terça-feira, 31 de maio de 2016

EUA: AS ELEIÇÕES PREPARAM A GUERRA




Depois de renovar o arsenal atômico, Obama provoca Moscou e Pequim. Hillary ataca Trump, o repulsivo. Mas é ela, supostamente sofisticada, que representa a hiper-militarização

John Pilger*, no Conterpunch – Outras Palavras - Tradução Vila Vudu

Há poucos anos, assisti a uma exposição popular intitulada “O Preço da Liberdade”, na venerável Smithsonian Institution em Washington. As filas de pessoas comuns, a maioria crianças que entravam como se ali fosse uma caverna de Papai Noel do revisionismo, recebiam sortimento variado de mentiras: a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki salvou “um milhão de vidas”; o Iraque foi “libertado [por] ataques aéreos de precisão inigualada no mundo”. O tema era indiscutivelmente heroico: só os norte-americanos pagam ou algum dia pagaram o preço da liberdade”.

A campanha presidencial de 2016 é notável, não só por causa da ascensão de Donald Trump e Bernie Sanders, mas também pela resiliência do impenetrável, duradouro silêncio sobre uma divindade assassina, autorreverenciada. Um terço dos membros da ONU já sentiram o peso do tacão norte-americano, derrubando governos, subvertendo a democracia, impondo bloqueios e sanções. A maioria dos presidentes responsável por tudo isso eram do Partido Democrata – Truman, Kennedy, Johnson, Carter, Clinton, Obama. (…)

Vejam Obama. Agora que se prepara para deixar a presidência, os elogios incansáveis já recomeçaram. Obama é “cool“. Um dos presidentes mais violentos e mortíferos, Obama deu rédea solta ao aparelho de produzir guerras do Pentágono do presidente (desacreditado) que o antecedeu. Processou mais vazadores de informações secretas (whistleblowers) – gente que arrisca a vida para dizer a verdade aos semelhantes – que qualquer outro presidente. Declarou Chelsea Manning culpada, antes de haver sequer julgamento. Hoje, Obama comanda campanha mundial de terrorismo e de assassinatos por drones, de dimensões absolutamente jamais vistas.

Em 2009, Obama prometeu ajudar a “livrar o mundo das armas atômicas” e deram-lhe o Prêmio Nobel. Nenhum presidente algum dia construiu mais ogivas nucleares que Obama. Está “modernizando” o arsenal apocalíptico cos EUA, inclusive com novas ‘mini’ bombas atômicas, cujas dimensões e tecnologia ‘inteligente’ (sic), diz um dos altos generais dos EUA, asseguram que o uso das tais bombas “deixou de ser impensável”.

James Bradley, autor do best-seller Flags of Our Fathers e filho de um dos marines que fincaram a bandeira dos EUA em Iwo Jima, disse, “[Um] Grande mito que estamos vendo em cena hoje é que Obama seria alguma espécie de sujeito ‘pacífico’, tentando livrar-se de bombas nucleares. É o maior matador nuclear de que se tem notícia. Meteu os norte-americanos numa trilha de ruína, de gastos de 1 trilhão de dólares em mais armas atômicas. Sabe-se lá por quê, as pessoas vivem nessa fantasia de que, porque Obama faz palestras vagas e ainda mais vagos discursos e faz pose para fotógrafos amigos, alguma dessas coisas teria a ver com a política real. Não. Nada têm a ver uma coisa e outra.”

No governo de Obama, está-se construindo uma segunda guerra fria. O presidente russo é o ‘malvadão’ de filme; os chineses ainda não voltaram a ser a velha caricatura sinistra com rabo de porco que lhes correspondeu no passado – quando os chineses foram banidos dos EUA –, mas os jornalistas pró-guerra já trabalham nisso.

