quarta-feira, 30 de março de 2016

Portugal. DUAS MAIORIAS, DOIS GOVERNOS, DOIS PRESIDENTES



Miguel Guedes – Jornal de Notícias, opinião

Sendo quase impossível, a comparação entre os inícios de mandato de Cavaco e Marcelo está na ordem do dia e tem um traço identitário político comum. Oriundos da mesma área política, Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa chegaram a chefe de Estado ganhando as eleições presidenciais com duas maiorias absolutas à primeira volta e deram de caras com duas "maiorias absolutas" sentadas no Governo. Maiorias bem distintas, porém: em 2006, com a de José Sócrates; em 2016, com a de António, Catarina e Jerónimo, uma "maioria absoluta" pós-eleitoral e de incidência parlamentar, pronta a re(des)fazer-se. Cavaco Silva nunca poderia lidar com tamanha pluralidade, engenho e quantidade mas - convenhamos -, lidar com um Governo maioritário de Sócrates (e, posteriormente em 2009, com um Governo minoritário do mesmo) era semelhante a lidar com uma turba ou multidão a irromper a uma só voz. Rezam as crónicas que Cavaco, ainda assim, preferia mil vezes cooperar inicialmente com Sócrates do que render-se finalmente a Passos.

O desejo hegemónico de Sá Carneiro de "uma maioria, um Governo, um presidente" deve ser interpretado no contexto de época. Nunca foi fácil e ilude muita gente. Na realidade, concretizou-se no breve espaço temporal em que Jorge Sampaio e Sócrates coabitaram em Belém e São Bento, entre Março de 2005 e de 2006. Logo depois, chegaria Cavaco para destruir o velho sonho social-democrata. As primeiras palavras de Cavaco foram para o desejo de "fazer obra em comum" com o Governo de Sócrates e em estreita "cooperação estratégica". Mas se olharmos, no ano de 2016, para a expressão do deputado do PSD José Matos Correia, após a aprovação do Orçamento do Estado (OE) por Marcelo, entramos num mundo de ficção científica onde se esperaria que o novo chefe de Estado derrubasse o Governo mesmo após ter dado uma bela bofetada política a Passos Coelho há poucos dias. "O país não pode viver sucessivamente em campanhas eleitorais", sustentava Marcelo há cerca de um mês, quando parte do PSD parecia não acreditar que fosse tempo de arrumar com os pin"s da lapela. Lá continuam, à espera do rigor. Matos Correia, instado a comentar a aprovação do OE por Marcelo, chegou a afirmar não estar ali para comentar o discurso do presidente. Lá continuam.

Outro traço identitário comum em forma de interrogação: por que será que Cavaco e Marcelo ostentam profundo desprezo por Passos Coelho? A social-democracia não se entende, talvez porque já perdeu o fio à meada da sua corrente ideológica, desistiu de ir a jogo político apostando na actual abstinência e já nem sequer o seu mais trivial parceiro de poder mora ao lado. Já não há cirurgias pendentes ou fio de sutura no PSD de Passos. Este PSD só se entenderá novamente com "uma maioria, um governo, um presidente" e só se Marcelo quiser. E não é ele, actualmente, um dos últimos resquícios da social-democracia no partido?

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