O
projecto de construção de uma escola na longínqua ilha da Taipa mais os dias
quentes da Revolução Cultural levaram a que parte da comunidade chinesa se
tenha revoltado contra a Administração portuguesa no ano de 1966. Jorge Fão
começava a carreira como funcionário público; António Cambeta tinha acabado de
chegar. Hoje recordam dias difíceis que já não voltam
Há
50 anos aconteceu no centro histórico de Macau o que hoje seria impensável:
pessoas foram mortas a tiro, foram arrancadas pedras do chão para servirem de
armas e estátuas de personalidades portuguesas foram derrubadas. Tudo começou
no dia 3 de Dezembro de 1966, com um motim desencadeado pela comunidade chinesa
que demoraria cerca de dois meses a ser sanado e que só seria totalmente
resolvido com a chegada ao território do Governador Nobre de Carvalho.
Viviam-se
na China os tempos da Revolução Cultural, imposta por Mao Zedong, e em Macau
sopravam ventos comunistas. O longo embargo à construção de escola, na Taipa,
ligada ao Partido Comunista Chinês, levou a que um grupo de pessoas tenha
despoletado um motim contra a Administração portuguesa.
Jorge
Fão, ex-deputado e actual dirigente da Associação dos Aposentados, Reformados e
Pensionistas de Macau (APOMAC), tinha na época pouco mais do que 18 anos. Com
uma maioridade atingida à força, pois precisava de trabalhar, Jorge Fão tinha
acabado de ingressar na Função Pública e trabalhava nas instalações do antigo
tribunal. Recorda um motim que começou com um episódio aparentemente sem
importância.
“Queriam
construir uma escola na Taipa e o administrador das Ilhas na altura, de apelido
Andrade, mandou embargar a obra. Dizia que não tinha licenças e claro que as
pessoas fizeram barulho. Mas isso alastrou porque demos oportunidade. Nós,
portugueses, não tivemos sensibilidade para perceber a situação política da
China”, recorda Jorge Fão ao HM.
António
Cambeta chegou como militar a Macau em 1963. Quando o motim explodiu nas ruas,
já trabalhava numa empresa de navegação na Avenida Almeida Ribeiro e tinha uma
namorada chinesa, hoje sua mulher. Recorda os momentos negros em que os
acontecimentos da Revolução Cultural se fizeram sentir em Macau.
“Os
chineses andavam muito saturados da Administração portuguesa e da forma como
eram tratados. Eram rebaixados em tudo e para tratarem de qualquer assunto
junto da Administração tinham de pagar por baixo. Até então estavam calados,
mas o episódio da escola e o início da Revolução Cultural fizeram com que tudo
desse uma volta”, contextualiza. “Os comunistas reuniram-se perto do hospital
Kiang Wu, na véspera do dia 1 de Dezembro, e nessa noite saíram para o centro
da cidade. Morava nessa altura na Rua Coelho do Amaral e à hora de jantar ouvi
um grande barulho. As pessoas começaram a mandar vir contra os portugueses. Fui
à janela e vi que era esse grupo de comunistas a fazerem barulho. Estava a
jantar em casa da minha namorada, chinesa, e fiquei ali.”
Começou
então a perceber que viriam tempos difíceis para os portugueses. “Apanhei o
autocarro e o condutor disse-me: ‘Hoje ainda entra, mas amanhã já não pode
apanhar o autocarro, porque temos ordens superiores para não vendermos nada aos
portugueses’. Aí já havia a separação entre as duas comunidades. Fui para casa
almoçar e já não voltei para o serviço.”
MORTES
NA RUA CENTRAL
Numa
altura em que Macau não tinha governador, Mota Cerveira, comandante militar em
funções, não soube travar o avanço da revolta. “Os chineses aproveitaram e
fizeram uma série de manifestações em Macau e na Taipa, e exigiram a demissão
do administrador das Ilhas e do comandante da PSP. Começaram a disparar,
mataram-se umas pessoas, uma triste memória”, frisou Jorge Fão.
