Os
pais da liberdade são os cidadãos livres que a conquistam e a defendem, mas têm
quase sempre pela frente aqueles que, graças a usos mais ou menos perversos do
poder, sustentam estar escrito no destino haver uns cidadãos mais livres do que
outros.
José Goulão*, jornalista –
AbrilAbril, opinião
A história
para consumo geral é escrita pelos vencedores e suas estruturas de domínio. E
quando a História é ainda contemporânea e se confunde com a comunicação social,
guiada por mecanismos de propaganda, dos mais grosseiros aos delicadamente
sofisticados, a vantagem das forças dominantes torna-se esmagadora, entrando
pelos domínios da mitologia inquestionável, servida por axiomas asfixiantes.
A
morte não apaga as realidades nem os factos vividos; não os transforma, mesmo
quando oportunisticamente manipulados por quem considera legítimo domar
consciências, em mandamentos de uma doutrina de obediência colectiva,
condenando os que não a aceitam à marginalidade do pariato eterno.
Como
se previa ainda em vida, a morte transformou Mário Soares num mito histórico à
velocidade da tecnologia de ponta. Para que não entrem em piloto automático os
efeitos dos axiomas que balizam a queda no delito de opinião, cabe-me escrever,
com toda a honestidade, que não estão minimamente em questão o antifascismo de
Mário Soares nem a sua coragem para enfrentar a besta salazarenta, ainda que
outros tenham sofrido bem mais dolorosamente as consequências de tal destemor e
tantos louvores não tenham recebido, pelo contrário, sejam ainda alvo de
insultos e pasto de mentiras difamatórias, mais cruéis ainda quando delas já
não se podem defender.
Ponto
assente: Mário Soares foi um corajoso antifascista.
Agora
«pai da democracia» e «pai da liberdade»?
Os
mitos históricos têm progenitores: a propaganda que fabrica a História
regimental e os poderes que a alimentam e dela se nutrem, num descarado
processo de parasitismo. Quanto ao pai da democracia, outro não é que não o
povo que a pratica, quando não há esbirros ou mecanismos cínicos que o impeçam
– à bruta ou através de processos de controlo e manipulação; os pais da
liberdade são os cidadãos livres que a conquistam e a defendem, mas têm quase
sempre pela frente aqueles que, graças a usos mais ou menos perversos do poder,
sustentam estar escrito no destino haver uns cidadãos mais livres do que
outros.
Decifrando
a cacofonia que vem atordoando o país nestes dias, ladainhando mil e um
monólogos redondos em torno de duas ou três mensagens propagandísticas feitas e
refeitas, concluiu-se que Mário Soares foi, sim, um dos pais fundadores do tipo
de regime financeiro, económico e político que hoje se aplica em Portugal,
subsidiário do ordenamento não-democrático da União Europeia; e tutor de uma
liberdade sem dúvida condicionada, para a maioria dos cidadãos, pelos
instrumentos e tentáculos da mesma União Europeia.
A
manipulação subjacente a tanto ruído ambiente, gritando para milhões o que
poderia resumir-se em meia dúzia de frases simples, é a confusão abusiva entre
democracia plena, prometida pela Revolução de 25 de Abril, e o regime de
democracia parcial em funcionamento; e entre liberdade humanista e o labirinto
de liberdades, condicionamento de direitos civis, laborais e sociais e austeridades
em que se transformou a sociedade portuguesa, marioneta dos interesses
convergentes que se empanturram em Bruxelas.
«(...)
Mário Soares foi, sim, um dos pais fundadores do tipo de regime financeiro,
económico e político que hoje se aplica em Portugal, subsidiário do ordenamento
não-democrático da União Europeia (...)»
Mário
Soares, o antifascista, cedo abandonou a dinâmica transformadora da Revolução
de Abril, passando, no âmbito da sua acção e cargos, a desenvolver contactos
com o embaixador norte-americano Frank Carlucci – futuro director da CIA –
que se ingeria descaradamente, conspirando, nos assuntos portugueses; e do
golpe de 25 de Novembro de 1975 ainda hoje sabemos apenas quanto baste do que
interessa aos que dele tiraram proveito e proveitos; o soarismo que lhe sucedeu
imprimiu marcas indeléveis que pouco correspondem às deixadas para trás por
Mário Soares, no período antifascista.
Paradoxalmente,
por uma caprichosa ironia a que, pelos vistos, nem os mais cuidados mitos
históricos escapam, a figura tutelar do soarismo desaparece fisicamente num
período em que o governo de Portugal resulta de uma solução política que
contraria um dos mais rígidos axiomas soaristas – estando, até há pouco,
rigorosamente bloqueada.
Recordando
o percurso de Portugal desde 25 de Abril de 1974, se as realidades vividas pelo
país forem encaradas livres de manipulações, enviesamentos e mentiras da
propaganda, comprovam que os conceitos de democracia e liberdade aplicados pelo
soarismo foram condicionados por um redil político (determinado por poderes
financeiros e económicos); uma tal cerca marginalizou os que se afirmaram
ideologicamente diferentes, logo acusados, sem provas, de serem adeptos de
soluções ditatoriais ou não-democráticas – afastados sumariamente de soluções
governativas mesmo que proporcionassem maiorias parlamentares estáveis.
