quarta-feira, 1 de março de 2017

Portugal. MELHOR ATOR SECUNDÁRIO


Pedro Ivo Carvalho – Jornal de Notícias, opinião

Na política como na Sétima Arte, nem sempre o trabalho dos atores secundários é devidamente reconhecido. Pela influência no decurso da narrativa, pelo peso na credibilização da história. Por serem, simultaneamente, âncoras e muletas dos atores principais, eles mereciam mais passadeiras vermelhas. Ainda assim, o cinema consegue ser mais justo com o trabalho destas segundas figuras do que a política. Talvez porque na vida real as segundas figuras sejam, em grande medida, figuras de segunda. Descartáveis até ao limite do necessário.

Veja-se o caso de Paulo Núncio, ex-secretário dos Assuntos Fiscais apanhado a tropeçar nas próprias pernas num momento de fuga política a propósito da cegueira do Fisco no caso das transferências de cerca de dez mil milhões de euros para offshores durante o Governo PSD-CDS. O que disse, então, Paulo Núncio? Várias coisas. Em primeiro lugar, responsabilizou a máquina fiscal por não ter publicado os dados estatísticos relativos às transferências milionárias para paraísos fiscais entre 2011 e 2014, como a lei obriga. A culpa era de um ator secundário. Acontece que esse ator secundário, o ex-diretor-geral do Fisco Azevedo Pereira, garantiu ter solicitado, por duas vezes, a Núncio autorização para publicar essa informação, mas que em ambas as ocasiões ficou a falar sozinho.

Ora, por poder estar em causa mais um "erro de perceção" (estaremos viciados nesta forma alternativa da mentira?), Núncio decidiu mergulhar nos documentos e admitiu, passados uns dias, que afinal o erro fora dele. E que, portanto, a nós não restava outro remédio senão aceitar que, durante anos, o líder de uma organização que transformou cidadãos em criminosos por dívidas de cêntimos tinha deixado escapar transferências astronómicas de dinheiro. Foi então que, num final absolutamente cinematográfico, e demonstrando "elevação de caráter" (a piada é de Assunção Cristas), o ex-governante abandonou os cargos no CDS/PP, libertando, dessa forma, o partido da contaminação negativa do caso.

Para os desmemoriados, Paulo Núncio é o mesmo ex-governante que se embrulhou na lista VIP do Fisco - a tal que ele desconhecia, mas que depois admitiu existir, sob a forma de "procedimentos". A mesma que forçou não a demissão dele, mas dos números um e dois da Autoridade Tributária. Atores secundários.

No caso das offshores, e dê por onde der, já ninguém arranca das mãos de Paulo Núncio o Oscar para o melhor desempenho no papel de um governante distraído. Mas é preciso que haja muitas trocas de envelopes para se apagar da lista de nomeações deste filme político os nomes de Vítor Gaspar, Maria Luís Albuquerque e Pedro Passos Coelho. Uma película desta dimensão não pode viver só de atores secundários.

* Editor executivo adjunto

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