Quem é essa eminência parda de
Emmanuel Macron cujo nome, Alexandre Benalla, a França memorizou e repete? O
mistério adensa-se mas, por entre o nevoeiro de mistérios, uma tese começa a
fazer sentido.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
O mistério adensa-se em França:
quem é, afinal, Alexandre Benalla?
Espanca participantes na
manifestação do 1.º de Maio usando braçadeira e comunicações da polícia, mas
não é agente policial…
Escolta o Presidente da República
em ocasiões públicas e privadas, tem as chaves da sua residência, mas não
integra o corpo de seguranças de Emmanuel Macron…
Tem arma distribuída e a
respectiva licença, mas não pertence a qualquer corpo policial, securitário ou
militar…
Tem passaporte diplomático, mas
não é diplomata…
Tem livre-trânsito na Assembleia
Nacional, mas não é deputado, membro do governo, nem quadro das polícias e das
Forças Armadas…
Tem acesso a matérias reservadas
na área de Defesa, mas não lhe estão atribuídas funções no ministério do
sector, nem integra a esfera militar…
Quem é então essa eminência parda
cujo nome, Alexandre Benalla, toda a França memorizou e repete tendo em conta
tão distinta como eficaz polivalência? O mistério adensa-se.
Para proteger Benalla das provas
que testemunham a sua participação directa nos espancamentos do dia 1.º de Maio
em Paris, e também o seu envolvimento na definição das estratégias de caça aos
manifestantes, foram roubados os vídeos incriminatórios que estavam numa
Prefeitura de Polícia da capital francesa. Imagens essas que seguiram o caminho
do Palácio do Eliseu, a residência oficial do Presidente da República.
Para polir o comportamento
trauliteiro do falso-polícia Alexandre Benalla, altos quadros do La
République en Marche, o partido do presidente Emmanuel Macron, desdobraram-se
no Twitter para fazer passar a mensagem de que os manifestantes espancados não
eram, para que conste, «nenhuns santos».
Apesar de diligentes, estes
esforços de roubo e mistificação não ajudam a perceber que tipo de funções tem
Benalla para, segundo os sindicatos franceses das polícias, poder «aterrorizar
polícias» e «insultar» altos quadros das corporações cívicas e de segurança; ou
a que título participa Benalla em reuniões no Ministério do Interior,
acompanhado por desconhecidos, sem pertencer a este departamento nem para isso
ser convidado.
Chefe-adjunto de gabinete do
Presidente
É verdade que, depois de o diário Le
Monde ter divulgado alguns destes factos invulgares e de as imagens de
vídeo do falso-polícia-espancador-de manifestantes terem caído na internet, a
Presidência da República sentiu necessidade de dizer qualquer coisa.
Explicou então que Alexandre
Benalla, o homem que escolta o presidente, é «director-adjunto do Gabinete da
Presidência» – informação que manteve o assunto num limbo de dúvida, porque
nada lhe foi acrescentado quanto à polivalência de funções e amplitude das
mordomias do indivíduo ao nível do aparelho de Estado.
Perante a clareza dos vídeos dos
espancamentos e o negrume do episódio de roubo das imagens do interior de uma
Prefeitura de Polícia, o Presidente da República, Emmanuel Macron, mostrou-se
até compungido quando achou chegado o momento de assumir uma estratégia
diferente: a de que fora «traído» por Benalla.
Por isso, veloz como um raio,
passou à fase de acção punitiva: o falso-polícia foi rebaixado para um «posto
de menor relevância» – não revelou qual – e com salário suspenso por 15 dias.
Um castigo exemplar.
Porém, hélas, o destino
gerado nos meandros administrativos também consegue ser «traiçoeiro»: devido a
«razões técnicas», não foi possível concretizar a suspensão salarial; e, por
causa da epidémica «falta de pessoal», foi imperativo continuar a recorrer a
Alexandre Benalla para escoltar o presidente em ocasiões públicas e privadas. E
assim continua tudo como se nada tivesse acontecido, de 1 de Maio para cá.
