quinta-feira, 8 de junho de 2017

"O lobby da energia tem condicionado os governos" - ex-secretário de estado de Passos Coelho



Nove meses depois de ter tomado posse como secretário de Estado da Energia no governo de Pedro Passos Coelho, em 2011, Henrique Gomes bate com a porta no executivo. Pelo caminho fica a tentativa de impor uma contribuição extraordinária ao setor da energia, bem como a revisão dos contratos que garantem uma remuneração fixa às elétricas - o caso dos agora famosos CMEC, os Custos de Manutenção para o Equilíbrio Contratual. Nesta entrevista Henrique Gomes fala sobre a sua passagem pelo governo, como Vítor Gaspar lhe travou o passo quando argumentou que o corte nas rendas excessivas no setor da energia era uma forma de aliviar a economia e os portugueses. E como um relatório que chegou numa quinta-feira ao ministério da Economia e seguiu na manhã seguinte para o gabinete do primeiro-ministro, à hora de almoço já era do conhecimento da EDP. Apesar do desfecho diz-se "grato" pela experiência governativa. Mas pelo que não foi possível fazer "não ficaria lá mais tempo nenhum".

É sabido que defende que se devia ter ido mais longe no corte das rendas da energia. Na sua perspetiva até onde é que se pode, ou deve, ir?

Deixe-me começar por um enquadramento. Estamos neste momento já na terceira diretiva europeia para a energia, que está a tentar resolver todas as preocupações do que será todo o sistema elétrico baseado em energias renováveis. Isso acarreta alterações significativas na gestão dos próprios mercados e uma atuação de toda a produção que tem de ser concorrente no mercado, sem outros apoios. Portanto, tudo o que seja subsídios tem de ser eliminado o mais depressa possível, já devia ter sido eliminado. É assim com as renováveis. Na produção em regime ordinário os apoios deviam ter acabado com a primeira diretiva, que obrigou as hídricas e as centrais térmicas a ir ao mercado. Claro que tem que haver uma fase de transição, os espanhóis também a fizeram. Mas quando chegaram, salvo erro aos 3000 milhões de euros de subsídios à produção, fecharam a torneira, só ficaram uns apoios muito pontuais. Os espanhóis desde 2007 que não têm esses apoios.

Porque é que isso não foi feito em Portugal?

Nós atrasámo-nos um pouco, por um lado. E por outro arranjámos os CMEC [Custos de Manutenção para o Equilíbrio Contratual], que também estão a acabar, estão agora a começar a acabar. E este é o ano da revisibilidade desses contratos.

Considera que o setor elétrico em Portugal tem sido protegido, tem sido sobre remunerado com estes vários apoios?

Com certeza que é sobre remunerado. Basta ver a decomposição dos custos para a formação dos preços. Este ano esses custos representam cerca de 1900 milhões de euros. Para o próprio CMEC, este ano, estavam previstos - é uma previsão - 300 milhões. Numa coisa que deveria ser um apoio mínimo para compensar a passagem para mercado. Estes apoios deviam ter sido muito mais reduzidos e foram mal negociados.

A investigação que está em curso faz supor que podem ter sido outra coisa...[Foram já constituídos sete arguidos por suspeitas de corrupção, ativa e passiva, e participação económica em negócio, na sequência da investigação às rendas pagas pelo Estado à EDP].

Não sei qual o âmbito da investigação e não vou falar sobre ela.

Considera possível uma decisão unilateral do Estado em relação a estes contratos?

É muito difícil. E repare que, quando estive no governo, a minha primeira abordagem não foi essa. Foi criar uma contribuição ao setor elétrico, ao sistema elétrico nacional, aos produtores. O resultado dessa contribuição iria para um fundo de equilíbrio do sistema elétrico, fundo esse que seria alimentados pelos consumidores, pelo Estado e pelos coprodutores, que pagariam essa contribuição na medida das potências instaladas - todos aqueles que não tivessem ido a mercado. A contribuição era temporária e era universal. Tinha uma lógica de aplicação, é uma medida na órbita da discricionariedade do Estado e era constitucional. E tinha um enquadramento, relativamente à troika, que era favorável. Não se fez isso...

E porque é que não se fez?

Teve-se medo de perturbar a privatização [da EDP]. Não se fez uma medida estrutural, importantíssima, que resolveria o equilíbrio do sistema elétrico por, quase, um prato de lentilhas. A esse propósito , aconselho as pessoas a lerem o relatório da auditoria do Tribunal de Contas à privatização das empresas do setor energético. Estão lá as conclusões. O produto da privatização foi para abater à dívida e vê-se qual foi o resultado desse abatimento. Foi um resultado modesto.

O ex-ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira - que era o titular da pasta quando foi secretário de Estado - disse ontem ao jornal Público que o lobby da energia teve "uma influência nefasta no país". Concorda com esta afirmação?

Concordo. O lobby da energia defende os seus direitos e os seus interesses, daí não vem mal ao mundo. Mas o lobby da energia tem condicionado os governos. E isso acho mal, é um erro.

O lobby da energia condiciona o poder político?

O erro não é que as empresas defendam os seus interesses, é que o Estado não defenda os seus. Chamo a atenção para qual é o poder económico de que estamos a falar. Estamos a falar de três empresas, um pequeno grupo - EDP, EDP Renováveis, GALP e REN, que é pequenina no meio disto tudo. Estas empresas, em conjunto, representam 42, 43% de todo o PSI20. Este valor concentrado em três empresas... está a ver o poder que pode ter.