Não
foram raros os casos como esses registados ao longo de décadas, com a agravante
perversa de os excluídos serem também acusados de não pretenderem governar,
apesar de multiplicarem apelos ao entendimento, acabando o sistema patrocinado
pelo soarismo de se enquistar no «arco da governação» só recentemente quebrado.
Os
conceitos de liberdade e democracia do soarismo tiveram aplicações práticas
orientadas pela vontade de tolher o potencial de desenvolvimento do país
libertado popularmente em 25 de Abril de 1974, encafuando Portugal num
colete-de-forças de bastidores no qual, durante tempo excessivo, foi privado
das suas principais energias económicas, culturais e criativas, delapidado do
património estatal, minado por interesses alheios. Enquanto isso, a vontade
manifestada livremente pelo povo, em sucessivas eleições, foi ficando refém de
entidades e organismos não-eleitos, ao serviço de poderes transnacionais
nefastos para o povo, para os cidadãos que se crêem livres.
A
integração na CEE sem qualquer auscultação da opinião popular, o arranque da
liberalização sem fim do mercado de trabalho – com o seu cortejo de
inseguranças e perda de direitos dos trabalhadores –, a abertura das portas ao
FMI, a destruição da Reforma Agrária, o enfraquecimento do movimento sindical
concertado através de uma coligação institucional com o PPD/PSD, a passadeira
estendida às privatizações, com os resultados que estão bem à vista, as
responsabilidades perante a desastrosa integração no euro – novamente sem que
fosse pedida opinião ao povo – são marcos indeléveis no itinerário soarista até
um país que continua a sofrer de desigualdades profundas, enquanto é vítima de
ataques de entidades não-democráticas que menosprezam a sua soberania.
«Os
conceitos de liberdade e democracia do soarismo tiveram aplicações práticas
orientadas pela vontade de tolher o potencial de desenvolvimento do país
libertado popularmente em 25 de Abril de 1974 (...)»
O
ser e o parecer muitas vezes não coincidem, e assim foi em Mário Soares quando,
apesar do inflamado discurso anti-neoliberal dos últimos anos, não aproveitou,
quando podia, as oportunidades para combater a ascensão e implantação interna
do neoliberalismo, uma vez que dispôs dos instrumentos governativos e
presidenciais para o fazer.
O
caminho do país sujeito à influência soarista foi percorrido sob uma governação
restringida sectariamente a um bloco bipartidário na prática, excluindo da
democracia as forças que propunham alternativas de facto e não uma alternância
que se foi institucionalizando, favorecendo interesses minoritários, a vertente
privada e encorajando a corrupção atrelada a um processo nocivo de privatização
do próprio Estado.
A
imposição do chamado bloco central, apesar – repete-se – das numerosas
propostas para materializar uma vontade popular maioritária que proporcionaria
frequentes entendimentos governativos do PS com forças à sua esquerda, é a
marca mais negativa para o país resultante das opções de Mário Soares, e da
qual decorrem praticamente todas as outras. Com a agravante de ter permitido
que esse procedimento fosse camuflado com a enorme mentira, resistente até há
pouco, segundo a qual partidos como o PCP não tinham interesse em associar-se à
acção governativa, remetendo-se a um papel «contestatário», logo decorativo.
Neste
aspecto, ao corajoso antifascista que foi Mário Soares faltou o destemor para
fazer vingar os interesses reais dos portugueses como cidadãos livres
usufruindo de uma democracia plena. O soarismo rendeu-se às normas
antidemocráticas impostas surdamente através da NATO, impedindo qualquer
Partido Comunista de um país ocidental de chegar a plataformas governativas.
É
certo que o humanista democrata-cristão italiano Aldo Moro pagou com a vida a
ousadia de estabelecer acordos de incidência parlamentar com o PCI, comparáveis
aos que existem agora em Portugal entre o PS e o PCP. A coragem que atribuem a
Mário Soares na defesa da democracia teria sido então de uma importância
determinante para os portugueses se a ela tivesse recorrido, até às últimas
consequências, na interpretação da vontade popular.
Por
ironia do destino, foi ainda em vida de Mário Soares que se deu a primeira
ruptura com o edifício do soarismo limitador das potencialidades democráticas
do sistema multipartidário. Quando se constrói um mito histórico, a obra só
poderá dar-se por terminada quando reflectir a realidade global do percurso
percorrido em vida, e não apenas os troços parciais de que alguns pretendem
continuar a extrair vantagens, mesmo que seja à custa dos interesses de muitos
e dos direitos de todos à democracia e liberdade plenas.
Nesse
caso restrito, pode ser um mito histórico sectariamente útil; mas é incompleto,
impreciso e, mais grave ainda – o que será insultuoso para o próprio – nocivo
para o país, insuficientemente democrático, manipulador de consciências,
enganador das gerações mais jovens e das que virão.
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