sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

O CERCO A LULA




O objetivo maior do establishment brasileiro: atingir o maior líder popular do Brasil desde Getúlio Vargas.

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Facebook, em Carta Maior

Há meses que eu ouço frases como: “Quando vão chegar no Lula?”, ou então, “Quando vão pegá-lo?”. Porque, afinal, este é o objetivo maior do establishment brasileiro: atingir o maior líder popular do Brasil desde Getúlio Vargas. Não porque ele seja desonesto, mas porque ele se manteve de esquerda, porque se manteve fiel à sua classe de origem não obstante o clássico processo de cooptação de que foi objeto. Pois bem, o establishment chegou ao Lula. Não para incriminá-lo, mas para tentar desmoralizá-lo.

As duas manchetes de primeira página dos dois principais jornais de São Paulo de hoje são significativas. Na Folha leio que “Lula é investigado por suposta venda de MPs”. Não há nada contra o ex-presidente na Operação Zelotes, a não ser a desconfiança de um delegado irresponsável. O que há nessa operação é o envolvimento de grandes empresas e de seus dirigentes em um escândalo de grandes proporções de pagamento de propinas para obterem MPs favoráveis.

No Estado, por sua vez, a manchete é “Compra de sítio foi lavrada no escritório de compadre de Lula”. Neste caso – o do uso por Lula e sua família de um sítio no qual construtoras se juntaram para realizar obras sem que houvesse pagamento – o caso é mais objetivo. Lula aceitou um presente que não deveria ter aceito.

As contribuições de empresas a campanhas eleitorais (que até a decisão do Supremo eram legais) são afinal presentes. Mas é impressionante como empresas dão ou tentam dar presentes mesmo a políticos – presentes dos quais elas não esperam nada determinado em troca; fazem parte de suas relações públicas. Eu sempre me lembro de como tentaram reformar a piscina da casa do Ministro da Fazenda em Brasília quando ocupei esse cargo em 1987. Minha mulher os pôs para correr. Era o que devia ter feito Lula, que havia acabado de sair do governo. Não o fez, e isto foi um erro político. A reforma não aumentava seu patrimônio, apenas lhe proporcionava mais conforto. Ele não trocou o reforma do sítio por favores às duas construtoras. Não há nada sobre isto na investigação sobre o sítio.

O Estado brasileiro está revelando capacidade de se defender – de defender o patrimônio público – ao levar adiante as operações Lava Jato e Zelotes. Dirigentes de empresas, lobistas e políticos envolvidos estão sendo devidamente incriminados e processados.

A instituição da delação premiada revelou-se um bom instrumento de moralização. Mas está havendo abusos. Houve e estão havendo abusos na divulgação de delações sem provas, houve abuso em prisões cautelares ou provisórias quando não havia razão para elas. E não é razoável o que se está fazendo com Lula. Só um clima de intolerância e de ódio pode explicar o cerco de que está sendo vítima.

(Artigo inicialmente publicado no Facebook do economista Bresser-Pereira)

Luiz Carlos Bresser Pereira é economista, fundador do PSDB, ex-ministro da Fazenda dos governos de José Sarney e Fernando Henrique Cardoso
Créditos da foto: Heinrich Aikawa / Instituto Lula

Brasil. A JUSTIÇA PRECISA SAIR DE CIMA DO MURO



A desembargadora Kenarik Boujikian foi acusada de delito funcional por ter soltado 10 presos que haviam cumprido suas penas mas se mantinham encarcerados.

Camila Spósito * - Carta Maior

A desembargadora Kenarik Boujikian, da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, está sendo processada e pode sofrer punição por suposto delito funcional, ao decidir monocrática e cautelarmente pela soltura de 10 presos que se mantinham encarcerados, não obstante já tivessem cumprido suas penas.

Em termos jurídicos, monocraticamente significa decidir sozinha, o que teria supostamente ofendido o princípio da colegialidade de acordo com a visão do acusador de Kenarik, o desembargador Amaro José Thomé Filho. Cautelarmente significa medida de urgência, tendo em vista circunstâncias especiais.

A acusação (representação, para os do ramo) foi feita perante a Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo em agosto de 2015, mas tornou-se pública apenas na última semana de janeiro de 2016, em 28.01.2016, quando o desembargador Arnaldo Malheiros, relator do caso, pediu sua rejeição e arquivamento. Isto é, que nem fosse levada à julgamento a acusação.

Contudo, outros dois magistrados pediram vista, o que demonstra que veem alguma razoabilidade nos argumentos de Amaro. Ainda não há data marcada para a próxima sessão. Quem decidirá a pendenga são 25 julgadores, colegas de trabalho dos envolvidos.

Ocorre que a possibilidade de decidir como Kenarik está garantida no Regimento Interno do próprio Tribunal de Justiça de São Paulo, em seu artigo n. 232, que concede poderes ao juiz relator para proferir decisões sobre medidas cautelares no âmbito penal, como a prisão preventiva.  Justamente o caso.  

Mais um detalhe: não era a primeira vez que a juíza decidia dessa forma e nem é a única juíza que assim o faz neste Tribunal. O acusador Amaro apresentou 11 processos nos quais ela teria violado o princípio da colegialidade, mas seus advogados o corrigiram e apresentaram 50 no período recente.

Mais: legar que o princípio da colegialidade foi ofendido não passa de falácia. Tal princípio não prescreve que todas as decisões devam ser tomadas em conjunto – apenas que elas devem ser passíveis sempre de análise pelo colegiado, mesmo quando, por urgência, precisam ser tomadas por algum juiz Relator individualmente.

Por fim, não há nenhum indício de desentendimento pessoal entre Kenarik e Amaro e, ao que tudo indica, ambos são juristas renomados, ou seja, conhecem bem os artigos explicitados acima.

Com o direito e o próprio costume jurisprudencial ao seu lado, além a completa ausência de questões individuais relevantes, o que explica a acusação de Kenarik?

Para entender bem um fato, não basta descrevê-los com precisão. É preciso articulá-lo com o contexto sócio histórico no qual está imerso, bem como com outros fatos que estão soltos por aí, para que possamos tirar algum sentido, social e individualmente, desta história.

A desembargadora Kenarik tem reconhecida reputação de militante dos direitos humanos. Natural da Síria, abrasileirou-se e ingressou na magistratura em 1989, tendo, desde o início, denunciado o machismo que causava desequilíbrio expressivo no ingresso de mulheres na área - em São Paulo, as primeiras juízas só apareceram em 1981 e até hoje o órgão mantém a (des)proporção de três mulheres para 66 homens.

Sua fama cresceu em casos emblemáticos, como o julgamento do médico Roger Abdelmassih, condenado a 278 anos de prisão por ter estuprado dezenas de suas pacientes enquanto estavam sob efeito de sedativos.

Ela é co-fundadora da Associação Juízes pela Democracia, cujo ideal é “reunir institucionalmente magistrados comprometidos com o resgate da cidadania do juiz, por meio de uma participação transformadora na sociedade, num sentido promocional dos direitos fundamentais”.

A necessidade de existência de uma instituição assim, organizada em paralelo ao judiciário, só evidencia que seus princípios e objetivos não são unanimidade, remam contra a maré na magistratura. O comum entre muitos magistrados não é pensar em transformar a sociedade com alvo nos direitos fundamentais, mas talvez preservar o status quo visando um ideal de segurança. Kenarik está acostumada a ser minoria e a decidir em favor dos direitos fundamentais com urgência quando a vida e a liberdade de alguém estão em jogo, se colocando não apenas como juíza, mas como cidadã.

O desembargador Amaro José Thomé Filho virou juiz recentemente, em 20.2.2014, mas sem prestar concurso – foi por indicação do “quinto constitucional”, isto é, vaga reservada ao Ministério Público, que envia uma lista de seus escolhidos.

