Depois
de fingirem-se de “verdes”, grandes corporações apresentam-se como promotoras
do ativismo digital “humanitário”. Que desejam? Quais os riscos?
Evgeny
Morozov, nos blogs do Le Monde Diplomatique - Outras Palavras - Tradução: Antonio
Martins
Há
mais de um ano, saúda-se a tecnologia digital como panaceia para tragédias como
a crise dos refugiados.
A mídia vomita reportagens sobre os aplicativos, as maratonas hackers (hackatons)
e os anúncios para formações em desenvolvimento de códigos, sem contar as
declarações dos gigantes de tecnologia supostamente comprometidos com causas
humanitárias.
O
AirBnB, Uber e até mesmo uma chamada “Universidade das
Singularidades” apressam-se a tomar o trem em movimento. Todos
admiram-se com as soluções inovadoras como Karim, o robô dialógico que, graças
a um programa de inteligência artificial, oferece conselhos aos refugiados; ou
o serviço de identificação baseado em blockchains,estruturas
compartilhadas de autenticação de dados1, que ajudam os sem-documento a
comprovar sua identidade. Tenta-se transmitir uma mensagem unívoca: sim, a
tecnologia está nas mãos de empresas privadas; mas estas mãos são tão generosas
e sensíveis, tão humanas e atentas, que continuarão a se oferecer eternamente.
É
preciso mais uma prova do advento de uma nova era – a do capitalismo
responsável? Os dirigentes empresariais estão convencidos. Em 2004, Marc
Benioff, executivo-chefe da Salesforce.com2, escreveu um livro modestamente
intituladoCompassionate Capitalism: How Corporations Can Make Doing Good an
Integral Part of Doing Well [“Capitalismo pioedoso: como as grandes
empresas podem fazer o bem e se dar bem”]. Oito anos mais tarde, John Mackey,
executivo-chefe da Whole Woods, traria trambém sua contribuição, sob um título
ainda mais modesto: Conscious Capitalism: Liberating the Heroic Spirit of
Business [“Capitalismo Consciente: libertando o espírito heroico dos
negócios”]… Segundo ele, o heroísmo intrínseco das grandes empresas é bloqueado
em toda parte pelas estruturas do Estado.
Este
“novo” capitalismo ofereceria um contraste avassalador, quando comparado ao
capitalismo ávido e impiedoso de outrora. O antigo sistema, irresponsável e
adepto da pilhagem e exploração, não teria engendrado crises com a dos
refugiados? Quem não se lembra das empresas petroleiras que pilhavam os
recursos do Oriente Médio, ou dos grupos financeiros como o Goldman Sachs, que
chantageavam as autoridades locais?
Ao
contrário, o “novo” capitalismo compassivo não buscaria explorar os recursos
naturais ou desenvolver engenharia financeira mas, ao contrário, aproveitar-se
da criatividade e da engenhosidade tecnológica. Ele aspiraria a ser diferente
de seu antecessor e mesmo a curar as feridas causadas por este. Enquanto a
versão antiga exigia conformismo e padronização, o capitalismo 2.0 promete
florescimento pessoal e diversidade.
É
ao menos o que pretende. A euforia tecnológica produzida pela crise dos
refugiados nos leva a rever a lista dos esforços de cooptação empreendidos por
este novo avatar do capitalismo. Do greenwashing, que reveste com fachada
verde as atividades industriais para o open-washing (suposta
transparência como método de marketing); e agora, oempathy-washing (lavagem
por compaixão). O termo descreve com clareza os esforços crescentes das
empresas para aproveitar-se das crises humanitárias e alardear seu suposto
compromisso humanitário.
As
iniciativas de empathy-washing dão a falsa impressão de que a crise
está dominada – como se a inventividade, à qual os indivíduos se dedicam agora
intensamente, graças às tecnologias privatizadas, pudesse compensar a
deterioração vivida fora das telas de computador ou celular. É verdade que
algumas delas atenuam, de fato, os efeitos da crise – já que, sobre
as causas, as soluções tecnológicas permanecem impotentes. Elas contribuem,
também, a consolidar o poder das plataformas tecnológicas, a ponto de fazer
destas intermediários indispensáveis para assegurar a boa gestão da paisagem
política pós-crise.
Mas
o empathy-washing não funciona sempre, como mostra o desaparecimento
recente da aplicação I Sea, que estimulava os usuários a localizar e
assinalar barcos de refugiados à deriva, em meio a imagens de satélites ao
vivo, no Mediterrâneo. Criado pela agência em Singapura do grupo de publicidade
Grey, esta aplicação, aclamada pela mídia, chegou a receber um Leão de Bronze,
no festival internacional de criatividade de Cannes.
