domingo, 10 de junho de 2018

A pressão para privatizar bancos


Prabhat Patnaik [*]

Desde o primeiro instante, sempre houve uma exigência para desfazer a nacionalização da banca na Índia. Esta exigência, naturalmente, ganhou impulso com a adopção das políticas neoliberais. Para o capital financeiro transnacional era completamente inaceitável que o grosso do sector bancário num país como a Índia permanecesse sob propriedade pública. Consequentemente, "amigos" da Wall Street que trabalhavam na administração dos EUA, como Tim Geithner e Larry Summers, visitaram a Índia e exigiram ao nosso governo que, mesmo se não pudesse privatizar todo o sector bancário, pelo menos enviasse um "sinal" privatizando o Banco do Estado da Índia.

O governo indiano no entanto objectou porque temia uma reacção de ira popular. Mais recentemente, contudo, com o aumento de activos não rentáveis (non performing assets, NPA) de bancos públicos, tem havido novas pressões pela privatização da banca, com um antigo vice-presidente do Niti Aayog pedindo mesmo a todos os partidos políticos que a inscrevessem na sua agenda para as eleições de 2019.

Infelizmente para estes advogados da privatização, a vida real revelou a vacuidade da sua argumentação – mesmo com base nas suas próprias premissas – quase imediatamente depois de eles a avançarem. Assim, o absurdo da pressão de Summers-Geithner em favor da privatização foi demonstrado pela crise financeira de 2008 nos EUA. Esta crise, embora engolfasse grande parte do mundo capitalista, deixou o sistema bancário indiano – excepto o banco ICICI, do sector privado – virtualmente intacto, uma vez que o sector dos bancos públicos, motivados por um diferente conjunto de objectivos, quase não possuía activos estrangeiros, muito menos activos "tóxicos". Da mesma forma, o recente argumento a favor da privatização dizendo que a vigilância de accionistas privados asseguraria melhor administração de bancos e não permitiria a espécie de acumulação de NPA ocorrido nos bancos do sector público, mostrou-se vazia pelo que aconteceu ao banco ICICI. A sua executiva chefe foi acusada de "compadrio" ao imobilizar um grande empréstimo para o grupo Videocon o qual ajudou os interesses de negócios do seu marido. Ironicamente, os accionistas supostamente "vigilantes" do banco ICICI nem mesmo lhe pediram para ir de férias enquanto as acusações contra ela estavam a ser investigadas. (Informações iniciais de que haviam feito isso foram negadas posteriormente).

Toda esta pressão, embora tenha falhado em desfazer a nacionalização, no entanto teve êxito em forçar uma privatização rastejante dos bancos nacionalizados. Isto tem sido efectuado com base num argumento completamente espúrio, abaixo descrito.

O capital de base dos bancos do sector público tem de ser fortalecido para satisfazer as "normas" Basileia III. Mas uma vez que o governo não tem recursos orçamentais adequados para fortalecer o seu capital de base, e não deveria utilizar recursos orçamentais escassos para esta finalidade mesmo se o tivesse, ele deveria obter capital próprio do sector privado para assim fazer. A fatia accionária do sector público consequentemente tem vindo a cair drasticamente dos seus 100 por cento originais.

Este argumento a favor da tomada de capital próprio privado é completamente espúrio por várias razões: primeiro, o fortalecimento do capital base pode ser exigido no caso de bancos privados, mas dificilmente no caso de bancos do sector público, uma vez que toda a gente tem certeza de que o governo sempre viria em socorro dos bancos se eles enfrentassem uma crise. Vale a pena notar que mesmo recentemente, na esteira do escândalo do Punjab National Bank, em que Nirav Modi fugiu com 130 mil milhões de rupias dos recursos do banco, não houve pânico com retiradas de depósitos do mesmo: os depositantes estavam confiantes em que os seus depósitos estavam seguros no banco possuído pelo governo. Portanto, a normas Basileia III não são de todo relevantes para bancos do sector público.

Segundo, mesmo se o capital de base destes bancos tivesse de ser fortalecido, os fundos não tinham de vir do próprio orçamento. Uma vez que na rotina normal bancos não chegam a ser solicitados a recorrerem ao seu capital de base, e apenas o possuem para um "dia chuvoso" que nunca chega, se o governo pedisse emprestado a montante requerido para capitalizar os seus bancos a partir do Banco de Reserva (RBI), então aquele montante simplesmente permaneceria do RBI. Seria em suma uma pura transacção contabilística do RBI, a qual, muito emboraaparecesse como um défice orçamental no orçamento do governo, seria apenas um défice nocional e teria efeitos adversos zero sobre a economia. Portanto, mais uma vez, não há razão real para ir ao mercado de capitais a fim de fortalecer o capital base de bancos do sector público.

Contudo, estes argumentos têm sido utilizados para efectuar uma privatização rastejante. Mas a privatização rastejante não é suficientemente boa para o capital financeiro internacional. Ele quer a privatização total, não apenas uma que abrasse um vasto montante de recursos financeiros para o seu controle, mas também porque isso sublinharia o ponto ideológico, tão crucial para o modus operandi da finança, de que o interesse social seria melhor servido não pelo controle do Estado sobre a finança e sim pela concessão de liberdade plena à finança, ou, dito de modo diferente, pelo controle da finança sobre o Estado. E para esta finalidade, a crise NPA dos bancos do sector público está a ser utilizada ao máximo.

