Carlos
Roberto Saraiva da Costa Leite*
A
figura do príncipe Custódio Joaquim de Almeida (1831? -1935) sempre me
despertou curiosidade. Envolto em mistérios e mitos, ele faz parte do
imaginário citadino de Porto Alegre, principalmente na Cidade Baixa,
prolongamento da antiga Colônia Africana. Neste local, tradicional espaço de
resistência cultural dos afrodescendentes, fixou moradia, vivendo, com sua
Corte, os hábitos e requintes próprios da nobreza.
O
início desta trajetória nos remete à “Mãe África”. Com o domínio dos ingleses,
na região de Benin, antigo Reino de Daomé, ele foi obrigado a deixar a sua
terra natal. A princípio, o príncipe negro teria embarcado no Porto de Ajudá,
em Benin, no ano de 1862 ou 1864, e chegado à Bahia, no Brasil, em 1864, ou,
segundo outros autores, em 1898. Logo depois, teria seguido para o Rio de
Janeiro, onde permaneceu em torno de dois meses. É provável que a opção do
príncipe, naquele momento, pelo Brasil, pode ter ocorrido devido à presença da
etnia negra, em nosso país, na condição de escravos oriundos da Costa da Mina:
os “pretos-mina”.
Após
consultar o jogo de Ifá (búzios), os orixás determinaram que ele seguisse para
o sul do Brasil, para que se cumprisse seu Odu (destino) e assim foi
feito... O príncipe chegou à cidade
portuária de Rio Grande (RS), de acordo com algumas fontes, em 1899,
permanecendo, ali, por um tempo; mudou-se, em 1900, para Pelotas e, após um
período, seguiu para Bagé. Neste ínterim, o príncipe ganhou notoriedade, como
curandeiro, por onde havia passado. Finalmente, em 1901, o príncipe negro
chegou a Porto Alegre, que totalizava 73.274 habitantes, iniciando uma nova
fase de sua vida, onde viveu os 34 anos restantes de sua existência.
A
oralidade perpetua que Julio Prates de Castilhos (1860-1803), presidente do
estado, teria mandado buscá-lo, em Pelotas, visando à cura espiritual do câncer
de garganta que vinha, há algum tempo, sofrendo por ser fumante inveterado. A
oralidade divulga que Julio de Castilhos teria melhorado, por um curto período,
pois, em 1903, veio a falecer. Também se divulga que a esposa de Augusto Borges
de Medeiros, dona Carlinda, durante a Revolução de 23, teria procurado o
príncipe negro, para pedir-lhe proteção espiritual para o seu marido que
sofria, naquele momento, forte oposição devido a seu governo centralizador e à
crise presente na pecuária gaúcha. O historiador Sérgio da Costa Franco
discorda de que tenha havido contato destas personalidades da nossa política
local, no âmbito da religiosidade, pois eram positivistas e tinham uma visão
cientificista da sociedade, não admitindo nada que escapasse ao crivo da
racionalidade.
Infelizmente,
devido à parca documentação, sobre a vida do príncipe negro, há muitas
discordâncias quanto a alguns fatos perpetuados pela oralidade. Reza a
tradição, também, de que o príncipe recebia, no Brasil, uma pensão em libras
esterlinas enviada pelo governo inglês, embora não se tenha encontrado
comprovação documental.
A
tradição descreve o príncipe Custódio Joaquim de Almeida como um homem alto,
corpulento, vestido com trajes da nobreza africana, o que se confirma pela
existência de um quadro no Museu Antropológico de Porto Alegre. O príncipe
costumava desfilar de carruagem pelas ruas de Porto Alegre, criava cavalos
árabes e falava, fluentemente, o francês e o inglês. Um de seus principais
lazeres era frequentar o Prado da Independência, pois era um apaixonado por
corridas de cavalo. Em sua residência, Rua Lopo Gonçalves, nº 498, vivia os requintes
da nobreza e costumava receber visitas de importantes personalidades.