Amaro desempenhou a função de Promotor de Justiça desde 23.12.1986. Está acostumado a acusar, portanto, e mesmo deixando de ser Promotor e tendo virado magistrado, cuja função na sociedade é radicalmente outra, continua exercendo esse papel, agora contra aqueles que se preocupam mais com a garantia dos direitos humanos do que com punição.

A desavença ideológica entre Kenarik e Amaro não surpreende e já poderíamos antecipar algum tipo de animosidade entre os dois. O que surpreende é que essa animosidade e essa desavença ideológica tenha, pelas mãos de Amaro e em exercício de sua função de juiz, deixado de ser saudável desacordo democrático para ser perseguição machista e institucional.

O machismo neste caso pode não estar óbvio para o leitor não acostumado a estudar opressões de gênero (principalmente homens, os opressores nesta questão específica). Nem é fácil de se explicar, visto que exige compreensão de noções como patriarcado e coronelismo, que fugiriam ao escopo deste texto. Mas se você está familiarizado com a distinção entre conservador e progressista, sabe que Amaro representa, nesse episódio, o primeiro, enquanto Kenarik representa o segundo – e o conservadorismo é um conjunto de ideias que contém o machismo como um ingrediente essencial e, não por acaso, se manifestou neste episódio.

Como dissemos há alguns parágrafos: o pulo do gato é fazer o link entre as informações, para conseguir enxergar a realidade completa e não apenas fragmentos aparentemente desconjuntados. O conservadorismo em Amaro, a eleição de sua antagonista em Kenarik, a proporção de mulheres no judiciário, o histórico de cada um, tudo isso colocado lado a lado permite que o raciocínio se complete para enxergar a estrutura de poder que subjaz ao nosso objeto de análise. A estrutura de poder que é machista e se reproduz em cada parte micro para que ela se mantenha no macro.

E perceba que não se trata de caça tendenciosa aos fatos que são favoráveis à construção de uma tese, pois investigamos também aqueles que poderiam aparentemente desmontar a classificação de machista – um problema pessoal, por exemplo.

Porém, ainda que não seja conscientemente machista a motivação de Amaro para perseguir Kenarik, as motivações pessoais não importam quando vamos classificar um fato social. O objetivo aqui é investigar o que o fato significa na sociedade e não na psicologia pessoal dos envolvidos. À medida em que isso se objetifica e se integra ao mundo, seu sentido é massificado, suas particularidades diluídas. Como uma gota de cor um pouco mais clara que se integra a um rio lamacento.

Objetivamente, é mais uma das poucas mulheres no judiciário que, não por acaso, tem perturbado o exercício de sua função de juíza, como poucas vezes ocorre com homens em igual situação.

Ao apresentar representação contra Kenarik, Amaro não pretende coibir decisões monocráticas, que, como o próprio sabe, são permitidas e necessárias ao bom funcionamento do judiciário. Ele quer é ver condenada a militância por direitos humanos de Kenarik, o olhar cidadão de uma juíza que se preocupa com aquele que está preso injustamente, que enxerga no preso um ser humano. Que considera a justiça além da punição. E principalmente: sua audácia só é possível porque sua rival é uma mulher. Minoria nas ideias e na identidade dentro do Tribunal.

É por isso que esse processo não é simbólico e a decisão que tomarem nele demarcará derrota ou vitória importante para a sociedade. Não está em jogo apenas a questão ideológica, Direitos Humanos versus Justiça Punitiva. Está em jogo também a independência do Juiz, um princípio cuja importância é cabal principalmente em casos como o de Kenarik, que exerce sua função de juíza com zelo e preocupação ímpares, muitas vezes contrassenso.

É o momento de o Tribunal reafirmar-se como um espaço democrático e sensível à grave questão de gênero que perdura em seu interior. Também, é a oportunidade de mostrar para a sociedade que a Justiça que temos é aquela de todos, e não apenas dos que estão fora das grades.  

Todas as mulheres, de todas as profissões, estão representadas em Kenarik. Perseguidas com facilidade apenas porque são mulheres. Todos e todas que não deixam de enxergar no preso um ser humano, também estão representadas em Kenarik.

Todo o nosso apoio à Kenarik e ao Tribunal de Justiça de São Paulo, que confiamos fará desse julgamento um ponto de luz e de avanço. Todo nosso apoio ao Ministério Público também, para que escolha bem seus representantes no Tribunal.

(*) Camila Spósito é advogada, integrante do Coletivo Dandara da Faculdade de Direito da USP, graduada e mestranda pela mesma instituição.

Créditos da foto: EBC

Angola – 4 de Fevereiro. “A NOSSA MOBILIZAÇÃO FEZ ESTREMECER PORTUGAL”



João Dias – Jornal de Angola

Os acontecimentos de  4 de Fevereiro de 1961 e do “Processo dos 50” estão ligados entre si. O ataque de 1961 em Luanda teve por objectivo libertar os presos do “Processo dos 50”, grupo de nacionalistas, espalhados por Angola, que se notabilizou na mobilização dos angolanos para a resposta à feroz repressão colonial.

A ligação do 4 de Fevereiro de 1961 ao “Processo dos 50”, de 1959, é um facto. Os heróis do 4 de Fevereiro ergueram-se para libertar os nacionalistas angolanos do “Processo dos 50” detidos nas cadeias coloniais.

Beto Van-Dúnem, deputado da Assembleia Nacional, faz uma incursão na recente História do país e fala ao Jornal de Angola da longa e complexa luta que os angolanos empreenderam para que a luta de libertação nacional desembocasse na conquista  da Independência e fosse possível. Ele que foi um dos integrantes do “Processo dos 50”, fala do papel central que teve na impressão e distribuição de panfletos em pleno Bairro Operário, uma estratégia de propaganda que se  espalhou pelo país inteiro e pôs o Portugal de Salazar a tremer. 

Do “Processo dos 50” só seis nacionalistas estão vivos: além de Beto Van-Dúnem, estão Armando Ferreira, Amadeu Amorim, José Lisboa, Luís Rafael e Manuel Santos, este último a residir em Portugal.

Jornal de Angola  – Nasceu em 1935. Por si passaram inúmeros eventos históricos, politícos e sociais dignos de registo. Que memórias guarda dos tempos em que começou o seu activismo pela causa nacional?

Beto Van-Dúnem –  Guardo memórias dos tempos em que começavámos a notar as grandes injustiças que o colono infligia à nossa  gente. Tinha  17 anos quando a mim e aos outros foi  proposto o aliciamento de jovens para a nossa luta. A minha inquietação sobre as acções dos colonialistas, com a sua polícia de repressão, a PIDE, começou quando o irmão do Cardeal Dom Alexendre do Nascimento nos falava que era necessário que despertássemos para a conquista da Independência. Toda a doutrina nos era dada bem perto do chafariz do Bairro Operário, com todos os riscos de sermos apanhados de surpresa pela PIDE.  Quando miúdos, ele incutia-nos as primeiras noções de Liberdade e Independência, e dizia sempre a uma data de jovens que tinham de lutar pela Independência. Essa ideia, de que tinhamos de lutar, fez com que eu e o Amadeu Amorin nos lançássemos, para a mobilizaçao de outros jovens da nossa idade na altura.

Jornal de Angola – O seu grande protagonismo começou com o envolvimento directo na produção de panfletos que apelavam para a urgente necessidade de conquista da Independência. Conta-nos a história?

Beto Van-Dúnem – Tudo começa no dealbar do ano 1955. Já tinha 20 anos. As pessoas com quem lidávamos eram o “Liceu” Vieira Dias e o Higino Aires, sobrinho de Ilídio Machado. Foram eles que nos começaram a fazer ver o que ia ser a realidade e o futuro livres do jugo colonial. Na altura, já se via a propaganda como factor fundamental para a disseminação dos ideais dos angolanos. Mário de Andrade e Lúcio Lara estavam fora e Ilídio Machado, que estava no país, tomou as providências no que tocava à distribuição de panfletos. Foi adquirida uma máquina para fazer panfletos. Lúcio Lara comprou a máquina no exterior, que chegou às mãos de Zito Van-Dúnem, na altura tripulante de um navio.

