quinta-feira, 9 de março de 2017

CONCEITOS DIVERGENTES DE POPULISMO


Prabhat Patnaik [*]

Muitas vezes a mesma palavra é utilizada por diferentes pessoas com diferentes significados e isto pode ser uma fonte de imensa confusão. O Banco Mundial aproveitou-se bem disso, apossando-se de expressões que estavam a ser utilizadas num sentido particular, especialmente pela esquerda, e utilizando-as num sentido muito diferente, a fim de criar confusão deliberada e explorar de alguma forma o sentimento simpático que a expressão havia despertado na sua utilização inicial. "Ajustamento estrutural" é um bom exemplo de tal apropriação pelo Banco Mundial. Na sua utilização inicial sugeria que a solução mercado era inadequada em países do terceiro mundo e que, em alternativa, o que era necessário era "mudança estrutural" associada a mudanças nas relações de propriedade, tais como reformas agrárias. Mas o Banco Mundial utilizou a expressão "ajustamento estrutural" para dizer exactamente o oposto, nomeadamente para evitar quaisquer mudanças em relações de propriedade e para introduzir "mercados livres" por toda a parte.

A expressão "sociedade civil" utilizada por Hegel, e muitas vezes mencionada por Marx, é outro exemplo óbvio. "Sociedade civil" nos seus escritos era para ser distinguida do Estado e referia-se a todo o conjunto das relações sociais (as quais de acordo com Marx eram determinadas em última análise pelas relações de propriedade dentro das quais a produção era executada). Mas nos dias de hoje a expressão é utilizada essencialmente para referir-se às ONGs, as quais são designadas como sento "Organizações da Sociedade Civil". 
Um destino muito semelhante está agora a ser experimentado, infelizmente, pela palavra "populismo". Nos dias actuais a palavra está a ser utilizada para mencionar a tendência para criar, ou entregar-se a, um estado de espírito que é anti-elite, anti-intelectual e é difundido com um certo maioritarismo irracional. Portanto diz-se de Donald Trump que excita "populismo"; da votação do Brexit diz-se reflectir sentimentos "populistas". Em ambos os casos a referência é para o ressuscitar de sentimentos racistas ou xenofóbicos entre um grupo maioritário, sentimentos esses que podem ter estado dormentes anteriormente ou repousarem dormentes por algum tempo, mas são agora deliberadamente reatiçados. A palavra "populismo" nesta utilização está próxima de palavras como "fascismo", "semi-fascismo", "quase-fascismo" e assim por diante. De facto, dado o contexto da crise económica que atingiu duramente o povo e criou as condições para a emergência do "populismo" neste sentido, e também o facto de que promover um tal "populismo" invoca um "nacionalismo" sem ao mesmo tempo tomar qualquer posição explícita contra a hegemonia da finança, a afinidade com "fascismo" é bastante forte.

Mas apesar de nestes dias a palavra "populismo" ser frequentemente utilizada como um eufemismo para "fascismo" ou "semi-fascismo", nem sempre foi assim. A agitação jallikattu , por exemplo, tem sido descrita como "populista". Se bem que tenha algo em comum com o movimento estilo Trump, ela obviamente não classifica um grupo particular de pessoas como "o outro" e portanto difere muito de tais movimentos. Uma caracterização mais geral da palavra "populismo" na sua utilização actual como anti-elite, anti-intelectual, maioritarismo "irracional" parece portanto ser mais adequada.

Isto contudo é muito diferente do modo como tradicionalmente a palavra tem sido entendida na literatura marxista. "Populismo" aqui refere-se não a um estado de espírito anti-intelectual entre o povo mas sim a uma tendência intelectual muito específica, a qual encara o povo, especialmente o campesinato, como um grupo mais ou menos homogéneo ainda não dividido em classes e não experimentando qualquer processo de diferenciação forte. Os Narodniks russos eram "populistas" neste sentido. Eles acreditavam que poderia ser feito uma transição directa da comuna aldeã russa, o mir , para o socialismo sem passar por uma fase de desenvolvimento capitalista. Vera Zasulich , uma Narodnik importante, escreveu a Karl Marx a pedir sua opinião sobre tal possibilidade.

Os Narodniks foram revolucionários. A tendência intelectual do "populismo" que lhes é atribuída nada tem a ver com qualquer fascismo, semi-fascismo ou quase-fascismo; eles eram "populistas" apenas em contraste com os sociais-democratas: encaravam o campesinato como uma força revolucionária de vanguarda em oposição à classe trabalhadora que os sociais-democratas viam como a força revolucionária principal. Eles viam o campesinato como sendo indiferenciado e concebiam uma transição directa do mir para o socialismo. Na verdade, muitos deles, Vera Zasulich inclusive, posteriormente aderiram ao Partido Social-Democrata, bem como Plekhanov, Axelrod, Lenin, Martov e Potressov, que estavam no conselho editorial do Iskra, o jornal dos sociais-democratas russos.

