sábado, 21 de julho de 2018

Macau | “O Governo interferiu na suspensão do deputado da assembleia”


O advogado de Sulu Sou não tem dúvidas de que o Executivo interferiu no caso que envolveu o deputado. Jorge Menezes elogia a juíza mas defende que o processo em que o ativista foi constituído arguido foi uma derrota do Estado de Direito.

Onde pôde, o Governo interferiu. A suspensão de Sulu Sou como deputado para ser julgado pelo crime de desobediência qualificada é um dos exemplos que Jorge Menezes dá para ilustrar a pressão do Executivo. O advogado assume ter sentido pressão durante o processo contra o ativista democrata o qual – não tem dúvidas – foi “político”. Os avisos que recebeu, vinca, só revelam como Macau está doente. 

- Como chega a advogado de Sulu Sou? 

Jorge Menezes - Alguém lhe terá dado o meu número como advogado que aceitaria o caso.

- Teve apoio de outros advogados? 

J.M. - Foi tudo feito só por mim e, quando o Pedro Leal se juntou, passou a ser feito pelos dois.

- A dificuldade que Sulu Sou e Scott Chiang tiveram em encontrar advogado revela que há medo de defender certos casos?

J.M. - Revela a pressão em que Macau está no que diz respeito aos direitos fundamentais. É absolutamente lamentável que qualquer advogado que estivesse em posição de poder representar Sulu Sou não o tenha feito por medo. 

- Sentiu que tinham de ser especialmente cuidadosos na defesa? 

J.M. - Foi um processo político que começou quando a polícia decide abrir um processo-crime contra eles quando noutros casos mais graves nunca o tinha feito. O comportamento do Ministério Público (MP) expressou também a dimensão política do processo. Nessa medida era um processo especial. Sabia que estávamos a lutar contra várias paredes. Não era um processo normal.

- Condicionou a vossa estratégia?

J.M. – Estávamos a defender um deputado e um ativista político que se têm comportado na vida segundo o princípio da verdade. Faz parte de ser advogado esticar a corda e ser parcial. Foi uma advocacia diferente. Estávamos conscientes que estávamos a representar pessoas com uma grande responsabilidade pública, que revelaram um certo tipo de postura pública que queriam manter no processo-crime. Dessa perspetiva, a nossa estratégia foi relativamente fácil. Limitou-se a dizermos a verdade. Demonstrar que, dizendo a verdade, deviam ser absolvidos. 

- Referiu que a postura do MP também mostrou que era um caso político. Pode explicar?

J.M. – O ter investigado este processo e movido acusação quando não o fez em processos similares. O facto de o secretário para a Segurança ter dito que nos processos que tinham uma conotação política se justificava investigar ainda mais, quando a lei das reuniões e manifestações existe para se proteger mais as manifestações políticas do que as outras. Não houve igualdade de tratamento. O MP ter pedido pena de prisão foi um ato político para criar as piores expectativas e depois se vir dizer, como aconteceu, que a condenação da pena de multa foi um exercício de independência judicial e de moderação, e que afinal o tribunal esteve bem. Prescindimos das nossas testemunhas porque sentimos que estava a haver uma perseguição. É um dever prestar testemunho mas sob liberdade, não sob ameaça. 

- Como interpreta a decisão do MP de não recorrer quando tinha pedido pena de prisão?

J.M. - Como aquilo foi um exercício especulativo para sair toda gente contente quando fossem condenados sem pena de prisão, naturalmente que não recorreram. Foi simplesmente mais uma confirmação de que não era para levar a sério.

- Como interpreta a decisão de Sulu Sou abdicar do recurso? 

J.M. – Também não queria ser condenado, ficar com registo criminal, pagar uma multa de 40 mil patacas. É verdade. Mas o grande dilema foi entre dois interesses públicos: o de se sentar na assembleia, representar os cidadãos e lutar pela transparência; e o de lutar por um direito fundamental que é o da manifestação, levando o processo até às últimas consequências. Qualquer decisão seria nobre.

- Porque é que Sulu só levaria o recurso até ao fim, se o MP recorresse?

J.M. - Se o MP tivesse interposto recurso, a nossa decisão era a de recorrer porque já não retirávamos qualquer vantagem de não o fazer. O processo-crime mantinha-se pendente. Teria de ser a assembleia a decidir se Sulu poderia voltar e sabe-se que os deputados diriam que não. Já não tiraríamos o efeito positivo de não recorrer, que era o Sulu voltar. Restava-nos lutar pela inocência deles e pela defesa de um direito fundamental. Já não havia dilema nenhum. Quero frisar que sobre o conteúdo dos processos pendentes não me manifesto. Não me vou pronunciar sobre o objeto dos recursos [de Scott Chiang  da condenação pelo crime de manifestação ilegal; e sobre se os tribunais de Macau têm competência para decidir se a suspensão do mandato de Sulu Sou violou a lei]. 

- Porque não optaram por pedir que a sentença não transitasse em julgado para que, tendo em conta que era um processo conjunto, Sulu também pudesse beneficiar da decisão?

J.M. - Porque não poderia voltar à assembleia. Pedimos ao tribunal que retirasse o recurso. A juíza esteve muito bem porque aceitou. É uma decisão inovatória. Não só esteve bem porque decidiu em 24 horas como esteve bem porque admitiu que a sentença transitasse em julgado contra um e prosseguisse contra outro.