Jornal de Angola  – A estratégia de distribuição clandestina de panfletos foi fundamental para a tomada de consciência dos angolanos?

Beto  Van-Dúnem – Sim, foi, e de que maneira. Despertou muitos angolanos para a realidade da época e conduziu à tomada de consciência. Mas, deixe-me contar-lhe: a máquina, enviada a partir de Paris, começou a produzir panfletos em pleno Bairro Operário. O centro das operações e de produção era o meu quarto, onde a máquina foi instalada. Ninguém sabia da existência dela. Nem os meus pais e tios podiam saber. Os panfletos eram escritos por Ilídio Machado e exigiam a Independência de Angola. Os panfletos eram feitos de madrugada. Inicialmente, eram colocados por debaixo das portas das casas dos moradores do Bairro Operário. O impacto dessa estratégia era notado logo pela manhã, quando as conversas de esquina, de botequim e das famílias giravam em torno da Independência e da Liberdade. Falavam à vontade. Próximo ou não do colono, a conversa era sobre a Independência, falada em quimbundo. Estava-se em finais de 1957, e a notícia espalhou-se, dado que Luanda já estava cheia de panfletos. Benguela e Malanje queriam fazer o mesmo.  Na altura, o irmão do Cardeal Dom Alexandre do Nascimento, em Malanje, viu nos panfletos uma grande oportunidade de mobilização para a luta pela liberdade dos angolanos.

Jornal de Angola – O que aconteceu em seguida?

Beto Van-Dúnem – Depois, aconteceu que, por via da clandestinidade, as outras cidades adoptaram também essa estratégia. Não demorou muito e Angola estava cheia de panfletos. Esta situação fez estremecer Portugal, que mandou reforçar as medidas de policiamento e a ronda a metro nos musseques. Portugal exigiu a detenção dos autores. É assim que, em 1959, fomos descobertos e somos todos presos. A situação levou à intervenção de países socialistas e de outras organizações mundiais.  Nós estávamos presos quando se deu o 4 de Fevereiro de 1961.

Jornal de Angola – Parte considerável dos presos políticos naquela época eram jovens com 15, 17 anos e, não raro, com 13 e 14 anos. Esta era uma situação que deixava de rastos os familiares e amigos na altura?

Beto Van-Dúnem – Com certeza. Estivemos presos na PIDE em Luanda durante três anos, e só depois é que fomos mandados para o Tarrafal, onde permanecemos 12 anos. Os nossos familiares ficaram extremamente preocupados, porque corria o boato de que tinham sido presos jovens angolanos que de seguida iriam ser postos a bordo de um avião que tinha como objectivo lançá-los ao mar. O receio dos nossos familiares cresceu ainda mais quando os responsaveis da PIDE exigiram que os familiares enviassem roupa para os seus filhos presos. Naquele dia, preparámo-nos e meteram-nos num avião sem sabermos para onde estávamos a ser levados. Alguns polícias estavam a bordo e nem nos podíamos mexer.

Jornal de Angola – O que veio   depois da vossa prisão e qual foi o papel de Ilídio Machado?

Beto Van-Dúnem – O que aconteceu é que todo aquele alvoroço, alimentado por boatos, terá motivado em 1961, e em grande medida, os homens que estavam empenhados na luta de libertação, e que lançaram o assalto no dia 4 de Fevereiro de 1961. Tudo isso motivou, ainda mais, que fossem à Casa da Reclusão para nos libertarem. A necessidade de libertar os compatriotas foi o mote, mas  foi, em grande medida, motivada pelos boatos que corriam de que íamos ser deitados ao mar. Tanto Paiva Domingos da Silva como os outros que chefiaram o processo da luta de libertação de 4 de Fevereiro recebiam também instruções de Ilídio Machado. Mas nós não sabíamos. Por isso, julgo que ele, Ilídio Machado, teve um papel fundamental neste processo de consciencialização e mobilização dos angolanos.

Jornal de Angola – Existem algumas dúvidas quanto ao facto de se saber quem foram realmente os primeiro presos políticos. Foram os homens que hoje constituem o “Processo dos 50” os primeiros presos politicos?

Beto Van-Dúnem – Os primeiros presos políticos fomos nós, eu e os do meu grupo. Depois de nós, outros camaradas que estavam em Luanda e no Lobito, que na altura estabeleciam contacto com o exterior, também foram presos. Nós somos os primeiros presos políticos. Naquela altura, foram presas 52 pessoas. Por isso é que passou  a chamar-se “Processo dos 50”. Só os que desenvolveram actividade no Congo ficaram livres das prisões da PIDE. Os camaradas no Congo recebiam as informações e disseminavam essas informações no exterior. Depois de termos sido presos, activou-se aqui a grande luta e muitos indivíduos foram mobilizados e começaram a lutar. Mas foi no exterior que a mobilização teve um grande efeito. O falecido Mendes de Carvalho e eu fazíamos os contactos com o pessoal no exterior e foi por isso que, durante muito tempo, os companheiros lá fora não nos conheciam pelos traços fisicos. Era apenas pelo nome, principalmente a mim, Mendes de Carvalho, Higino Aires e Amadeu Amorim.

Jornal de Angola – O que mais o marcou durante os anos de luta pela Liberdade e Independência?

Beto Van-Dúnem – Quando o Presidente Neto chegou a Luanda, depois do 25 de Abril em Portugal, o camarada Lúcio Lara avisou-me para que fôssemos recebê-lo. E foi ali que o conheci, foi ali, no Aeroporto de Luanda, onde foi marcada a primeira reunião com os homens que estavam envolvidos no “Processo dos 50”. A reunião aconteceu atrás do Jumbo, onde havia uma casa grande que tinha sido preparada para reuniões de grande envergadura. Lembro-me de que, quando o camarada Neto entrou, nós estávamos todos em pé. Ele pediu-nos que nos sentássemos. Quando nos sentámos, disse: “Vocês foram os homens que agarraram o touro pelos cornos e nós, lá fora, limitámo-nos a puxá-lo pelo rabo”. Aquela expressão representou um grande incentivo.

Jornal de Angola – Foi director do Departamento de Organização de Massas (DOM) do MPLA e ministro do Comércio.

Beto Van-Dúnem – Depois do primeiro contacto com o Presidente Neto, passado algum tempo, quando formou o Governo, o Presidente Neto chamou o Mendes de Carvalho e a mim para dirigirmos o Departamento Regional de Organização de Massas ou DOM Regional. O objectivo era mobilizar e espalhar a doutrina do MPLA. Daí em diante, reunimo-nos todas as semanas com o Presidente Neto, a quem dávamos o ponto de situação sobre a mobilização popular.

Jornal de Angola – O DOM Regional cumpriu o seu papel?

Beto Van-Duném – Num belo dia, o Presidente Agostinho Neto chamou-nos. Quando chegámos lá, disse-nos que passávamos a ir à pesca com ele todos os sábados. Iam embaixadores de alguns países amigos e outras entidades. Naquele dia, depois da pesca, quisemos despedir-nos e agradecer ao Presidente pelo gesto, mas ele pediu-nos que ficássemos e fôssemos com ele. E assim, todos os sábados, quando íamos à pesca, regressávamos com ele à sua casa e recebia-nos na sua sala, onde nos contava tudo o que se passava lá fora, aqui dentro e nas matas. Falava-nos de muitas coisas e de muitos indivíduos. O André Mendes de Carvalho e eu ficámos a saber de muita coisa, das quais prefiro não abrir a boca. O que nos contou Neto muito pouca gente sabe.