Fão
recorda o momento em que lhe passaram uma arma para as mãos, para se defender
de eventuais perigos. “Aquilo foi um barulho infernal durante vários dias.
Aquilo foi piorando, de tal maneira que gerou tumultos por todo o lado. Armaram
os funcionários públicos e deram-me uma espingarda daquelas antigas, com cinco
munições, para nos protegermos. Quiseram invadir a esquadra da polícia, na Rua
Central, com camionetas a subir a rua. Houve disparos de metralhadora e fizeram
recuar as pessoas. Depois invadiram o Leal Senado e derrubaram uma estátua do
Coronel Mesquita.”
As
mortes que ocorreram na Rua Central (oito mortos e algumas centenas de feridos),
causadas por disparos de polícias portugueses que tentaram evitar a confusão,
geraram ainda mais revolta. “Com a morte dos chineses, a maioria da população
comunista em Macau ficou revoltada. Nas Portas do Cerco havia muitas pessoas
ligadas à Revolução Cultural que queriam invadir Macau. Isso poderia ter sido
evitado se o administrador das Ilhas não tivesse prolongado por tantos anos a
construção da escola chinesa”, diz António Cambeta.
No
Leal Senado e na Avenida da Praia Grande derrubaram-se estátuas. “Muitos deles
eram chineses ultramarinos e foram para o Leal Senado, mandaram a estátua do
Coronel Mesquita abaixo, mandaram livros para o chão, e foram para a
conservatória, onde é hoje a Santa Casa da Misericórdia. Queimaram tudo. Depois
partiram um braço à estátua do Jorge Álvares. Depois a polícia, como não tinha
qualquer preparação, começou a largar gás lacrimogéneo. A partir daí todos os
restaurantes e lojas não vendiam nada aos portugueses, foi um período com muita
tensão. Muitos portugueses pediram para levar as suas coisas para Lisboa”,
recorda o antigo militar.
A
SOLUÇÃO DO GOVERNADOR
Nomeado
Governador, Nobre de Carvalho chegou ao território sem saber o que, de facto,
se estava a passar. “Apanhou o motim sem saber como nem porquê e conseguiu resolver
o assunto com a ajuda de Carlos Assumpção [antigo presidente da Assembleia
Legislativa]. Admiro que uma pessoa com um posto militar elevado tenha
conseguido salvar o território. Ele aceitou as condições impostas pelos
chineses, indemnizou as famílias dos membros que foram mortos com os disparos.
Assinaram uma declaração de arrependimento. Constava que o exército chinês
estava aqui ao lado, pronto a entrar no território”, afirmou Jorge Fão.
Também
João Botas, jornalista e autor de vários livros publicados sobre a história de
Macau, destaca o papel que Nobre de Carvalho teve neste período. “Só soube do
que se estava a passar pelo Governador de Hong Kong e foi difícil tentar
inteirar-se de tudo. Foi tudo uma bola de neve que era impossível controlar de
outra forma. Poderiam ter sido evitadas algumas mortes”, nota ao HM. “Nunca
teve o apoio oficial do Governo português e aí não foi fácil para Nobre de
Carvalho. Fala-se da humilhação pela forma como ele resolveu o assunto, mas não
vejo assim. Bem ou mal, com a ajuda de elementos da comunidade chinesa,
resolveu um assunto que foi dramático e que poderia ter tido consequências”.
Palestra
acontece amanhã (3.12) na Livraria Portuguesa
Há
cerca de três anos que o jovem activista Sou Ka Hou começou, por sua
iniciativa, a estudar o que aconteceu há 50 anos no dia 3 de Dezembro de 1966.
O antigo presidente da Associação Novo Macau decidiu pegar em meses de pesquisa
e escrita, e realizar uma palestra para lembrar à população que um dia os
chineses saíram à rua para lutar por algo em que acreditavam. “A história que
os residentes de Macau devem conhecer: meio século sobre o turbulento motim
1-2-3” é o nome da palestra que irá decorrer na Livraria Portuguesa no domingo,
entre as 15h e as 18h, e que contará com vários historiadores e académicos que
se debruçam sobre o tema.