Não é bem assim, sejamos
correctos. A Justiça ordenou um inquérito; a Inspecção-Geral de Polícia
encomendou outro; e o Parlamento, dominado em massa pela clientela en
marche, instaurou ainda outro. Estão sob investigação não apenas Alexandre
Benalla, mas também alguns dos seus colaboradores directos, tanto polícias como
destacados quadros dirigentes do partido presidencial.
Foi então que Emmanuel Macron, em
acto de mea culpa cumprido numa reunião íntima com os súbditos
partidários, assumiu a «responsabilidade única» por tudo o que está a
acontecer.
Um elevado acto de coragem ou um
comportamento próprio de monarca absoluto numa república em dissolução
acelerada?
A verdade é que, ao assumir todas
as culpas pelos feitos de Benalla e respectivo gangue, o chefe de Estado está a
constituir-se como único alvo judicial e político, sabendo de antemão que, por
esse caminho, o assunto irá morrer; tão certo como ter Alexandre Benalla
continuado a escoltar o presidente mesmo depois de punido – sem o ser.
É que em França, tal como noutras
paragens, a Justiça terá muitas dificuldades em manter-se cega neste caso, tal
é a envergadura da barreira de poderes e interesses que tem pela frente. E a
política… Bem, a política está a funcionar bem dentro dos padrões do
globalismo, como demonstram as evidências do affaire Benalla: tanto mais
alto é o nível quanto mais rasteiros forem os processos.
O presidente-sol
Por entre o nevoeiro de mistérios
formado por esta acumulação de peripécias começa a fazer sentido uma tese que
corre há algumas semanas nos meios políticos franceses menos macronizados. Em
torno da indefinição, por certo mantida deliberadamente, quanto às funções de
Benalla e respectivos acólitos cleptómanos e caceteiros, parecem desenhar-se os
contornos de um serviço secreto exclusivamente presidencial à imagem do US
Secret Service, a guarda pretoriana do presidente dos Estados Unidos, ora
reforçada com a tarefa do «combate ao terrorismo». Isto é, Macron está a criar
um corpo policial secreto que apenas responderá perante ele, eximindo-se, desde
modo, às organizações do Estado que têm como tarefa a segurança presidencial.
No fundo, está em gestação uma irmandade macroniana com agenda, funções e
tarefas próprias – e discricionárias - ao serviço da obstinada concentração de
poderes e interesses na figura que os manipuladores neoliberais e
transnacionais instalaram no Eliseu.
Dos objectivos e tipo de
comportamento futuro dessa célula vamos tendo amostras pela maneira como Macron
e o seu fiel Benalla vão fazendo ensaios e tomando a mão. A moribunda V
República Francesa, afinal, está en marche para qualquer coisa não
muito distinta do orbanismo na Hungria e suas manifestações paralelas da
Ucrânia, Estónia e Letónia à Itália e Áustria, porque para o capitalismo
absoluto o melhor é o absolutismo político.
De Luís XIV a Macron só passaram,
afinal, quase 400 anos, se bem que sejam bem mais exigentes os desafios
colocados, nos tempos de hoje, ao presidente-rei, enquanto se vai comportando
como presidente-sol perante a bonomia complacente dos seus tutores.
Daí que a corte palaciana de
Macron seja, sobretudo, uma máfia operacional capaz de actuar como tropa de
choque ao serviço dos verdadeiros padrinhos, os interesses económicos e
financeiros sem fronteiras.
Nada disto, como se compreende, é
escrito em sentido figurado. Macron e a sua máfia encaram realmente o Estado
como coisa sua, o que se percebe consultando o programa sobre privatização da
Administração Pública anunciado pelo Palácio do Eliseu para aplicar até 2022 –
portanto rapidamente e em força.
Na foto: Após a eleição de Emmanuel Macron como Presidente da República, um mês depois o seu partido obteve a maioria absoluta dos deputados na Assembleia Nacional (2017). CréditosBertrand Guay / EPA
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