Jornal de Angola – Não era bom revelar o que sabe e assim contribuir para a construção de um legado histórico  rico para os angolanos?

Beto Van-Dúnem – Lembro-me de ter-nos dito que saía da cidade e visitava os bairros de Brazzaville para ver os camaradas que estavam a lutar pelo país e notou um grande descontentamento, pois diziam: ‘Nós é que estamos a lutar e nós é que estamos a morrer. Os outros todos estão lá na cidade. Comem e bebem, mas nós é que vamos morrer nas batalhas. Quando a Independência chegar, eles é que vão gozar os seus beneficios’. Ele contou-nos que depois de ter ouvido isso, voltou a Brazzaville, onde estavam, nomeadamente, Pepetela, Ndunduma, Petroff e o ex-ministro da Defesa Pedalé e pediu-lhes que se preparassem para a luta. Foi quando todos se prepararam e com as suas armas foram para as matas juntar-se aos demais e lutar pela pátria mãe. Mas mesmo assim, houve indivíduos que, diante do pedido de Neto, recusaram-se e demarcaram-se.

Jornal de Angola – O que aconteceu ao grupo de pessoas que se demarcou da luta pela conquista da Independência, quando todos eram poucos para a causa da Pátria?

Beto Van-Dúnem - Conquistada a Independência, muitos dos que se tinham demarcado queriam regressar. Todavia, muitos dos que se tinham sacrificado para a luta opuseram-se. O médico Eduardo dos Santos e outros camaradas opuseram-se veementemente a que todos aqueles que se tinham demarcado da luta para a conquista da Independência gozassem dos seus beneficios. A isso, Neto recomendou serenidade e disse que era necessário que depois de se conseguir alcançar a Independência todos trabalhassem por Angola. Neto entendia que era fundamental fazê-los ver que a atitude que tinham abraçado era incorrecta. ‘Nós não queremos indivíduos que estão connosco e ao mesmo tempo contra nós’, disse na altura. ‘Vamos harmonizar tudo e todos para fazer um país bom’, referiu.

Jornal de Angola – O que lhe diz a frase: “O MPLA é o Povo e o Povo é o MPLA”?

Beto Van-Dúnem – Esta frase é lapidar, para aquilo que é a matriz do nosso partido e dos seus ideais. Esta é uma expressão que diz tudo, aliás, todas as expressões de Neto são positivas. O Presidente Neto foi um grande Presidente deste país, teve o apoio de todos os países africanos que tinham conseguido, na altura, a sua Independência. Quando ele morreu, todos os Presidentes africanos estiveram no seu funeral e hoje é dele que ainda se fala. Neto tinha preparação e era um político a sério. Não é em vão que os americanos, ingleses, franceses têm um grande respeito pelo Presidente Agostinho Neto.

Jornal de Angola – Sente que, actualmente, essa frase encontra terreno fértil para  traduzir aquilo que é de facto a sua matriz inclusiva?

Beto Van-Dúnem – Pode não encontrar as condições que podiam estar a ter. Esta frase tem de estar fixada na nossa cabeça, para continuarmos a fazer coisas em benefício deste país e do povo que ainda sofre.

Jornal de Angola - Tem uma veia poética de alguma forma vincada e inquieta, porém, um pouco desconhecida. No poema “Não” está expressa uma visão em que esse “não” se converteria em “Sim”. É o que sente e vê hoje?

Beto Van-Dúnem – Tenho pena de que não estejam a ser publicados no Jornal de Angola. Tenho vários poemas. Mas não vou pôr os meus poemas em qualquer outro jornal. Falando do poema intitulado “Não”, penso que se converteu hoje num “Sim”, pois a partir do momento em que o MPLA entrou, estou a ver uma política diferente. Hoje as condições mudaram.

Jornal de Angola – Volvidos estes anos, que receios é que mais o preocupam?

Beto Van-Dúnem – Acho que está tudo bem. Volvido esse tempo, não receio nada. Penso que está tudo bem. O que vejo é que existem determinadas coisas que o Presidente Neto queria que não se está a fazer conforme a doutrina e isso transforma-nos um bocado, em função do que se perspectivava em beneficio do nosso país. Penso que está tudo bem, mas os precursores da luta de libertação e conquista da Independência não têm o prestígio que mereciam. Só para falar destes, o Amadeu Amorim vive no Bairro Operário com dificuldades, o Luís Rafael está a trabalhar, mas tem um salário pequeno.

Jornal de Angola – Sente que a história que envolveu a luta de libertação e o “Processo dos 50” está a ser escrita e veiculada?

Beto Van-Dúnem – Nós, do “Processo dos 50”, só devíamos ter mais apoio.

Perfil

Nasceu em Luanda a 28 de Julho de 1935. 

Casado com Maria Natércia Santos, com quem tem quatro filhos, Carlos Alberto Pereira dos Santos Van-Dúnem foi ministro do Comércio, tendo sido convidado pelo primeiro Presidente de Angola, António Agostinho Neto, quando formou Governo.

Antes de assumir o cargo de ministro do Comércio, Beto Van-Dúnem foi director do Departamento de Organização de Massas (DOM), um organismo que visou lançar as bases da doutrina e dos ideais do MPLA e espalhá-los na altura. Porém, mais do que isso, visava mobilizar mais e mais cidadãos para o Movimento.

Mais recentemente, Beto Van-Dúnem, exerceu a função de Director da ABAMAT, uma empresa do Ministério dos Transportes que passou a responder pelo abastecimento de material técnico automóvel. 

Hoje é deputado da Assembleia Nacional, pela bancada do MPLA. Apesar do pouco tempo que lhe sobra da actividade parlamentar, continua a ler bastante e a escrever poemas. A música faz parte do seu selecto grupo lúdico. Guarda dezenas de discos em vinil dos tempos da música de intervenção, além dos discos de bons artistas da actualidade. O “rei” da música angolana, Elias dyá Kimuezo, pelo teor das suas composições e melodias que resistem ao tempo, continua a ter a preferência de Beto Van-Dúnem, que diz ser demasiadamente selectivo na escolha de música para ouvir. 

Na literatura, diz ler bastante os livros de Pepetela. Guarda muito boa literatura, tanto de escritores angolanos como de estrangeiros. Nos dias da reclusão, em 1963, no Tarrafal, Beto Van-Dúnem escreveu o poema “Súplica”, a que se seguiram “Lamentação”, “Esperança”, “Aquela Negra”, “Cantiga de Mulata”, Tristeza”. Mais para cá, escreveu “Um poema à mãe angolana”, homenagem às mães que, apesar de todas as vicissitudes e dificuldades da vida, nunca denegam o seu amor pelos filhos. 

No conjunto dos 22 poemas dedicados à data de 29 de Março, dia em que foi preso, ele e os seus companheiros, por denúncia de um indivíduo infiltrado no grupo de actividade clandestina, consta o poema “Despertar”, uma espécie de apelo à resistência e à persistência obstinada na conquista da Independência, em que diz:

“Não digas nada, Mesmo que eu pergunte quem és! Não digas nada...mesmo que os trovões rebentem sobre a nossa cabeça, protestando contra o vazio. Fecha os olhos e sorri, quando os clarões rasgarem os céus para iluminarem o romper d'aurora”.

POLÍCIA DO ORÇAMENTO




Enquanto a Europol diz que não sabe por onde andam pelo menos 10 mil crianças cujas entradas no espaço europeu foram registadas pelas autoridades, enquanto o governo francês manifesta a intenção de prorrogar o estado de emergência por tempo indeterminado, enquanto os paraísos fiscais em que se transformaram países como a Holanda e o Luxemburgo legitimam um proveitoso tráfico empresarial de impostos, a Comissão Europeia impõe ao governo português um regateio de défice orçamental à décima, num processo em que se revela a intenção única de Bruxelas: anular as ainda que tímidas medidas de reversão da austeridade adoptadas pelo executivo de Lisboa.