Atualmente neste endereço se encontra um edifício. O príncipe gostava de
organizar suntuosos banquetes para receber os amigos. Nestes encontros eram
servidas finas iguarias que vinham acompanhadas por licores e vinhos
importados.
As festas religiosas (o Batuque), em homenagem
aos orixás, faziam parte do calendário local, sendo bastante prestigiadas por
curiosos, admiradores e adeptos que se dirigiam a seu ilê (casa). Nestas ocasiões,
os atabaques eram tocados pelos ogãs nilús (tamboreiros), enquanto os alabês
cantavam os axés (rezas), que narravam a vida e os feitos dos orixás no dialeto
da sua terra (Iorubá). O príncipe era regido, espiritualmente, pelo orixá Ogum
que é senhor da guerra e auxilia o ser humano em suas lutas materiais e
espirituais ou, segundo outros pesquisadores, era filho de Sapatá, uma
qualidade do orixá Xapanã, conhecido, também, por Omulu que controla as doenças
e epidemias.
A
oralidade popular reproduziu fatos sobre sua vida, que, no mínimo, despertam
curiosidade, onde o misticismo, sua posição nobiliárquica e a relação com
figuras ícones da nossa política, como Julio Prates de Castilhos (1860-1903)
Borges de Medeiros (1863-1961) e Getúlio Vargas (1882 -1954) estão presentes.
Conta-se que o príncipe intervinha com seus poderes de babalorixá (sacerdote
religioso no culto africano) no desencadeamento de fatos políticos importantes
no estado. Seus poderes espirituais e seu conhecimento das propriedades curativas
das ervas se tornaram conhecidos nos mais distantes lugares do nosso
estado. A maior festa, que a Cidade
Baixa presenciou, foi quando o príncipe negro completou 100 anos de idade. Naquela ocasião, figuras
de destaque social, na capital, foram abraçá-lo em seu Ilê (casa). Durante a festa, o príncipe causou surpresa,
montando a cavalo, sem demonstrar nenhuma dificuldade física, pelo contrário,
esbanjou vitalidade.
Quando o príncipe negro chegou a Porto
Alegre, em 1901, encontrou uma cidade progressista, que crescia, dilatando seu
perímetro urbano e, consequentemente, empurrando para a periferia as camadas
mais pobres que não tinham condições socioeconômicas. Os habitantes da urbe
imitavam o modelo burguês europeu nos seus gostos, na prática do lazer, no
vestuário, frequentando o teatro. Era a
“Belle Époque” que vivenciávamos.
A abolição da escravatura, ocorrida em
nosso estado, em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea (1888), não trouxe
consigo um projeto de inclusão do negro em uma sociedade capitalista e
competitiva que se apresentava em expansão, mudando as relações e conceitos de
trabalho de acordo com a filosofia positivista. Esta, inspirada em Augusto
Comte (1798-1857), foi adaptada no estado como “Ditadura Científica”,
sintetizada no lema de nossa bandeira: “Ordem e Progresso”. Desta forma, ao negro desamparado e
socialmente despreparado para enfrentar esta nova realidade, restou-lhe o
subemprego, a marginalidade, além do estigma de escravizado. Foi assim, diante
desta dura realidade de exclusão social, que o príncipe negro encontrou seus
irmãos de etnia.
Não há registros de que tenha lutado
politicamente em favor de sua raça, mas sua presença amenizou a perseguição
policial aos cultos de matriz africana, pois sua figura reproduzia o modelo
burguês da classe dominante: era um príncipe, descendia de uma nobre linhagem
africana e convivia com respeitáveis figuras da política local, além de ser
renomado Babalorixá (sacerdote religioso). Estes fatos lhe conferiam admiração,
ou talvez surpresa, por parte de seus “irmãos de cor” que sofriam o processo de
exclusão desta mesma elite branca que o admirava pelo seu status e a forma,
vista como exótica, de como se apresentava e convivia em sociedade.
