"Novela" em torno do
Fundo Soberano de Angola continua. Para jurista Rui Verde, José Filomeno dos
Santos e Jean-Claude Bastos de Morais continuarão a ser protegidos enquanto
"sistema jurídico-legal não for desmanchado".
A gestão do Fundo Soberano de
Angola (FSDEA) tinha sido entregue pelo antigo Presidente José Eduardo dos
Santos ao próprio filho José Filomeno dos Santos (Zénu). Entretanto, o Presidente
João Lourenço afastou José Filomeno dos Santos do cargo e a justiça
angolana tem estado a investigar a sua gestão, seguindo
o rasto do dinheiro. Dois dos 5 mil milhões de dólares já foram recuperados
pelos novos gestores do Fundo. Mas restam ainda 3 mil milhões no estrangeiro,
que o Governo angolano pretende recuperar.
Esta
semana soube-se que os 3 mil milhões de dólares que a Quantum Global
geria em representação do Fundo Soberano de Angola foram desbloqueados por
ordem da justiça britânica. A informação consta de um comunicado da
Quantum Global, no qual o fundador da empresa, o suíço-angolano Jean-Claude
Bastos de Morais, amigo pessoal de Zénu, e que está também a ser investigado
pela justiça angolana no âmbito deste processo, refere que o juiz de um
tribunal inglês retirou "a ordem de congelamento na sua totalidade" daqueles
investimentos do FSDEA.
Em entrevista à DW África, Rui
Verde, professor e especialista em política angolana, explica que o
"problema essencial" deste caso prende-se com o facto de existirem
contratos assinados pelo antigo Presidente de Angola que "legitimam a
entrega" destes montantes. Para este analista, "a justiça angolana
está a ser muito lenta", pois "não confronta ninguém com o vigor
legal".
DW África: Como interpreta a
recente notícia do descongelamento dos 3 mil milhões de dólares a favor da
Quantum Global?
Rui Verde (RV): Quer dizer o
seguinte: numa primeira fase, em abril deste ano, a justiça britânica tinha
congelado a pedido do Fundo Soberano de Angola, da nova direção nomeada por
João Lourenço, esses 3 mil milhões, debaixo da gestão do Jean- Claude Bastos de
Morais e a justiça britânica tinha feito esse congelamento. Depois, o
Jean-Claude e a Quantum reagiram e fizeram o que se pode chamar de recurso a
essa primeira decisão, e então veio um tribunal inglês descongelar o que tinha
sido congelado em abril [de 2018].
DW África: Quer isso dizer que
uma grande parte do Fundo Soberano de Angola está ainda e continuará em
Inglaterra?
RV: Aparentemente havia 5
mil milhões, o Governo angolano diz que já recuperou 2 mil milhões e 3 mil
milhões estão com Jean-Claude Bastos de Morais. Se estão em Inglaterra ou
noutras jurisdições não é claro, porque também corre um processo semelhante nas
ilhas Maurícias. O que a jurisdição inglesa permite é emitir ordens mundiais de
congelamento, digamos assim, e é por isso que ela é utilizada com frequência.
Mas em resumo, 3 mil milhões de dólares do Fundo Soberano voltam a estar nas
mãos do Jean-Claude Bastos de Morais.
DW África: Como é possível tanto
dinheiro ser entregue ao filho do então ex-Presidente, ou neste caso, a um
colega de juventude, ao suíço-angolano Jean-Claude Bastos de Morais?
RV: Este é o problema
essencial e é o que esta decisão inglesa agora reflete. Os contratos que
legitimam essa entrega existem, ou seja, não foi uma entrega por baixo da mesa,
e esse é o grande problema, porque quem é que deu origem e autorização a esses
contratos? Foi o antigo Presidente José Eduardo dos Santos. Portanto, agora o
que temos aqui é um novelo formal que o antigo Presidente criou e que o novo
Presidente João Lourenço terá dificuldade em desfazer nos tribunais.
DW África: A justiça angolana
estará preparada para desfazer este imbróglio, para investigar e recuperar o
dinheiro que é do povo angolano?
RV: Não está e esse é um dos
grandes problemas. Quando há estes grandes casos noutros países, como nos
Estados Unidos, ou em Portugal, a justiça atua segundo aquilo que se pode
chamar um modelo "big bang”, vai utilizando a lei, mas vai diretamente à
pessoa, e ao mesmo tempo gera uma série de mecanismos. Geralmente aplica
prisão preventiva, congela bens ou faz uma acusação, portanto, a pessoa é
imediatamente confrontada com o peso do Estado. O que se está a passar em
Angola é que há muitos discursos, há muitas notícias nos jornais, mas a justiça
angolana está a ser muito lenta, não confronta ninguém com o vigor legal. Ou
não quer ou não está preparada para, de facto, ir ao cerne das questões.
DW África: Correm notícias de que
José Filomeno dos Santos, o antigo presidente do conselho da administração do
Fundo Soberano, e também Jean- Claude Bastos de Morais, estão a ser
investigados em Angola. O que é que isso significa?
RV: O que a
Procuradoria-Geral da República angolana anunciou é que corre uma investigação
contra eles em Angola, mas eles estão em liberdade. Foi-lhes tirado o
passaporte, portanto não podem sair de Angola.
DW África: E esses indivíduos
estão a ser protegidos por alguma parte do aparelho de Estado de Angola?
RV: Eles estão a ser
protegidos por toda a legislação e por todos os contratos que o pai, o
Presidente José Eduardo dos Santos, fez. Essa é a grande proteção deles e
enquanto esse sistema jurídico-legal não for desmanchado, eles terão sempre uma
proteção. Se essa proteção agora se está a estender também a forças já
descontentes no atual regime, é possível. Neste momento, assiste-se obviamente
a um confronto, por um lado entre João Lourenço, e por outro lado entre os
filhos do Presidente, quer seja a Isabel dos Santos, quer seja o José Filomeno
dos Santos. Isso é claro, mas na realidade quem está no fim da linha é o antigo
Presidente, foi ele que assinou os papéis.
DW África: José Eduardo dos
Santos ainda é Presidente do partido no poder em Angola, o MPLA, mas deixará de
sê-lo no dia 8 de setembro, ao que tudo indica...
RV: Se chegamos a setembro
nesta situação, até pode eleger João Lourenço como presidente do MPLA, mas
obviamente é um presidente fragilizado.
António Cascais | Deutsche Welle
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