A União Europeia transformou-se num museu de aberrações vivas, cada uma mais assombrosa que outra, sem rei nem roque mas sempre sacrificando as pessoas em nome de um pretexto qualquer.

O processo em torno do orçamento de Estado português é exemplar sobre o teor zero da democracia nas regras pelas quais se guia a União. Os dirigentes de Bruxelas não gerem, policiam. Um instrumento fundamental para a soberania de um país, como o orçamento de Estado, é sujeito a um processo de inspecção à lupa em nome de tratados e regulamentos que foram anexados à boleia da crise, verdadeiramente à revelia dos povos, e que funcionam, agora, como as leis únicas em aplicação. É possível instaurar a censura, como acontece na Polónia, transformar os tribunais em câmeras de eco da vontade do governo, como acontece na Hungria, incentivar a fuga aos impostos empresariais através de mecanismos como os criados na Holanda e no Luxemburgo, mas o Tratado Orçamental e o chamado Semestre Europeu, os ícones do regime de austeridade, esses são intocáveis e dependentes do comportamento arbitrário dos eurocratas de turno.

O governo de Portugal elaborou um esboço de orçamento com um défice dentro dos limites impostos pelos tratados e, agindo em conformidade com estes, apresentou-o a Bruxelas. Então aí, os polícias orçamentais sacaram das lupas e decidiram que o governo português é feito de manhosos, aldrabões que amanharam um défice virtual, meta que serão incapazes de cumprir. Logo, devem esses governantes trapaceiros e mal comportados sujeitar-se a uma “negociação” para que o orçamento final do Estado português tenha o figurino traçado pelos eurocratas e seja, é disto que se trata, extirpado de todas as decisões que tenham como objectivo aliviar o cutelo da austeridade sobre os portugueses.

Aos polícias de Bruxelas tanto se lhes dá como lhes deu que os portugueses tenham votado maioritariamente contra austeridade; é-lhes irrelevante que os portugueses tenham conseguido formar um governo até certo ponto compatível com a reversão de medidas austeritárias. O que conta para os polícias de Bruxelas é o regime de austeridade, mesmo que a democracia imponha o contrário e prove, até, que é possível recuperar medidas sociais respeitando os limites do défice impostos por Bruxelas. Não é, no fundo, o cumprimento do défice que interessa aos eurocratas, mas sim a vigência da austeridade a qualquer preço. Se os actuais governantes portugueses demonstram que o orçamento contemplando algumas medidas sociais e as fronteiras do défice são compatíveis então, dizem os polícias, é porque são aldrabões e torcem os números.

Reparem que já não estamos sequer no terreno da aberração máxima, que é o facto de um orçamento de um Estado apresentado por um governo democrático ter de ser aprovado fora desse Estado por uns cavalheiros com mentalidade ditatorial e que ninguém elegeu – tudo isto antes se ser sujeito ao mecanismo democrático, o Parlamento nacional.

Nem sequer é disso já que se trata. Passámos para o estado delirante em que os polícias de Bruxelas não só desnudam o orçamento como também têm a palavra final sobre a competência técnica e a idoneidade moral dos membros de um governo democrático – que são, à partida, acusados de aldrabice, competindo-lhes então demonstrar o contrário e, no limite, submeter-se à decisão final dos esbirros orçamentais.  

Ficando provado, pelo que atrás ficou escrito, que no pé em que as coisas estão a soberania de um qualquer Estado da Zona Euro apenas será democraticamente restaurada escapando ao garrote da moeda única, não esperando, sequer, pelo naufrágio anunciado da União Europeia. O resto, como está à vista, são ilusões.

* José Goulão  - Mundo Cão, em 02.01.2012

PARA TIRAR A ESQUERDA DO MARASMO



Surge, agora também na França, esperança de derrotar conservadores. Mas ela exige algo a que partidos desacostumaram-se: enfrentar desigualdade e abandonar velhas estruturas enferrujadas

Immanuel Wallerstein – Outras Palavras - Tradução: Antonio Martins e InêsCastilho - Imagem: Eric Drooker

Quanto Bernie Sanders anunciou que disputaria a indicação pelo Partido Democrata à presidência dos EUA, pouca gente o levou a sério. Hillary Clinton parecia ter tanto apoio que sua escolha parecia garantida sem dificuldades.

Contudo, Sanders persistiu em sua busca aparentemente utópica. Para surpresa da maioria dos observadores, o tamanho de sua audiência em encontros que se espalharam pelo país passou a aumentar de modo consistente. Sua tática essencial era atacar as grandes corporações. Ele lembrava que elas usam seu dinheiro para controlar decisões políticas e anular o debate sobre o abismo crescente entre os muito ricos e a vasta maioria do povo americano, que perde renda real e empregos. Para enfatizar sua posição, Sanders recusou-se a receber dinheiro de grandes doadores e arrecadou fundos apenas de indivíduos que doam pequenas quantias.

Ao fazer isso, Sanders tocou num veio profundo do descontentamento popular, não apenas entre aqueles que estão na base da pirâmide de renda mas da assim chamada classe média, que teme estar sendo levada para o fundo do poço. Agora, as pesquisas mostram que Sanders ganhou apoio suficiente para atuar como um sério oponente a Clinton.

Sanders tem suas limitações, especialmente o fato de que seu apelo para minorias raciais e étnicas parece limitado. Mas tem sido bem sucedido em forçar o debate público sobre a desigualdade de renda. Ele empurra o discurso de Hillary para a esquerda, já que ela busca recuperar eleitores potenciais de seu oponente. Seja qual for o resultado final da convenção do Partido Democrata, Sanders conseguiu muito mais do que quase todos previram no início de sua campanha. Ele forçou, no mínimo, um sério debate sobre programa, no Partido Democrata.

Em janeiro de 2016, parece ter começado uma campanha paralela na França. É semelhante, em vários sentidos, à de Sanders; mas também bem diferente, devido à estrutura das instituições eleitorais dos dois países.

Três intelectuais de esquerda decidiram lançar um apelo público por uma prévia da esquerda. Eles são Yannick Jadot, um ativista de longa data em grupos ambientalistas; Daniel Cohn-Bendit, famoso por sua participação em maio de 1968 mas empenhado, há algum tempo, em unir forças ambientalistas, socialistas de esquerda e pró-Europa; e Michel Wieviorka, um sociólogo que foi conselheiro da figuras à esquerda, no Partido Socialista.

Eles fizeram um apelo público denunciando a passividade diante da guinada à direita na política francesa – incluindo, é claro, a crescente força eleitoral da Frente Nacional. Apelaram a um debate público sério sobre como unir as forças de esquerda e centro-esquerda para incidir nas eleições presidenciais previstas para 2017. Antes de fazer esse apelo, buscaram apoio de intelectuais conhecidos do público, de múltiplas categorias políticas – inclusive Thomas Piketty e Pierre Rosanvallon. E persuadiram o Libération, maior jornal francês de centro-esquerda, a dedicar uma edição inteira, em 11 de janeiro de 2016, ao apelo e seus múltiplos apoios.

Duas semanas depois, em 26 de janeiro, o Libération dedicou outra edição ao mesmo tema. A essa altura, 70 mil pessoas haviam assinado o documento. A edição continha artigos de várias personalidades públicas sobre temas que viam como os principais a ser debatidos, e sobre como debatê-los melhor. Muito do debate está centrado em qual é a função de uma prévia. O conceito é importado das eleições norte-americanas mas é, também, uma resposta aos resultados totalmente inesperados das eleições presidenciais francesas de 2002.