Nem Hillary Clinton nem Bernie Sanders sequer tocaram nesses temas durante a campanha, nem remotamente. Não há perigo. Nenhum perigo ameaça sejam os EUA, seja toda a humanidade. Para os candidatos, não aconteceu o maior acúmulos de forças militares junto às fronteiras da Rússia desde a Guerra Mundial. Não aconteceu. Dia 11 de maio, a Romênia entrou em cena ‘ao vivo’, com uma base “de mísseis de defesa” da OTAN, que existe para que os EUA tenham a prioridade de um primeiro ataque diretamente contra o coração da Rússia, a segunda maior potência nuclear do mundo.

Na Ásia, o Pentágono está enviando navios, aviões e forças especiais para as Filipinas, para ameaçar a China. Os EUA já cercam a China com centenas de bases militares que desenham um arco, da Austrália até a Ásia, atravessando o Afeganistão. Para Obama, trata-se de “pivô para a Ásia”.

Consequência direta disso tudo, a China já mudou oficialmente sua política nuclear, de “nenhum primeiro ataque”, para alerta máximo, e já pôs no mar submarinos armados com armas atômicas. A escalada da guerra avança, cada vez mais rápida.

Foi Hillary Clinton quem, como secretária de Estado em 2010, elevou o tom das reivindicações sobre penhascos e barreiras de corais no Mar do Sul da China, qualificando-os como “territórios contestados” e fez disso uma questão internacional; na sequência, foi a histeria de CNN e BBC, para as quais a China estaria construindo pistas de pouso nas ilhas em disputa. Nesse jogo dela em 2015, para guerra de proporções de mamute, a Operação Talisman Sabre, os EUA treinaram ataques contra o estreito de Malacca, por onde transitam quase todo o comércio e o petróleo chineses. Nada disso foi manchete.

Hillary declarou que os EUA teriam “interesse nacional” naquelas águas asiáticas. Filipinas e Vietnã foram encorajados e subornados para que mantivessem as “demandas” e as disputas contra a China. Nos EUA, as pessoas já estão sendo adestradas para ver qualquer posição defensiva dos chineses como agressão. Vale dizer que o cenário está pronto para escalada rápida rumo à guerra. E escalada similar de provocação e propaganda está em ação também contra a Rússia.

Hillary, a “candidata mulher”, deixa por onde passa uma trilha de golpes sangrentos e morticínio: em Honduras, na Líbia (plus o assassinato do presidente da Líbia) e na Ucrânia.

A Ucrânia agora é uma espécie de parque temático da CIA, pululando de nazistas, linha de frente de guerra que está sendo construída contra a Rússia. Foi através da Ucrânia – literalmente, através daquela área de fronteira – que os nazistas de Hitler invadiram a União Soviética, que perdeu, naquela guerra, 27 milhões de pessoas. Essa catástrofe épica é presença eterna na Rússia. A campanha de Hillary à presidência recebeu dinheiro de nove das dez maiores empresas fabricantes de armas do mundo. Nenhum outro candidato sequer se aproxima desses ‘números’.

Sanders, esperança de tantos jovens norte-americanos, não é muito diferente de Clinton nesse ideário pelo qual os EUA seriam proprietários do mundo além fronteiras. Sanders apoiou o bombardeio ilegal contra a Sérvia, no governo de Bill Clinton. Apoia o terrorismo de Obama operado por drones, a incansável provocação contra a Rússia e o retorno das forças especiais (esquadrões da morte) ao Iraque. Não disse coisa alguma sobre o crescendo das ameaças à China e o risco crescente de guerra nuclear. Concorda com que Edward Snowden deve ser processado e chama Hugo Chavez – o qual, como o próprio Sanders, foi social-democrata –, de “falecido ditador comunista”. E já prometeu apoiar Clinton, se for a escolhida.

A eleição entre ou Trump ou Hillary é a velha conversa fiada de escolher alguma coisa, quando de fato não há escolha: as duas faces da moeda são a mesma face. Fazendo das minorias bode expiatório e prometendo “fazer a América novamente grande”, Trump é populista doméstico de extrema direita. Mas em todos os casos Clinton pode ser mais letal para o mundo, que Trump.

