segunda-feira, 6 de março de 2017

SEM A PROTEÇÃO EUROPEIA, CARLOS COSTA ESTAVA NA RUA


Paulo Baldaia – Diário de Notícias, opinião

Julgando impossível vencer a guerra, a geringonça faz guerrilha a Carlos Costa. Pelo Bloco e pelo PCP o processo de destituição do governador do Banco de Portugal já estava iniciado, já estava até concluído. A avaliar pela forma como Carlos César e João Galamba reagiram à reportagem da SIC, os socialistas também têm esse desejo secreto. Quando se ouve o presidente do PS dizer que o partido "está a refletir" sobre as condições que Carlos Costa tem para continuar governador pode traduzir-se por: "É para queimar em lume brando."

Dessa guerrilha que a esquerda parlamentar montou para diminuir o governador faz igualmente parte a água na fervura colocada pelo primeiro-ministro. António Costa, chefe do governo, lembra que ninguém esqueceu o que António Costa, secretário-geral do PS, disse sobre a recondução de Carlos Costa, mas conforma-se quanto à alegada impossibilidade de o substituir, porque o governador "tem um estatuto próprio de inamovibilidade e [está] sujeito à fiscalização própria do sistema de supervisão europeu". A política está sempre a precisar de tradução, desta vez deve ler-se: "Sem a proteção europeia, Carlos Costa já estava na rua."

A pertença à moeda única, que no início do século nos iludiu com o crédito barato, não para de nos apresentar faturas. A começar pelo facto de o crédito já não ser barato e a acabar na perda total de soberania para resolvermos o que se passa cá em casa. É evidente que, a partir de Frankfurt, Mario Draghi e o Banco Central Europeu têm muito mais poder em relação ao Banco de Portugal do que a maioria de esquerda formada no Parlamento português. A eles interessa-lhes pouco estar a discutir o que é ou não é uma falha grave em Lisboa e menos ainda lhes interessa o que António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa pensam de Carlos Costa. Para o BCE interessam muito pouco as responsabilidades próprias, importam muito mais as resoluções alheias.

Impedidos de fazer o que pensam ser o mais acertado (substituir o governador), a maioria e o governo não fazem a vida fácil a Carlos Costa. É igualmente uma tática de guerrilha a forma como boicotam a formação da administração do banco central, pedindo mulheres quando lhe apresentam homens, exigindo economistas quando na lista estão juristas, mostrando que o pequeno poder sabe condicionar uma independência que, aos olhos do poder soberano que lhes foi dado pelo povo, é manifestamente exagerada.

A impossibilidade de defesa eficaz

O mandato de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal está a ser mais escrutinado do que os mandatos todos juntos dos governadores anteriores e o que vamos sabendo não pode deixar-nos satisfeitos. No desastre que foi o sistema financeiro nesta década, o bolso dos contribuintes é um poço sem fundo e o regulador chega sempre atrasado.

O excelente trabalho jornalístico de Pedro Coelho na SIC deixa Carlos Costa em muito maus lençóis. O governador talvez soubesse demais para ter feito tão pouco, há pelo menos muito mais explicações para dar aos portugueses. Lesados fomos todos, os que compraram gato por lebre com a "ASAE" financeira a ver o bicho sair do gatil; os banqueiros que avisaram o regulador de que o cão estava a ser pago com o pelo do cão e os contribuintes convidados para um almoço grátis mas que ainda não deixaram de pagar. Perante o que vimos e ouvimos podemos ficar com a sensação de que só há falha grave se um governador for apanhado a levar para casa um camião carregado de barras de ouro retiradas da caixa-forte.

A complexidade do sistema financeiro ajudará a explicar muitas das incongruências que a reportagem da SIC revelou, as regras e o código de silêncio impostos ao regulador ajudarão igualmente a explicar por que razão não nos disse Carlos Costa da missa a metade. A resposta que o Banco de Portugal deu à pergunta de Pedro Coelho sobre o facto de não ter reagido prontamente perante os avisos que chegavam do Dubai é esclarecedora sobre a forma como funciona o sistema: cada um trata do seu quintal. Tanto esconjuramos as praças financeiras, os paraísos e as offshores e, afinal, parece que eles estavam mais preocupados com o nosso dinheiro do que nós próprios.

Tudo isto se passou num tempo em que, como lembrou Hélder Bataglia em processo judicial, "não se dizia não ao Dr. Ricardo Salgado". E, no entanto, o primeiro a fazê-lo foi precisamente o governador do Banco de Portugal. Terá sido tarde e a más horas, mas foi o primeiro a fazê-lo. É também uma das ironias desta história, os que hoje se mostram tão afoitos a pedir responsabilidades a Carlos Costa encontram mil desculpas para não discutir a sua própria responsabilidade. Do BES para os governos e dos governos para o BES houve sempre uma porta giratória, mas ninguém sabia. Se nos tentam convencer de que tudo foi feito por um só homem, prefiro acreditar na tese de Ricardo Salgado: "Foi obra do diabo!"

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