Nas regras que atualmente presidem as eleições presidenciais francesas, a menos que um candidato receba a maioria dos votos, há um segundo turno, no qual concorrem apenas os dois primeiros colocados no turno inicial. Presumia-se, portanto, que o primeiro turno fosse uma espécie de prévia, em que cada tendência política deveria mostrar sua força. Acreditava-se que o segundo turno colocaria frente a frente os dois partidos principais (de centro-direita e centro-esquerda).

Em 2002, entretanto, o candidato da Frente Nacional, de ultra-direita, afastou o Partido Socialista do segundo turno. O leque de opções dos eleitores ficou restrito à Frente Nacional ou ao partido tradicional à direita do centro. Diante desta opção, o Partido Socialista apoiou o candidato à direita no segundo turno, o que permitiu sua vitória tranquila. Isso deveu-se a algo simples. Houve muitos candidatos de esquerda e centro-esquerda no primeiro turno, o que impediu que o Partido Socialista obtivesse número suficiente de votos para chegar à disputa final.

O impacto das eleições de 2002 foi traumático para a esquerda francesa. O velho sistema foi concebido para uma situação na qual haja dois partidos principais. Não funciona para uma situação tripartite. Para evitar a repetição da derrota, o Partido Socialista decidiu, em 2011, realizar uma disputa prévia, aberta a qualquer um. Este processo foi bem sucedido, ao evitar que a maior parte dos candidatos da esquerda (embora não todos) disputassem diretamente as eleições – já que poderiam apresentar-se à disputa interna do Partido Socialista. A abertura levou muitos eleitores centristas a participar da prévia – o que permitiu que Hollande derrotasse um postulante à sua esquerda; e, ao final, se tornasse presidente, ao vencer o candidato da direita, o então presidente Nicolas Sarkozy.

Porém, agora que é presidente, a última coisa que Hollande deseja são prévias em que poderia ser derrotado. Ele tem perdido apoio entre o Partido Socialista, onde, um após o outro, personagens situados mais à esquerda afastaram-se ou foram expulsos de seus postos no ministério. Ele teme a entrada de novos nomes no primeiro turno da disputa, o que poderia levar à repetição do que ocorreu em 2002. Ao mesmo tempo, Sarkozy também enfrenta forte demanda por prévias em seu partido – uma disputa que também ele não teria certeza alguma de vencer.

O problema, em ambos os partidos principais, é que estão divididos internamente sobre muitos temas relevantes. Os socialistas e as forças de esquerda, debatem-se entre manter os programas liberais ou retomar as políticas bem-estar social. Há a clivagem sobre como definir laicidade – em termos absolutos ou com tolerância às identidades culturais. E há a clivagem entre fortalecer ou enfraquecer as instituições europeias. Finalmente, há o tema, agora polarizador, do chamado “confisco de nacionalidade”, por meio do qual propõe-se que cidadãos nascidos na França sejam privados de sua nacionalidade, caso condenados por qualquer delito definido como “ajuda ao terrorismo”. Foi, historicamente, uma proposta da direita, fortemente combatida pelo Partido Socialista. A reviravolta, que seguiu-se aos atentados do Estado Islâmico em Paris, em 13 de Novembro, provoca enorme desconforto entre os socialistas.

Hollande disputa, hoje como o candidato com posições conservadoras sobre todos estes assuntos. Espera vencer como o representante da luta contra o terrorismo e, portanto, alguém que merece o apoio do centro. É este candidato que o apelo às forças de esquerda tenta conduzir a um debate público.

O paralelo com Sanders é que o grupo francês pode estar captando o mesmo descontentamento popular em que o candidato rebelde dos EUA apoiou-se, para lançar-se candidato. A diferença é que os franceses enfrentam um presidente no poder, capaz de exercer todas as formas concebíveis de pressão para disciplinar os membros de seu partido. Saberemos, talvez, em seis meses, se podem ter êxito semelhante ao de Sanders.

*Immanuel Wallerstein é um dos intelectuais de maior projeção internacional na atualidade. Seus estudos e análises abrangem temas sociólogicos, históricos, políticos, econômicos e das relações internacionais. É professor na Universidade de Yale e autor de dezenas de livros. Mantém um site onde publica seus textos (http://www.iwallerstein.com/).

Arbitragem da ONU exige que Suécia e Reino Unido indemnizem Julian Assange



O grupo de trabalho da ONU que concluiu que o fundador do WikiLeaks Julian Assange se encontra detido ilegalmente na embaixada do Equador em Londres exigiu hoje à Suécia e ao Reino Unido que o indemnizem.

"O fundador do WikiLeaks Julien Assange foi arbitrariamente detido pela Suécia e pelo Reino Unido desde a sua prisão, em Londres, a 07 de dezembro de 2010", indicou o grupo de trabalho da ONU, em comunicado.

Os cinco especialistas independentes que integram o grupo apelaram às "autoridades suecas e britânicas" para colocarem um ponto final na detenção e respeitarem o seu direito a ser indemnizado.

O Governo britânico rejeitou hoje "categoricamente" a decisão do grupo que classificou de "detenção arbitrária" o confinamento de Julian Assange ao espaço da embaixada do Equador em Londres, disse um porta-voz.

"Isso [decisão do grupo de trabalho da ONU] não muda nada. Nós rejeitamos categoricamente a afirmação de que Julian Assange é vítima de uma detenção arbitrária", indicou um porta-voz do executivo britânico, em comunicado.

O Reino Unido já comunicou às Nações Unidas que irá contestar formalmente a decisão do grupo de trabalho, acrescentou o mesmo porta-voz.

O grupo de trabalho da ONU sobre detenção arbitrária determinou na quinta-feira que a reclusão do fundador do WikiLeaks Julian Assange na embaixada do Equador em Londres representa uma detenção ilegal, segundo anunciou a diplomacia sueca.

Assange, 44 anos, encontra-se recluso na embaixada do Equador desde 2012, quando esse país lhe concedeu asilo, após um longo processo legal no Reino Unido, que terminou com a decisão da sua entrega às autoridades da Suécia, onde é suspeito de crimes sexuais.

O fundador do portal WikiLeaks disse na quinta-feira esperar ser tratado como um homem livre se o grupo de trabalho das Nações Unidas decidisse em seu favor.

RCP (JPS/PAL) // JPS - Lusa

XANANA GUSMÃO VAI LIDERAR NEGOCIAÇÕES DE FRONTEIRAS COM AUSTRÁLIA E INDONÉSIA



O ministro timorense Xanana Gusmão vai liderar a equipa do país de negociação dos tratados de delimitação definitiva das fronteiras marítimas permanentes com a Austrália e a Indonésia, informou o Governo.

A decisão foi tomada na reunião de quarta-feira do Conselho de Ministros, segundo explicou o executivo em comunicado.

Como "negociador principal", Xanana Gusmão - ex-primeiro-ministro e ex-chefe de Estado e atual ministro do Planeamento e Investimento Estratégico - é "responsável pela definição da estratégia de negociações do Conselho para a Delimitação Definitiva das Fronteiras Marítimas".

Em causa estão negociações separadas com a Indonésia e com a Austrália para concluir a delimitação das fronteiras marítimas com Timor-Leste.

No caso da Indonésia estão ainda por concluir a definição das fronteiras terrestres, processo que está praticamente terminado, faltando apenas acordar alguns dos pontos da linha que divide a ilha de Timor ao meio.

No caso das fronteiras marítimas, a maior tensão é com a Austrália, com Díli a manter a posição de defesa da linha meridiana entre Timor-Leste e o continente australiano.

Este aspeto é essencial já que a aplicar-se esse princípio, previsto na Lei do Mar, grande parte dos recursos petrolíferos e de gás natural da atual zona conjunta de exploração ficariam em águas timorenses.

Atualmente está um curso uma campanha da parte de apoiantes de Timor-Leste na Austrália que acusam Camberra de se recusar a negociar, ficando com parte dos recursos que legalmente pertencem aos timorenses.