“Só Donald Trump disse coisa com coisa contra a política externa dos EUA” – escreveu Stephen Cohen, professor emérito de História Russa em Princeton e na NYU, e um dos poucos especialistas em Rússia nos EUA que falou claramente sobre o risco de guerra.

Num programa de rádio, Cohen referiu-se a questões críticas que Trump, e só ele, havia levantado. Dentre elas: por que os EUA “estão ao mesmo tempo em todos os cantos do mundo?” Qual a verdadeira missão da OTAN? Por que os EUA sempre querem mudar, à força, o regime no Iraque, Síria, Líbia, Ucrânia? Por que Washington trata Rússia e Vladimir Putin como seus inimigos figadais?

A histeria da imprensa “liberal” contra Trump só faz alimentar a fantasia de “debate livre e aberto” e de “democracia em ação”. O que ele diz sobre imigrantes e muçulmanos é grotesco, mas nem isso faz dele o deportador-em-chefe das pessoas vulneráveis para fora dos EUA: o deportador-em-chefe é Obama, não Trump. O “legado” de Obama é ter traído os negros: gerou população carcerária na qual predominam os negros, já mais numerosa que a dos gulags de Stálin.

A campanha eleitoral em curso pode não tratar de populismo, mas do que o mundo conhece como “‘esquerdismo’ à moda dos EUA” [orig.American liberalism], uma ideologia que se vê ela mesma como moderna e por isso superior e a única via “de verdade”. Os que habitam a ala direita desse “esquerdismo” à moda dos EUA assemelham-se a imperialistas cristãos do século 19, que teriam a missão, dada por Deus, de converter, cooptar ou conquistar.

Na Grã-Bretanha, é o Blairismo. Tony Blair, cristão criminoso de guerra, safou-se no processo da preparação secreta para invadir o Iraque, principalmente graças à classe política dos esquerdistas à moda dos EUA [orig. liberal political class] e porque a mídia caiu pelo tal “charme britânico” [orig. “cool Britannia“] do homem. No Guardian, o aplauso foi ensurdecedor; foi chamado de “o místico Blair”. Uma brincadeirinha conhecida como política de identidade, importada dos EUA, aproveitada para promovê-lo.

A História foi declarada acabada, as classes foram abolidas e o gênero foi promovido a feminismo; muitas mulheres foram eleitas ao Parlamento pelo Novo Trabalhismo. No primeiro dia, votaram a favor de o Parlamento cortar os benefícios para famílias de pai ou mãe solteiros (a maioria, de mães solteiras e provedoras únicas), exatamente como haviam sido instruídas a fazer. A maioria da bancada ‘feminista’ votou a favor de uma invasão que produziu 700 mil viúvas iraquianas.

Equivalente a isso nos EUA são os belicistas promovidos a politicamente corretos no New York Times, Washington Post e redes de TV que dominam o debate político. Assisti a um debate feroz na CNN sobre as infidelidades conjugais de Trump. Evidentemente, diziam lá, homem desse tipo não poderia tomar conta da Casa Branca. Nada se discutiu, nada. Nem uma palavra sobre os 80% da população dos EUA, cujos níveis de renda desabaram para níveis de 1970s. Nem uma palavra sobre o alistamento militar. A palavra que desce dos céus sobre a humanidade parece ser “tape o nariz” e vote Clinton: qualquer coisa é melhor que Trump.

Só assim será possível deter o monstro e preservar um sistema que se prepara para mais uma guerra.

* John Pilger teve sua carreira como repórter iniciada em 1958, e ao longo dos anos tornou-se famoso pelos livros e documentários que escreveu ou produziu. Especializou-se nas áreas de jornalismo investigativo e direitos humanos.

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