Descobriu-se
que ele não fornecia imagens de satélite em tempo real. Os usuários viam apenas
uma imagem estática do oceano, onde jamais conseguiriam encontrar embarcações
verdadeiras. O I Sea exigia tão pouco de seus usuários,
prometendo-lhes tanto. Para obter a redenção espiritual, já não havia
necessidade de uma excursão árida a um campo de refugiados…
A
persistência deste espírito humanitário tão tênue, tão fictício, revela nossa
aspiração profunda a viver num mundo quase mágico, onde bastariam intervenções
tecnológicas, agora indissociáveis do capital privado, para resolver todos os
problemas.
E
note-se que o aplicativo I Sea parece relativamente benigno,
comparado ao Freedom-As-A-Service, ou “Liberdade como Serviço”3.Trata-se do cruzamento entre uma
experiência de pensamento mal sucedida e uma tentativa de desenvolvimento
comercial muito séria. Oprojeto foi
apresentado pela Cisco, empresa de informática norte-americana especializada em
servidores, durante um encontro de cúpula da ONU sobre identidade ocorrido em
Nova York, em maio.
A
Cisco descreve o conceito com uma curiosa mescla de jargão empresarial e termos
hippies, de difícil compreensão. Aparentemente, deseja substituir os documentos
de identidade emitidos pelos Estados — que às vezes os refugiados não possuem,
devido a razões evidentes – por identidades numéricas que dependeriam de
intermediários como… a própria empresa. O papel concreto de tais corporações
permaneceria invisível, já que novas infra-estruturas digitais, como osblockchain, permitem
dissimular sua participação sob o verniz de decisões algorítmicas,
decentralizadas e impessoais.
“Construir
a economia Freedom-As-A-Service”, explica a Cisco, “é dar às pessoas, aos
refugiados e aos imigrantes, meios de agir”. Em outros termos, para integrar os
refugiados a uma economia empresarial, em que a única chance de sucesso
consiste em encontrar novas maneiras de comercializar sua existência.
Difícil
saber se a Cisco age por interessar-se pela sorte dos refugiados ou por
interesse no blockchain. A corporação promove as infraestruturas
deste tipo desde que decidiu, em dezembro de 2015, articular esforços com a IBM,
a Bolsa de Londres (London Stock Exchange), o banco Wells Fargo e outros, para
impulsionar, padronizar e normatizar o blockchain em grande escala. A
Cisco farejou, com precisão, um bom negócio na decentralização prometida por
esta tecnologia, que ao contrário de nos livrar dos grandes grupos como ela
própria, só tornaria maior nossa dependência em relação a eles.
Há
não muito tempo, a justaposição das palavras “liberdade” e “como serviço” teria
sido vista como um oxímoro. No entanto, num ambiente em que as empresas são
vistas como capazes de assumir não apenas as funções do Estado-Previdência, mas
também as de ajuda humanitária, a expresssão freedom as a service” não
tem, para alguns, nada de paradoxal.
Para
estarmos livres, num futuro próximo – que curiosamente assemelha-se cada vez
mais a nosso passado feudal –, deveremos antes de qualquer coisa prestar
fidelidade a um gigante da tecnologia. O dia em que nossa empresa-senhora
voltar-se para outro modelo comercial, ou decidir simplesmente que nossa
liberdade não é mais compatível com os cálculos de rentabilidade, será preciso
encontrar um novo protetor privado de nossa liberdade.
–------------
1 - Os Blockchains tornaram-se conhecidos por permitir a emissão e controle da moeda virtual Bitcoin. São sistemas de registros de dados compartilhados por grandes redes de computadores – o que permite aferição por qualquer um dos integrantes da rede. Para informação técnica mais detalhada, consulte este texto da Computerworld. Leia também O banqueiro anarquista e o Bitcoin, no Le Monde Diplomatique. [Nota do Tradutor]
1 - Os Blockchains tornaram-se conhecidos por permitir a emissão e controle da moeda virtual Bitcoin. São sistemas de registros de dados compartilhados por grandes redes de computadores – o que permite aferição por qualquer um dos integrantes da rede. Para informação técnica mais detalhada, consulte este texto da Computerworld. Leia também O banqueiro anarquista e o Bitcoin, no Le Monde Diplomatique. [Nota do Tradutor]
2 - Empresa norte-americana de computação em
nuvem e de serviços financeiros, com valor em bolsa de valores superior a 55
bilhões de dólares. Leia
mais na Wikipedia. [Nota do Tradutor]
3 - O nome refere-se ao princípio do Software
as a Service, “Software como Serviço”, o SaaS, que permite aos
utilizadores acessar e utilizar gratuitamente programas instalados não em seu
próprio computador, mas em servidores distantes.
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