Os dois países estão atualmente envolvidos num processo de arbitragem porque Timor-Leste questiona a legalidade do tratado que atualmente vigora e que, sustenta, foi fechado numa altura em que a Austrália levou a cabo espionagem em Díli.

Este assunto tornou-se particularmente polémico porque recentemente o Governo australiano recusou devolver o passaporte ao ex-espião que deveria testemunhar no Tribunal Arbitral em Haia sobre o sistema de espionagem que, a pedido de Camberra, instalou no Palácio do Governo de Timor-Leste em 2004.

Espiões australianos liderados por essta testemunha (apenas conhecida como "testemunha K") aproveitaram obras de reconstrução nos escritórios do Governo timorense em Díli, oferecidas como cooperação humanitária da Austrália, para instalar equipamento de espionagem em 2014.

Díli apresentou uma queixa no Tribunal Arbitral de Haia, argumentado que, devido às ações do Governo australiano, o tratado é ilegal.

Nesse processo, o testemunho de "K" é considerado essencial, mas o homem está impedido de sair da Austrália desde 2012, quando agentes da ASIO (serviços secretos australianos) efetuaram uma rusga à sua casa confiscando, entre outra documentação, o seu passaporte.

No início de dezembro de 2013, agentes da ASIO efetuaram também uma rusga ao escritório do advogado de Timor-Leste Bernard Collaery, em Camberra, confiscando documentação que pertence ao Governo timorense.

Esse material incluía "detalhes sobre atividades de espionagem por parte da Austrália em relação a Timor-Leste, durante a negociação do Tratado sobre Determinados Ajustes Marítimos no Mar de Timor (DAMMT)", segundo o Governo timorense.

ASP // MP - Lusa

Ministro da Justiça timorense destaca apoio português à Câmara de Contas do país



O ministro da Justiça timorense destacou hoje a importância do apoio de Portugal à justiça em Timor-Leste, nomeadamente na criação da Câmara de Contas, essencial para ajudar a fomentar a "cultura de rigor na gestão dos recursos públicos".

A Câmara de Contas é uma entidade "fundamental para melhorar progressivamente a confiança no acesso das pessoas, dos agentes económicos e das entidades públicas e privadas nos serviços públicos timorense", considerou Ivo Valente.

"Acreditamos que têm sido dados passos significativos no controlo e transparência das contas públicas", disse, acrescentando que "o esforço, no que se refere a grandes projetos, exige de todos os atores sociais um empenho redobrado, com forte papel pedagógico, evitando erros no desenho e implementação de orçamentos".

Para o ministro, o reconhecimento da Câmara de Contas não se reflete apenas nas suas atividades de fiscalização, mas no impacto que está a ter noutras entidades públicas, onde se evidencia "uma crescente vontade de aprofundar o conhecimento sobre auditoria e fiscalização das contas públicas".

Ivo Valente falava num seminário sobre o papel de controlo financeiro da Câmara de Contas, que cumpre três anos de atividade. Esta entidade foi criada e desenvolvida pelo programa de justiça do programa de governação da União Europeia, executado pela cooperação delegada em Portugal através do Instituto Camões.

O seminário concluiu um ciclo de formação de auditores da Câmara de Contas e outras entidades timorenses dominado pelos temas da auditoria operacional e obras públicas e de fiscalização prévia e que contou com o apoio das entidades congéneres de Portugal, Brasil e Cabo Verde.

Manuel Gonçalves de Jesus, embaixador de Portugal em Díli, sublinhou que o contributo do programa de justiça, ao longo dos últimos quatro anos, foi essencial para a criação e operacionalização da Câmara de Contas (CC), "no intuito de zelar pela responsabilização financeira das contas públicas".

A CC, disse, está hoje em pleno funcionamento, exercendo todas as modalidades de controlo financeiro previstas na lei, incluindo fiscalização a vários ministérios, aos orçamentos e aos projetos.

A participação dos auditores e inspetores nas várias formações técnicas levadas a cabo deixaram os elementos da CC "melhor preparados" para responder aos crescentes desafios, especialmente "pelo peso dos grandes projetos de investimentos no Orçamento do Estado nos próximos anos".

"Isso requer à CC e aos seus auditores uma preparação muito exigente, capacitando-os para exercerem e assumirem uma importante função de controlo", afirmou, renovando o apoio de Portugal a este setor.

Sylvie Tabesse, embaixadora da UE em Díli, destacou, por seu lado, os êxitos conseguidos pelo programa, implementado com o apoio de Portugal, recordando que em qualquer país as Câmaras de Contas "são instituições que existem para melhorar a prestação de serviços pela administração".

Hoje, disse, os efeitos positivos do apoio dado à capacitação dos auditores timorenses já se evidencia no papel de fiscalização que tem levado a cabo nos últimos meses.

Por isso, considerou vital que o apoio a este setor continue, mantendo a opção atual de recorrer a especialistas de serviços públicos de outros países que trazem a sua experiência a Timor-Leste.

Maria Natércia Gusmão, juíza conselheira do Tribunal de Recurso, em substituição do presidente, ausente de Timor-Leste por motivos de saúde, destacou a importância "vital" da CC para garantir a legalidade dos gastos públicos.

A instituição, recordou, serve os cidadãos e o Estado de direito garantindo a aplicação legal e responsável dos recursos públicos e fortalecendo o processo de construção do Estado.

ASP // MP - Lusa

Polícia chinesa admite que livreiros de Hong Kong desaparecidos estão sob sua custódia



A polícia da província chinesa de Guangdong confirmou pela primeira vez que três livreiros de Hong Kong, desaparecidos desde outubro, estão sob sua custódia e a ser investigados na China continental, escreve hoje o South China Morning Post.

Segundo o jornal, as autoridades de Guangdong disseram ainda à polícia de Hong Kong que o dono da livraria Causeway Bay Books, Lee Bo, que também esteve desaparecido e se encontra igualmente na China, não se quis encontrar com a polícia da antiga colónia britânica.

São cinco os livreiros de Hong Kong desaparecidos desde outubro, todos eles ligados à Causeway Bay Books, conhecida por vender livros críticos do regime chinês.

Um deles, Gui Minhai, surgiu em janeiro na televisão estatal chinesa a afirmar que se entregou às autoridades por um crime que alegadamente cometeu há 12 anos. O Departamento de Segurança Pública de Guangdong disse na quinta-feira que os seus três colegas, que desapareceram em viagens a Shenzhen e Dongguan, são suspeitos de envolvimento no mesmo caso e em "atividades ilegais na China continental".

Dos cinco desaparecidos, apenas Lee Bo e Gui Minhai tinham dado sinal de vida até agora.
Esta foi a primeira vez que a polícia de Guangdong confirmou que Lui Por, Cheung Chi-ping e Lam Wing-kee estavam sob a sua custódia na China.

"Medidas criminais obrigatórias foram-lhes aplicadas e estão sob investigação", escreveu a polícia de Guangdong numa carta dirigida aos seus homólogos de Hong Kong, uma região chinesa, mas com administração especial, tal como acontece com Macau.

Na noite de quinta-feira, a polícia da antiga colónia britânica disse ter escrito novamente às autoridades da província vizinha pedindo ajuda no caso de Lui, Cheung e Lam, e solicitando que passassem a mensagem a Lee de que continua a querer encontrar-se com ele o mais rapidamente possível.

Hoje, o chefe do Executivo de Hong Kong, CY Leung, afirmou que as autoridades vão continuar a investigar o que aconteceu aos livreiros, agora que foi confirmado que os cinco estão na China, segundo a RTHK.

O investigador da Amnistia Internacional, William Nee, disse à RTHK que o Governo de Pequim tem de ser pressionado para divulgar mais informação sobre estes homens, incluindo onde estão detidos e que acusações enfrentam.