Lenine escreveu a sua obra clássica O desenvolvimento do capitalismo na Rússia como uma crítica intelectual à posição Narodnik. Nessa obra ele argumentou, com base em estatísticas pormenorizadas, que o capitalismo estava a desenvolver-se rapidamente na Rússia, razão pela qual a velha mir russa havia-se desintegrado, dando lugar à diferenciação entre o campesinato, e havia emergido uma classe trabalhadora que podia, como em outros países capitalistas, proporcionar liderança à Revolução Russa mesmo na sua fase democrática.

Os Narodniks e o fenómeno Trump estão portanto tão afastados como a água do vinho. Nenhum conceito único pode uni-los. Portanto, quando o termo "populismo" está a ser utilizado para o fenómeno Trump, está a sê-lo num sentido completamente diferente do seu uso ao descrever os Narodniks. Não perceber esta distinção pode ser uma fonte de imensa confusão nas fileiras marxistas.

A tendência intelectual do "populismo", tal como entendida na literatura marxista, não se confinava apenas aos Narodniks dos tempos antigos. Trata-se de uma tendência forte e persistente, especialmente sociedades camponesas que ainda existem. Todas as teorias que enfatizam o primado da contradição "campo versus cidade" caem dentro desta categoria, uma vez que vêem um "campo" indiferenciado a ser explorado por uma "cidade" indiferenciada. Mesmo formas inflectidas, nas quais o primado da contradição "campo versus cidade" aparece muitas vezes, tais como o "sector organizado" a explorar o "sector desorganizado", ou o "sector formal" a explorar o "sector informal", as quais estavam muito em voga em certo momento quando a classe trabalhadora organizada era vista como uma "classe privilegiada", uma beneficiária do "intercâmbio desigual" imposto sobre o sector desorganizado pelo sector organizado, pode em linhas gerais (ainda que discutivelmente) ser classificada como pertencente a uma tradição "populista".

Quando o desenvolvimento do capitalismo é fraco, tal como na Rússia pré revolucionária (onde, não obstante as obras de Lenine, não se pode negar que em comparação com a Europa Ocidental a Rússia tinha um grau menor de desenvolvimento capitalista), ou em economias coloniais, ou seja, quando a classe trabalhadora é uma força pequena e a questão de ser ou não uma "classe privilegiada" não é sequer muito relevante, a tendência rumo ao "populismo", rumo à percepção da sociedade em termos "campo versus cidade", é particularmente forte. Na verdade, uma grande quantidade dos escritos de Gandhi pode ser descrita como caindo dentro do género "populismo" no sentido marxista.

Num período mais recente, o falecido V.M. Dandekar, o economista que argumentou, com base nos escritos de J.K. Galbraith, que na Índia havia o sector organizado, consistindo tanto de "capital organizado" como de "trabalho organizado", o qual explorava o sector desorganizado, pode-se dizer que pertencia a este género de "populismo". Tal "populismo" no contexto indiano, entretanto, sempre foi inexacto – pois mesmo os trabalhadores organizados sempre foram um grupo marginalizado – e extinguiu-se completamente sob o impacto do neoliberalismo: o facto de os "trabalhadores" como um todo terem sido gravemente esmagados sob as novas condições torna qualquer alusão ao primado das contradições "campo versus cidade" obviamente inadequado.

Na própria Rússia, mesmo após a Revolução Bolchevique, houve um ressuscitar da tradição "populista", ou uma emergência do que tem sido chamado "neo-populismo", nos escritos de A.V. Chayanov, o qual negava a existência de qualquer tendência no sentido da diferenciação entre o campesinato, argumentando ao invés que as diferenças observadas na dimensão da propriedade agrícola deviam-se a diferenças no tamanho familiar. Isto era completamente contrário à tradição intelectual marxista sobre a questão agrária, articulada entre outros por Kautsky e Lenine, os quais viam a produção capitalista de mercadorias dar origem a uma diferenciação dentro do campesinato e a sua divisão numa classe proto-capitalista de camponeses risco, por um lado, e uma classe semi-proletária de camponeses pobres, por outro lado.

Toda esta linha de pensamento que é de uma tradição intelectual séria, com a qual o marxismo tem estado em contínuo enfrentamento e conflito, e à qual os marxistas geralmente compreenderam como "populismo", deve ser distinguida dos movimentos estilo Trump que estão a aparecer por todo o mundo na actual conjuntura e que também está a ser descrita pela mesma palavra. Por outras palavras, temos mais uma vez o mesmo termo a ser utilizado para descrever fenómenos inteiramente diferentes; devemos estar em guarda contra a possível confusão que isto possa gerar.

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia 

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2017/0219_pd/differing-concepts-populism . Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

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