de cada reunião que realiza, junta e
organiza os documentos e pede os que considera necessários. E arquiva.
O
Expresso já foi até testemunha de como esse ‘arquivo’ pessoal é eficiente.
Quando, em setembro de 2014, num texto sobre os problemas no Grupo Espírito
Santo, foi pedido um esclarecimento à Presidência da República, foi-lhe citada
uma anotação pessoal de Cavaco Silva sobre o objetivo da reunião que estava em
causa. Tal encontro havia-se realizado há mais de um ano.
Numa
outra vez, em novembro de 2014, abordou expressamente o tema: quando perguntado
sobre as razões e o desfecho da chamada “crise de julho de 2013”, quando o
Presidente da República tentou uma solução negociada entre a coligação e o PS,
que se frustrou, disse: “Um dia hei de contar na íntegra, tudo está
documentado”.
Aliás,
é ponto assento na “doutrina de Belém” que não há fugas sobre o que acontece
entre as paredes do palácio cor de rosa. “Quem cá vem tem de ter a certeza de
que o que aqui diz aqui fica”, disse fonte oficial ao Expresso. Em várias
situações, houve trabalho discreto de bastidores que a Presidência poucas vezes
quis publicitar.
Mas
agora, que faltam três meses para abandonar o cargo, Cavaco Silva tem algumas
contas a acertar: alguns dos problemas ou crises do seu mandato nunca ficaram
completamente esclarecidos. Outras, os portugueses nem sequer perceberam, e
Cavaco não pôde ou não quis explicar as razões das suas decisões. As memórias,
tal como a sua anterior “Autobiografia Política”, servirão esse objetivo. Cavaco
quer falar para a História.
É
aliás neste livro que Cavaco Silva adverte sobre o tom que, supostamente,
deverão inspirar também os novos escritos: “Falo acima de tudo do que se passou
comigo, da minha própria ação, dos episódios em que participei, das minhas
decisões e atitudes (...) as apreciações e juízos quanto a factos e pessoas
foram os que fiz na altura em que os acontecimentos tiveram lugar e refletem um
natural subjetivismo”. Em suma, não é preciso citar Ortega y Gasset para se
perceber que é “o homem e a sua circunstância”.
DA
CRISE DOS AÇORES AO GOVERNO DE COSTA
Não
se sabe quais são os temas que Cavaco Silva vai eleger para contar. Mas podem
presumir-se, a partir do registo das crises ou acontecimentos mais relevantes
dos seus dois mandatos. Desde a primeira delas, a chamada crise do Estatuto dos
Açores, que fez parar o país no último dia antes de férias, em 2008, à espera
de uma intervenção do Presidente da República.
O
tema era desconhecido da generalidade dos eleitores. Cavaco Silva contestava
que, para dissolver a Assembleia açoriana, tivesse de fazer mais audições do
que para fazer o mesmo em relação ao Parlamento da República. A maioria dos
portugueses não percebeu o que se passava, mas deu-se conta de que a famosa
“cooperação estratégica” entre o Presidente e o Governo de Sócrates tinha
levado um golpe. Mais tarde, Cavaco Silva revelaria que tinha sido enganado no
processo de preparação da lei por “dirigentes políticos”. A lei acabou no
Tribunal Constitucional.
Da
crise dos Açores ao processo de formação do atual Governo (e o PR quererá
justificar porque empossou um Executivo a cujo primeiro-ministro indigitado
pediu explicações que não o esclareceram), passando pelos seis anos de
coabitação com José Sócrates, o único primeiro-ministro na história da
democracia que foi acusado de deslealdade por um Presidente, há muitos temas.
É
o caso, por exemplo, do chamado “caso das escutas de 2009”, nunca cabalmente
esclarecido, segundo o qual Belém estaria a ser escutado pelo gabinete do
primeiro-ministro. O caso levou ao afastamento do seu assessor de imprensa de
sempre, Fernando Lima, mas o que aconteceu realmente até hoje não se sabe. Ou o
caso da alteração da localização do aeroporto, que Sócrates queria na OTA e
passou para Alcochete, ou da frustração da compra pela Ongoing da TVI.
A
campanha eleitoral para as presidenciais de 2011, com o agitar do caso BPN e da
aquisição da casa da Coelha, deixou marcas indeléveis que acabaram por
conduzir, em última análise, ao duro discurso de tomada posse, que dá o tiro de
partida para a saída de Sócrates.
Os
meandros do PEC 4 (e a falta de informação do Presidente), o resgate e, já com
o Governo de Passos, o fim da TSU (setembro de 2012), decidido no final de um
Conselho de Estado, a inopinada visita a Belém, num sábado de abril, de Passos
Coelho e o então ministro das Finanças, Vítor Gaspar (o Tribunal Constitucional
chumbaria o orçamento de 2013 enviado em fiscalização sucessiva pelo PR), ou a
já falada crise do “irrevogável”, em julho desse ano, são outros tantos. Se
Cavaco quiser, tem mesmo muito que contar.
O
convento. Quando o atual Presidente da República terminar as suas memórias estará
já a ocupar o local de trabalho que lhe está reservado numa parte do Convento
do Sacramento, em Alcântara, o local escolhido para o seu gabinete de
ex-Presidente. Cavaco Silva terá direito a um gabinete, uma secretária, um
assessor e carro com motorista e combustível, tal como acontece com os seus
antecessores. O edifício sofreu obras de reabilitação.
Texto
publicado na edição do Expresso de 5 dezembro 2015
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