Mesmo que esta utilização seja marcada por argumentos absolutamente espúrios. Dois pontos em particular devem ser observados aqui. Primeiro, a razão mais importante para a crise NPA é o "saqueio corporativo" dos bancos do sector público, num contexto em que o governo tem aplicado pressão sobre estes bancos para a concessão de grandes empréstimos ao sector privado destinados a investimento em "infraestrutura".

A razão para o governo aplicar esta pressão é ela própria um argumento espúrio, o qual é como se segue. O governo não pode empreender o próprio investimento em infraestrutura porque isso incharia o défice orçamental. Portanto, este investimento tem de ser feito pelo sector privado e, para isto, o financiamento bancário é essencial. Agora, se o governo empreendesse este investimento então teria de tomar emprestado destes bancos (que é como o seu défice orçamental seria financiado). Portanto, este argumento equivale a dizer que se o governo tomasse emprestado dos bancos para investir em infraestrutura então isso seria mau para a economia, ao passo que se o sector privado toma emprestado dos bancos para investir em infraestrutura então isso seria bom para a economia, o que é uma proposição completamente absurda.

Mas, de qualquer modo, por causa deste argumento absurdo, o governo tem estado a pressionar bancos para emprestarem enormemente ao sector privado corporativo e várias destas corporações estão simplesmente a furtar este dinheiro no que deve ser uma nova forma de acumulação primitiva de capital. Do total de NPAs da ordem dos 8 a 9 milhões de milhões de rupias, acredita-se que tomadores corporativos representam cerca de 75 por cento do total. E 75 por cento destes empréstimos corporativos, por sua vez, acredita-se constituírem puro roubo, isto é, "saqueio corporativo" puro e simples, o qual portanto monta a 56,25 do total de NPAs.

É um absoluto desaforo da parte dos advogados da privatização exigirem que aqueles executaram este saqueio de fundos bancários fossem premiados pelo proprietário dos próprios bancos que eles saquearam, com o argumento de que os bancos estão num estado lamentável (devido a este saqueio). O que é necessário, ao contrário, não é a privatização de bancos, mas a sua continuação como entidades possuídas pelo Estado, argumento que permanece tão válido hoje como o foi em 1969 quando os bancos foram nacionalizados, juntamente com medidas punitivas contra aqueles que executaram este saqueio.

Incrivelmente, além de não tomar medidas punitivas, o governo nem sequer revelou os nomes dos grandes incumpridores de empréstimos de bancos do sector público [NR] . Ele não revelou estes nomes mesmo depois de os empréstimos destes grandes incumpridores terem sido cancelados (write off), o que significa que os mesmos ficaram livres para contrair empréstimos de outros bancos, mesmo quando se declaram impotentes quanto ao reembolso e, dessa forma, obtêm prorrogações de alguns bancos.

Na verdade todas as medidas governamentais nesta esfera basearam-se em considerar a firma como o ponto de referência. Mas em todos os casos de incumprimento deliberado, isto é, em que é estabelecido através de investigação que o incumprimento é um caso de "saqueio corporativo", a propriedade dos promotores deve ser preservada, incluindo o que eles possuem através de outras firmas no seu império. Este expediente muito simples seria um grande dissuasor contra o saqueio corporativo e também recuperaria um montante substancial dos empréstimos incumpridos.

Mas, pode-se perguntar, já teremos passado o ponto de não retorno no que se refere à poupança dos bancos do sector público? A resposta simples é "não". Não só a crise do NPA é um resultado em grande medida do "saqueio corporativo" como a própria crise está a ser exagerada a fim de pressionar a agenda da privatização.

Por que digo isto? Quando Narendra Modi empreendeu sua absurda medida da desmonetização, os bancos subitamente ficaram repletos de fundos, uma vez que o povo apressou-se a depositar seus haveres em dinheiro. Mas este enorme aumento nos recursos dos bancos não levou a qualquer crédito mais amplo. Ao invés disso, os bancos optaram por manter estes fundos em títulos governamentais, para o que tiveram de ser criados novos títulos do governo cujas receitas de vendas não podiam sequer serem gastas pelo governo (uma vez que isto teria aumentado o défice orçamental com grande aborrecimento do capital financeiro).

Assim, o que o exercício da desmonetização mostrou é que o desembolso de crédito na Índia não está constrangido pela oferta mas sim pela procura (no sentido de ser constrangido pela procura de crédito de tomadores que os bancos considerem como dignos de crédito). Portanto, a existência de NPAs não é um estrangulamento de crédito do lado da oferta, de onde se segue que se o governo realmente capitalizasse os bancos do sector público através de tomadas de empréstimos do RBI, então o montante de tais empréstimos seria simplesmente mantido pelo próprio RBI (como capital dos bancos). Isto seria apenas uma transacção contabilística do RBI sem efeitos adversos sobre seja o que for da economia.

Segue-se portanto que mesmo se a injecção de capital fresco em bancos do sector público tivesse de ser feita devido aos seus grandes NPAs, ainda assim não há necessidade de confiar no capital do sector privado para uma tal injecção. A afirmação actual em contrário é destinada meramente a ludibriar o povo levando-o a acreditar que, devido aos NPAs, não há alternativa à privatização de bancos do sector público. Este bluff tem de ser chamado pelo seu nome. 

10/Junho/2018

[NR] Também em Portugal o governo PS recusa-se a revelar a lista completa dos grandes devedores faltosos que provocaram graves prejuízos ao último banco público que resta no país, a CGD. 

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia 

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2018/0610_pd/push-privatising-banks . Tradução de JF. 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

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