Ao
HM, Sou Ka Hou lamenta que as escolas não ensinem o motim 1-2-3 aos mais novos.
“As pessoas de Macau conhecem pouco a história local e este motim é considerado
um dos acontecimentos mais representativos da história de Macau. Quero
aproveitar este momento para atrair o interesse das pessoas, sobretudo dos mais
jovens, deixando-os conhecer a história a partir deste assunto, para que depois
tenham interesse sobre outros assuntos importantes”, diz.
“Parece-me
que a sociedade não é mais pacífica e que ainda existem algumas confusões, e
este acontecimento pode levar as pessoas a pensar, para que a sociedade avance.
É uma pena que os manuais da história de Macau não falem disto, além de não
registarem outros episódios da história”, defende ainda o actual membro da
Juventude Dinâmica de Macau.
Sou
Ka Hou recorda que a maior parte das associações tradicionais de cariz
político, como a União Geral das Associações de Moradores (Kaifong), surgiu
após o 1-2-3.
“O
1-2-3 demorou cerca de dois meses e aconteceu num lugar pelo qual muitas
pessoas passam todos os dias. Mas poucos sabem que lá aconteceu este motim.
Quando estava a investigar sobre isto percebi que este assunto estava muito
próximo de nós, pois todos os dias passamos no Leal Senado. É uma grande
inspiração pessoal e também para a sociedade, pois no passado reunimo-nos em
conjunto para lutar por alguma coisa. Todas as associações foram fundadas após
esse episódio. Há a ideia de que as pessoas de Macau muitas vezes não falam e
não reagem a questões injustas, achamos que os locais são sempre indiferentes,
mas segundo a história não foi sempre assim. Mas as escolas agora não nos
ensinam isso. As pessoas de facto lutaram por algumas coisas”, rematou o
activista.
Motim
1-2-3 trouxe “maior visibilidade às associações”
Para
o investigador Fernando Sales Lopes, o motim 1-2-3 serviu sobretudo para dar
mais poder às associações de matriz chinesa que já existiam, como a Associação
Comercial de Macau e os Kaifong (associação de moradores).
“O
pós-1-2-3 acaba por trazer outra estabilidade, Macau foi-se preparando a pouco
e pouco para a transição de poder, apesar de faltarem ainda três décadas.
Sempre houve um poder chinês e um poder português, e havia sempre uma
negociação diária”, afirma.
“Depois
do 1-2-3 houve um reforço do poder das entidades chinesas. Ho Yin, entre
outros, teve um papel relevante neste período. As relações diplomáticas entre a
China e Portugal só voltaram a ser restabelecidas após o 25 de Abril de 1974 e
só estes capitalistas patriotas desempenhavam o papel de intermediários. Este
papel de intermediários entre o poder português e a China acaba por vir a
ganhar mais força, acabam por ser embaixadores e tornam-se líderes da
comunidade chinesa. As associações chinesas, em vez de estarem fechadas numa
comunidade, passaram a intervir no cenário público com mais poder.”
Apesar
da importância do motim, o investigador afirma que o 1-2-3 foi “um
acontecimento ligado ao contexto da altura. “Em Macau sempre fomos um porto de
abrigo e fomo-lo para os chineses. Revoluções políticas na China sempre houve.”
Para
o jornalista João Botas, autor de livros sobre a história do território, “é de
facto um dos períodos significativos e marcantes da história de Macau”. “Foi
naturalmente fruto do contexto, a história não se repete. Estamos a falar de um
período, a consequência do que se passava politicamente na China, da Revolução
Cultural, e que mais cedo ou mais tarde acabaria por chegar a Macau e a Hong
Kong”, conclui.
Andreia Sofia Silva – Hoje Macau
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