O príncipe negro não foi o responsável pela
introdução do Batuque, no Rio Grande do Sul, ainda que muitos perpetuem essa
ideia. De acordo com dados impressos em periódicos que circularam, no século
19, em Pelotas e Rio Grande, já havia cultos de matriz africana antes da sua
vinda ao Rio Grande do Sul. Assim, já
encontramos, por exemplo, no Jornal do Commércio, de abril de 1878, o registro
da presença do batuque na Província de São Pedro (RS). Essas regiões,
tradicionalmente, ligadas à economia do charque se utilizavam de mão de obra
escrava, portanto bastante presente o legado cultural da etnia negra.
Todos estes fatores fizeram do príncipe uma
referência para um segmento social, marcado pela pobreza, que se concentrava em
espaços da cidade conhecidos, como a Colônia Africana (Cidade Baixa), Ilhota,
Areal da Baronesa e Mont’Serrat. Estes
locais foram os mais importantes e populosos redutos de resistência cultural
dos afrodescendentes, donde surgiram respeitáveis nomes que exerceram a
religiosidade africana, legando a seus descendentes os mistérios e segredos do
culto aos orixás. Esta tradição milenar
atravessou o Oceano Atlântico e criou raízes em solo brasileiro. Aculturou-se
para poder sobreviver às perseguições impostas pela cultura dominante.
Hoje, os templos ou “casas de religião” de
matriz africana são frequentados por brancos e negros que encontram neste
legado cultural, do qual o príncipe Custódio é um ícone, conforto e respostas
para suas indagações de cunho filosófico e espiritual. Nomes, a exemplo de mãe
Madalena de "Oxum", mãe Deolinda de Xangô, mãe Andrezza de Oxum, pai
Idalino de "Ogum", entre outros, destacaram-se no culto aos orixás e,
até os dias atuais, são reverenciados, constituindo-se em verdadeiros troncos
da tradição religiosa de matriz africana, conhecida em nosso estado com a
denominação de "Batuque" ou "Nação dos Orixás".
Faz parte do cotidiano, os
porto-alegrenses observarem, no Mercado Público, religiosos, com seus ricos
trajes ritualísticos (axós), fazendo suas saudações ao Exu Bará: o mensageiro
dos orixás e dono da chave que abre os caminhos materiais e espirituais do ser
humano. Esta tradição religiosa está
ligada à figura do príncipe Custódio Joaquim de Almeida, que teria feito um
assentamento deste orixá (ritual religioso), talvez, enterrando um ocutá -
pedra com o axé (energia)- que representa e irradia a força do orixá no centro
deste Mercado.
Outra questão, que suscitou polêmica, durante
muito tempo, é quanto ao seu nome original na África. O pesquisador e
jornalista Roberto Rossi Jung, em seu excelente
livro, “O Príncipe Negro” (2007), p. 37, editado pela Martins Livreiro,
registra, após ter realizado exaustiva pesquisa, que o nome africano do
príncipe, Osuanlele, é um equívoco, pelo fato que se trata de outra personagem,
falecida, em 1920, na Nigéria. Quem nos traz esta informação, presente na obra
de Jung, é o escritor Alberto Costa e Silva. É comprovado, por meio do atestado
de óbito, que o nosso biografado viveu até o ano de 1935, logo seu nome
africano não pode ser o que alguns lhe atribuem, ou seja, sua identidade
original segue como uma incógnita a ser desvendada pelo caráter detetivesco de
alguns incansáveis pesquisadores.