Estes lobbys tiveram alguma coisa a ver com a sua saída do governo?

Sim, são públicas algumas histórias, que eu aliás só vim a saber mais tarde.

E não sentiu apoio político nessa sua batalha pela diminuição das rendas da energia?

Não muito. Não levo isso a mal essencialmente por dois motivos. Primeiro, a grande preocupação nessa altura era a dívida. É uma inconfidência, mas lembro-me, numa das reuniões que tive logo no início com a secretária de Estado das Finanças da altura, Maria Luís Albuquerque, para explicar aquilo que pensava... Estávamos reunidos, ela é chamada, interrompe a reunião. Reaparece meia hora depois, estava completamente lívida e o comentário que fez foi : "Desculpe, temos que interromper a reunião. O país não tem dinheiro para nada. Estamos na bancarrota".

Mas é chamada por quem? Pelo ministro? [À data, o titular das Finanças era Vítor Gaspar].

Não sei. Sei que vinha lívida, apavorada. A grande preocupação era essa, era a dívida. E foi a privatização [da EDP]. No caso da energia, a preocupação era fazer dinheiro de qualquer maneira, por pouco que fosse. Não se soube pesar nem o valor de uma reforma da energia - do lado das Finanças não havia sensibilidade para isso. E quem assessorava o primeiro-ministro e as Finanças também terá tido alguma influência.

Chegou a pedir um estudo à Universidade de Cambridge, que acabou na gaveta e nunca foi usado...

Eu pedi esse estudo na sequência do relatório da segunda revisão do memorando de entendimento. O governo compromete-se então numa medida nova, uma medida de benchmarking - medidas de benchmarking eram aquelas que, na revisão seguinte, não podiam falhar, sob pena de de falhar tudo. Havia muitas medidas, que se iam fazendo, e havia as de benchmarking, que eram para cumprir. E a medida nova era o governo comprometer-se a determinar todas as rendas excessivas - é a primeira vez que aparece o termo rendas excessivas - de todas as naturezas, na produção de energia. E a entregar esse relatório até 31 de janeiro. Estávamos em dezembro de 2011, tive que montar uma equipa, e uma das coisas que era necessário era saber quais as remunerações de referência, nos mercados e em toda a Europa. Nós não tínhamos meios para fazer isso de uma forma competente, andámos à procura, a equipa da universidade de Cambridge tem nome, é uma equipa boa. O que essa equipa fez foi um levantamento do que eram as rentabilidades de referência, ano a ano, para as diversas formas de produção [de energia]. Sobre este relatório fizeram-se então as contas. Foi o tal trabalho que depois foi desconsiderado. Foi um trabalho interessante, foi entregue ao ministro Álvaro [Santos Pereira] numa quinta-feira ao fim do dia, em papel, o sr. ministro leu durante a noite, falou connosco de manhã, fizemos os ajustes que ele achou por necessários e mandou entregar ao sr. primeiro-ministro ao fim da manhã. À hora de almoço, estava a almoçar com a minha equipa, começámos a receber chamadas da EDP a perguntar que relatório era aquele. Passados uns dias, o relatório era desvalorizado porque tinha erros e porque não era por ser em inglês que seria bom . Ok, percebe-se a desvalorização, não se percebe é porque do nosso lado, do lado do governo - onde também se repetiu esse discurso de que o relatório tinha erros - não se tivesse indicado e discutido esses erros. Eu disponibilizei-me a ajustar o relatório, deveria ser do interesse de todas as partes, era um relatório de referência para podermos negociar a seguir.

O processo de ajustamento implicou medidas muito complicadas. Esta exigência da troika sobre as rendas excessivas, em particular, não foi cumprida, pelo menos na medida em que a troika pretendia. Porquê? O que é que explica isto?

Explica-se pela grande sensibilidade relativamente à preocupação financeira, de equilíbrio e de resposta imediata, porque estávamos de facto em bancarrota. Explica-se pelos conselhos de que o sr. primeiro-ministro e a equipa das Finanças se rodearam quanto a este setor. Numa reunião, uma reunião longa, cheguei a dizer "tenho um argumento político: é das poucas medidas que o governo conseguirá apresentar, nos próximos tempos, para aliviar a nossa economia e a população". A resposta do ministro [Vítor] Gaspar foi "então se o argumento é político, a reunião acabou". Também não percebo. Nunca percebi.

Cerca de um ano depois da sua saída do governo, o ministro Álvaro Santos Pereira disse isto, em entrevista à TSF: "Quando o meu anterior secretário de estado da energia, o engenheiro Henrique Gomes, saiu, eu tive um dos principais presidentes das produtoras de energia elétrica em Portugal a telefonar para várias pessoas, a celebrar com champanhe". Vê isto como isto um elogio?

Vejo, com certeza que sim.

Que imagem guarda hoje da sua passagem - que foi fugaz, nove meses - pelo governo?

Estou muito grato por ter tido essa oportunidade, estou grato ao primeiro-ministro [Pedro Passos Coelho], por quem tenho estima. Tive ao meu alcance a possibilidade de fazer coisas interessantes. Outras não foi possível, eu não ficaria lá mais tempo nenhum.

Susete Francisco | Diário de Notícias

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