sexta-feira, 15 de setembro de 2017

TIROS NA DEMOCRACIA



Manuel Carvalho da Silva | Jornal de Notícias | opinião

No último ano, assistimos a um certo enfoque mediático e político no tema do futuro do trabalho, sem dúvida de crucial importância para a democracia. Embora a OIT tenha uma agenda com interesse sobre o tema, a discussão foi introduzida carregada de enviesamentos, fruto do crescente desequilíbrio nas relações de poder entre o trabalho e o capital, provocado por fatores diversos, que vão desde a financeirização da economia, à progressiva organização subversiva de estruturas empresariais ou às alterações regressivas na legislação do trabalho em muitos países, como foi o caso de Portugal. Mas, na determinação do futuro do trabalho, as questões políticas podem vir a mostrar-se mais determinantes do que as tecnológicas, hoje tão em voga graças aos impactos da robotização e da inteligência artificial, quer no plano externo quer no nacional.

Em França, país de importância histórica na conquista de direitos individuais e coletivos no trabalho, Macron, enquanto encena aparentes ideias inovadoras para o projeto europeu, desencadeia uma ofensiva antilaboral sem precedentes, apoiado pelos poderes dominantes da União Europeia (UE). Draghi expressou, esta semana, a expectativa de tais reformas "eliminarem o dualismo no mercado de trabalho", o que pelas experiências conhecidas significa generalizar a precarização e acentuar a desproteção dos trabalhadores. Muito do futuro do trabalho no continente europeu joga-se em França.

As "ordennances" de Macron - decretos previstos constitucionalmente, mas que raramente são utilizados por permitirem mudanças profundas sem debate e voto parlamentar - pretendem introduzir a negociação na empresa "à la carte", servindo o interesse imediato dos patrões e possibilitando derrogar direitos consagrados ao nível da negociação coletiva setorial e até ao nível nacional, eliminar praticamente a negociação coletiva nas pequenas e médias empresas, estoirar a autonomia coletiva dos trabalhadores e facilitar despedimentos introduzindo mecanismos de proteção das multinacionais.

A agenda de Macron já está em Portugal há muito tempo, hoje com novos fôlegos. A propósito do processo de negociação e da greve na Autoeuropa, o Fórum para a Competitividade, de Ferraz da Costa - homem que sem rodeios diz: "tenho pena que a troika tenha ido embora" -, veio a terreiro reclamando ser preciso "colocar na ordem do dia a necessidade de rever a lei da greve", curiosamente quando aquela greve foi decidida num processo exemplar de participação dos trabalhadores na sua convocação e realização, como passo necessário para dinamizar e valorizar a negociação. Este Fórum, que sempre teve boa dose de ideias bafientas, mais adequadas ao século XIX do que ao século XXI, e no qual têm destaque empresários que jamais aceitaram como prática nas suas empresas o "modelo de relações industriais na Autoeuropa", vêm agora hipocritamente defendê-lo. Anseiam ver ali eliminados direitos fundamentais dos trabalhadores, abrindo caminho a mais precariedade e à redução das retribuições no trabalho em geral.

Ao mesmo tempo, há toda uma campanha da direita mais empedernida, gritando "aqui-d"el-rei" que está aí uma revolução em curso; dizem que "vem aí o comunismo". E porquê?

Porque na sociedade portuguesa se deteta uma consciencialização crescente de que há contradições no nosso processo de desenvolvimento a precisarem de ser resolvidas: se o desemprego diminui, o emprego aumenta mas os salários estagnam, as desigualdades e a pobreza persistem e a produtividade não cresce, a cartilha ideológica hegemónica que tem orientado as políticas não serve e é preciso melhor valorização do trabalho. Essa direita retrógrada e o centrão de interesses querem aproveitar o ar bafiento que vem de França e, por isso, encenam o medo e disparam contra qualquer esboço de políticas progressistas.

Ao invés, impõe-se o aprofundamento da consciencialização das pessoas sobre as injustiças, o debate aberto sobre as opções a seguir para a modernização sustentada da economia, o empenho do poder legislativo e em particular do Governo, na implementação de novas políticas que resolvam aquelas contradições a favor do desenvolvimento harmonioso da sociedade.

* Investigador e professor universitário

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