Custódio Joaquim de Almeida faleceu, com 104
anos, em 28 de maio de 1935, na capital gaúcha. Sua existência, povoada de
mistérios, segue desafiando os pesquisadores mais atentos e comprometidos com a
verdade dos fatos, perpetuados, pelo imaginário popular, através do tempo. O
arissum (ritual fúnebre), de acordo com a seita que professava, foi feito na
intenção de desligar seu egun (espírito) do mundo material. De acordo com a antropóloga Maria Helena
Nunes da Silva, O príncipe negro foi pai de cinco filhos com sua companheira
Serafina Moraes Ferreira: dois homens e três mulheres. O único documento
oficial, que comprova a existência dessa personagem, além dos jornais da época,
é o seu registro de óbito, que se encontra no setor administrativo do Cemitério
da Santa Casa de Misericórdia.
De acordo com tradição oral, o cortejo
fúnebre do príncipe negro, ao som dos atabaques, foi acompanhado por uma
multidão de admiradores e adeptos religiosos, sendo comparado o féretro ao do
presidente do estado Julio Prates de Castilhos. Os principais jornais da época,
como "A Federação" (1884-1937), "Diário de Notícias“ (1925-1979)
e o “Correio do Povo” (1895) registraram a morte do príncipe negro, destacando
sua importância nobiliárquica e seus costumes. Estes periódicos fazem parte da
hemeroteca do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, localizado, na Rua
da Praia, no centro de Porto Alegre, nº 959.
Da árvore genealógica do príncipe, há depoimentos orais no DVD, “A
Tradição do Bará do Mercado - Os Caminhos Invisíveis do Negro em Porto Alegre”,
de sua neta Serafina de Almeida Conceição e dos bisnetos Marcus Vinicius de
Souza de Almeida e Caio Juliano de Souza de Almeida.
Com certeza, a figura do príncipe negro,
Custódio Joaquim de Almeida, continuará fazendo parte do imaginário de nossa
cidade, pois, como afirma o ditado popular: “Quem conta um conto aumenta um
ponto”. Quem sabe, de repente, se os desígnios de Obatalá (divindade criadora
do mundo) e os caprichos de Iroko (orixá que rege o tempo) façam emergir, da
poeira do tempo, documentos que comprovem a tradição oral que norteia a vida de
Custódio Joaquim de Almeida, o príncipe negro, dando-lhe a real dimensão que
merece ocupar na história...
*Pesquisador
e coordenador do Setor de Imprensa do Musecom
Bibliografia
BRUM, Eliane. Um Príncipe Negro Reinou no Rio
Grande do Sul. Jornal Zero Hora, Geral, Porto Alegre, edição de domingo,
18/07/1993 [p.34].
COSTA
e SILVA, Alberto da. Um Rio chamado Atlântico: A África no Brasil e o Brasil na
África. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira / UFRJ, 2003.
FAGUNDES,
Antônio Augusto. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro,
2006.
JUNG,
Roberto Rossi. O Príncipe Negro. Porto Alegre: Edigal / Renascença, 2007.
MIRANDA,
Marcia Eckert; LEITE, Carlos Roberto Saraiva da Costa. Jornais raros do
Musecom: 1808-1924. Porto Alegre: Comunicação Impressa, 2008.
ORO,
Ari. Religiões Afro-brasileiras do Rio grande do Sul: Passado e presente.
Estudos Afro-Asiáticos vol. 24, nº 02, Rio de Janeiro, 2002.
PEREIRA,
Leandro Balejos. Um príncipe africano em Porto Alegre que rezava, curava e
treinava. Monografia / história, UFRGS, Porto Alegre, 2010.
PESAVENTO,
Sandra Jatahy Pesavento. Uma outra
Cidade / O mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 2001.
SCHWARCZ,
Lilia Moritz. Retrato em Branco e
Preto.Jornais, Cidadãos e escravos. Século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
SILVA,
Maria Helena Nunes da. O Príncipe Custódio e a Religião Afro-Gaúcha. Dissertação
de Mestrado em Antropologia, UFPE. Recife, 1999.
SILVA,
Vagner Gonçalves da. (Org.) Imaginário Cotidiano e Poder. São Paulo: Editora
Selo Negro 2007.