- Acreditou realmente que havia chances de serem considerados inocentes?

J.M. – Acreditei.

- Sentiu que houve interferência de outros poderes?

J.M. - Senti que houve uma grande pressão dos poderes instituídos. Viu-se nas declarações de políticos, empresários, advogados. Dos poderes e do dinheiro, desse sol, irradiava uma tentativa de grande pressão sobre o MP e o tribunal. Revelou-se na dificuldade que tiveram em arranjar advogado. Quanto ao tribunal, não notei que tivesse agido deliberadamente por terem sido dadas instruções ou por sentir pressão. Agora todos somos pessoas e a pressão que se vai exercendo tem efeitos. Não acho que tenha havido desonestidade.

- Mas acha que teve efeitos?

J.M. – É muito difícil que a pressão política e social não tenha efeitos. É da natureza humana. Mas não senti que o tribunal tivesse agido em violação da separação de poderes.

- Como é que Sulu e Scott estavam acusados do crime de desobediência qualificada e acabam condenados pelo crime de manifestação  ilegal?

J.M. - Não quero falar demasiado do processo porque está pendente relativamente ao Scott Chiang. Para mim é um erro judiciário. Não é necessariamente um sinal de interferência política ou de violação da separação de poderes. Todo o julgamento foi sobre as ordens dos polícias porque era disto que estavam acusados. Chegamos ao fim e somos condenados por outros factos. Em bom rigor, não fez grande diferença ter estado lá porque estava a defender-me de maçãs e o julgamento foi sobre ameixas. 

- O caso Sulu Sou mostrou que há medo de uma geração mais interventiva?

J.M. – Há sinais de mudança em Macau. Para pior. Com a classe política e o Governo a exercerem maior repressão sobre direitos fundamentais que se manifesta na atividade da polícia e na elaboração da legislação. Por um lado, há um sinal crescente de diminuição dos direitos fundamentais. Por outro, parece haver uma geração jovem que preza tribunais independentes, a separação de poderes, aquilo que é chamado de Segundo Sistema. Tínhamos dois jovens exemplares, honestos, formados, dispostos a sacrificar os seus direitos em prol do bem social, tínhamos dois cidadãos que agiram contra uma medida do Chefe do Executivo que era errada. Todos sabíamos que estavam certos e a polícia, Ministério Público e assembleia estavam errados porque eles não são criminosos. Era um teste às instituições. Um teste que foi perdido. Foi a maior derrota do poder instituído e do Estado do Direito. 

- Acha que houve pressão de Pequim?

J.M. – Confesso que não sei que papel podem ter tido as agências do Governo central neste processo. De certeza que o acompanharam. Tenho uma opinião mas não é fundada. Há sinais contraditórios. O Governo de Macau interferiu, designadamente na suspensão do deputado da assembleia. Naquilo que estava ao seu alcance, o Governo interferiu comprometendo inclusivamente a autonomia da assembleia.

- A decisão da suspensão de Sulu Sou foi indicada pelo Governo de Macau?

J.M. - Não sei se foi indicada mas houve interferência e acho que houve pressão. Basta ver pelo comportamento dos deputados nomeados. 

- Há mais exemplos de interferência?

J.M. – Notei através de manifestações de pessoas próximas do Governo. 

- Por exemplo?

J.M. – O único momento em que houve apoio a uma causa que o Sulu Sou também se opunha foi contra a da proposta dos deputados Vong Hin Fai e Ko Hoi In. O disparate foi tão grande e revelava tanta ignorância jurídica e prepotência que houve um uníssino na sociedade civil. Leonel Alves foi dos primeiros, disse logo que aquilo não se aceitava porque violava regras da nossa forma de viver. Só o deputado Pereira Coutinho teve um comportamento exemplar. Ainda bem que há pelo menos um deputado que teve a coragem de estar do lado da razão, da minoria e em constante combate contra todos os seus pares e o Governo. Foi o único momento que sentimos que o poder abanou. Fora isso, os poderes económio e político estiveram sempre do lado oposto ao de Sulu Sou. Não é uma coincidência linda que os fortes e poderosos estejam todos contra um cidadão que é eleito para lutar contra a corrupção, a favor dos poderes democráticos, pelos valores de Estado de Direito? Não é uma coincidência que quem está contra são os que estão de bolsos cheios? Sulu Sou devia por isto no currículo.

- Já foi agredido por causa de casos que defendeu. Sentiu repercussões por ter assumido a defesa de Sulu?

J.M. - Se tivesse medo, teria abandonado Macau em 2013 quando fui agredido. Senti pressão indireta nos primeiros dias e em certos momentos em que o debate se elevou como o do processo contra a assembleia. Pressão de receber mensagens com avisos de que não era bom para a minha carreira, que estava a desafiar demasiado as pessoas, que eram muitas coisas ao mesmo tempo. Não acho que haja motivo para qualquer preocupação. Quem ficou incomodado não é pessoa que queira ter ao lado ou como cliente.

- Foi um caso especialmente desafiante?

J.M. - Foi um processo muito cansativo para estar à altura do desafio que isto colocava aos tribunais e à RAEM. Fi-lo também para me aproximar da grandeza de Sulu Sou e Scott Chiang. O que este processo teve de bom e que gostava que tivesse tido mais era o do património jurídico sobre Macau e sobre a separação de poderes.

Catarina Brites Soares, 20.07.2018 | em Plataforma

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