Segundo o South China Morning Post, é improvável que este desenvolvimento contribua para a reduzir a especulação de que os livreiros foram sequestrados e levados para a China continental por agentes que atuaram além das suas fronteiras e jurisdição, violando o princípio "um país, dois sistemas", ao abrigo do qual as políticas socialistas da China não se aplicam em Hong Kong e Macau, que gozam de ampla autonomia.

Dos cinco livreiros, Gui, que também tem nacionalidade sueca, foi o que desapareceu há mais tempo, quando se encontrava de férias na Tailândia, tendo reaparecido em janeiro na televisão chinesa, num vídeo em que afirma que fugia há 12 anos à justiça da China, que o condenou por ter causado a morte de uma mulher ao conduzir embriagado em 2004.
Familiares e amigos duvidam da veracidade da confissão.

Lee Bo, o sócio maioritário da Causeway Bay Books, foi visto pela última vez em Chai Wan, Hong Kong, a 30 de dezembro. Não há qualquer registo de que Lee tenha deixado Hong Kong e o próprio terá dito, recentemente, que se deslocou voluntariamente à China para participar numa investigação.

ISG // MP - Lusa

RENAMO DENUNCIA RAPTO DE DIRIGENTE NO CENTRO DE MOÇAMBIQUE



A Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), maior partido da oposição em Moçambique, denunciou hoje o rapto do seu delegado distrital de Gondola, Manica, centro do país, por um grupo armado à civil.

Em declarações à Lusa, Sofrimento Matequenha, delegado político provincial da Renamo em Manica, contou que um grupo de homens introduziu-se na noite de quarta-feira na casa do delegado distrital de Gondola e raptou-o, mantendo-se desaparecido.

"Os homens entraram na sala e encontraram-no a assistir televisão às 21:00 de quarta-feira, raptando-o. Mas o delegado resistiu e foi imobilizado com um tiro no pé. Quando o filho tentou acudi-lo, também foi atingido no braço", explicou Sofrimento Matequenha, acrescentando que a situação provocou o pânico entre os vizinhos.

Denunciado o caso à polícia, segundo Sofrimento Matequenha, esta só viria a estar presente no local na manhã de hoje para trabalhos de perícia.

A porta-voz do comando provincial da polícia de Manica, Elcídia Filipe, disse à Lusa que a polícia esta a trabalhar para apurar as circunstâncias e esclarecer o rapto.

Este é o segundo caso de rapto de membros da Renamo em Gondola em menos de duas semanas, tendo o primeiro ocorrido no cruzamento de Inchope, quando um jovem foi levado e mais tarde devolvido com sinais de tortura.

No entanto, também a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) tem denunciado casos de raptos dos seus membros e outros incidentes, imputando-os ao maior partido de oposição.

Na quarta-feira, a Rádio Moçambique avançou que supostos homens armados da Renamo atacaram membros da Frelimo no distrito de Maringué, província de Sofala, onde o partido da oposição mantém uma base militar, e um deles ficou em estado grave.

"Homens armados da Renamo em Maringué queimaram as casas de cidadãos que são membros da Frelimo, balearam pessoas inocentes", disse o primeiro secretário da Frelimo na província de Sofala, centro do país.

Contactado hoje pela Lusa, o porta-voz da Renamo, António Muchanga afirmou que houve apenas uma casa queimada em Maringué e afastou responsabilidades do seu partido.

Segundo Muchanga, tratava-se de um homem que alegadamente recrutava jovens para se apresentarem como desertores da Renamo e que não terá dividido o dinheiro com as respetivas famílias.

Foram as famílias desses jovens, acusou, que queimaram a casa, em retaliação.

Na sexta-feira, a Polícia da República de Moçambique (PRM) acusou a Renamo de ter atacado o povoado de Saute, na província de Gaza, sul do país, tendo matado um motorista de trator.

A polícia moçambicana afirmou também estar em posse de provas implicando a Renamo em alegados recentes ataques a posições das forças de defesa e segurança, apesar de não ter realizado nenhuma detenção e de o partido de oposição negar o seu envolvimento.

As denúncias de incidentes dos dois lados da crise política em Moçambique têm vindo a aumentar nas últimas semanas, com o agravamento da instabilidade no país.

Moçambique vive uma situação de incerteza política há vários meses e o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, ameaça tomar o poder em seis províncias do norte e centro do país, onde o movimento reivindica vitória nas eleições gerais de 2014.

No dia 20 de janeiro, o secretário-geral da Renamo, Manuel Bissopo, foi baleado por desconhecidos no bairro da Ponta Gea, centro da Beira, província de Sofala, centro de Moçambique e o seu guarda-costas morreu no local, num caso que continua por esclarecer.

A Renamo pediu recentemente a mediação do Presidente sul-africano, Jacob Zuma, e da Igreja Católica para o diálogo com o Governo e que se encontra bloqueado há vários meses.

O Presidente moçambicano tem reiterado a sua disponibilidade para se avistar com o líder da Renamo, mas Afonso Dhlakama considera que não há mais nada a conversar depois de a Frelimo ter chumbado a revisão pontual da Constituição para acomodar as novas regiões administrativas reivindicadas pela oposição e que só negociará depois de tomar o poder no centro e norte do país.

AYAC/HB (EYAC) // EL - Lusa

Portugal. A REINVENÇÃO DE PASSOS



David Pontes* – Jornal de Notícias, opinião

"Não tenho de me reinventar", disse há dias o antigo primeiro-ministro hoje recandidato a líder do PSD. O homem que venceu José Sócrates, prometendo que não ia cortar onde o socialista tinha cortado, e que acabou a ceifar onde o socialista só ousava aparar, perdeu o poder e vê hoje outros a somar onde ele tinha subtraído.

Regressar à pele de primeiro-ministro sem se reinventar significará ficar imóvel à espera que a oportunidade venha ter com ele. Ora isso só acontecerá, pelo menos a médio prazo, se as coisas correrem muito mal para os socialistas e, consequentemente, para o país. Este cenário de crise é para já a melhor hipótese de Passos Coelho, pois não são poucas as dificuldades que terá para se afirmar como alternativa nos próximos tempos.

A personalidade austera de estadista, que Passos, de "pin" na lapela, tem dificuldade em abandonar, até lavra bem fundo nos portugueses (basta lembrar Cavaco Silva primeiro-ministro), mas funciona bem enquanto se está no poder. Na Oposição e quando quem ocupa o Governo vai mostrando alternativas, mesmo que de alcance limitado, onde antes se jurou que não as havia, a pose de pai inflexível fica curta para despertar interesse numa mudança. Passos necessita de explicar o futuro e, para já, ainda parece demasiado agarrado ao passado. Para quem teve duas recentes vitórias eleitorais, mesmo que amargas, é difícil atribuir-lhe a imagem de vencedor.

Não faltará a Passos Coelho a paciência para esperar pela possibilidade de o tempo lhe dar razão, até porque, para já, tem consigo um partido onde não há alternativa e nem parece haver alguma vontade de que haja. Mas se o caminho não é fácil na luta com os seus adversários naturais, também não estará facilitado com aqueles que deveriam ser os seus aliados.

O seu parceiro de coligação, o CDS-PP, fez uma leitura diferente da realidade política e prepara-se para eleger um novo líder, que poderá querer disputar um centro que a necessidade de enunciar a "social-democracia, sempre!" só revela como ficou abandonado pelo PSD. E o novo presidente eleito, mesmo se apoiado pelo partido de Passos Coelho, terá num primeiro mandato a vontade de alargar o seu espaço político e, como tal, pouca inclinação para se tornar um problema para o Governo socialista.

O recandidato a líder do PSD poderá não querer reinventar-se, mas o cenário adverso exige um novo Passos Coelho.

*Subdiretor

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