quarta-feira, 7 de novembro de 2018

São Tomé | O Pêndulo Imperfeito e o Caos


Adelino Cardoso Cassandra* | Téla Nón | opinião

Podemos considerar, de ponto de vista simbólico, as eleições legislativas que se realizaram no dia 7 de outubro, em S.Tomé e Príncipe, tendo em conta os acontecimentos políticos, anteriores e posteriores à realização das mesmas, como um autêntico plebiscito informal para a escolha de dois caminhos, totalmente opostos, que o pais deveria trilhar nos próximos tempos.

Por um lado, teríamos, caso o ADI regressasse ao poder, o caminho de consolidação do processo de asfixia da democracia e, por outro lado, caso a oposição ganhasse as referidas eleições percorreríamos um caminho alternativo oposto, ou seja, o de aprofundamento da democracia.

O conteúdo político, em termos de mensagem eleitoral e praxis, durante toda a campanha eleitoral, e posteriormente, tanto por parte do ADI como dos partidos da oposição, denunciavam este dualismo polarizador inultrapassável.

Não recordo de nenhum outro contexto eleitoral no país, mesmo em 1990 quando a constituição foi ratificada em referendo, em que os campos, poder e oposição, estiveram tão distantes, tendo como suporte reivindicativo a defesa da liberdade e da democracia como bandeira eleitoral.

É óbvio que isto também teve reflexos, como seria de esperar, na recomposição do nosso sistema político-partidário e em termos de mobilização eleitoral, como resposta ao propósito governamental do ADI de asfixia da nossa democracia, com o objetivo de travar esta deriva autoritária.

Formou-se uma coligação, pré-eleitoral, entre o PCD, a UDD e o MDFM que ganhou contornos mais abrangentes, pós-eleitoral, incluindo o MLSTP na sua composição.

Por outro lado, a mobilização eleitoral foi grande, contribuindo para baixar a abstenção para níveis históricos no país, mesmo num contexto de escassez, material e financeira, manifestada pelos partidos da oposição.

Isto quer dizer que, entre a continuação de uma deriva autoritária e asfixiante e o resgate e defesa do Estado Democrático de Direito, a maioria da população de S.Tomé e Príncipe escolheu a segunda alternativa e correu para as mesas de voto em salvação da democracia.

E isto foi tão evidente que, mesmo após as eleições, a população manteve-se vigilante, controlando todos os passos e procedimentos do atual Tribunal Constitucional do ADI, tendo em conta casos de recurso contencioso enviados para o referido tribunal, em contradição com acórdão anterior do mesmo tribunal, decorrente das deliberações da assembleia de apuramento eleitoral geral.

Podemos concluir, pelo menos duas coisas, tendo em conta os resultados destas eleições.

Em primeiro lugar que a defesa da liberdade e, consequentemente, da democracia, depende sempre das populações. As pessoas poderiam, sempre, preferir o caminho do ADI, de asfixia dos pilares da nossa democracia tendo em conta, até, os meios, materiais e financeiros, anormalmente exagerados, utilizados por este partido político nestas eleições em contraposição com a escassez de meios demonstrada pelos partidos da oposição. O povo escolheu a democracia em detrimento do autoritarismo, ou seja, escolheu não legitimar, eleitoralmente, um caminho cujo objetivo era a tentativa titânica de criação de condições de asfixia da democracia.

A segunda conclusão que podemos tirar destas eleições é que o edifício da democracia é uma construção extremamente difícil e duradoura, tendo em conta, até, a nossa situação económica e sociocultural, e sujeita aos condicionalismos institucionais prevalecentes bem como das características dos políticos que escolhemos para nos representar. Por isso mesmo é que se torna, cada vez mais importante, a fiscalização permanente sobre as decisões dos nossos políticos e sobre o estado das nossas instituições.

Por tudo isto, não faz muito sentido, e até acho que se trata de um exercício analítico esotérico, a tentativa, por parte do próprio presidente da república e de alguns protagonistas políticos do ADI, de criação de condições para a emergência de uma suposta coligação entre esta força política – o ADI – e qualquer outro partido da oposição porque, o que estava em jogo, nestas eleições, não era somente a apresentação e discussão de  projetos de sociedades alternativos ou a reivindicação de um reposicionamento geoestratégico do país ou, ainda, a apresentação de medidas sectoriais avulsas para a resolução dos nossos principais problemas. Era algo muito mais estruturante. O que estava em causa era muito mais do que tudo isto: era a própria democracia, ratificada constitucionalmente em referendo de 1990, que, nos tornou, naquele contexto temporal e histórico concreto, um caso singular entre os cinco países africanos lusófonos.

E, neste âmbito, não se pode negociar nem tolerar estados de alma, porque não se pode ser democrata às segundas, quartas e sextas e, posteriormente, déspota às terças, quintas e sábados. A democracia pressupõe crença, convivência diária e costumes, perspetivados sob a inspiração de valores éticos, políticos e jurídicos e os nossos representantes têm de ser os primeiros a criar condições para o seu aprofundamento e consolidação paulatina.

O ADI acredita piamente, entre outras coisas, que: a existência de um consenso político-partidário mínimo para a instauração de um Tribunal Constitucional Autónomo é uma chatice; as tropas de choque podem ser chamadas para expulsar os deputados da oposição do interior da Assembleia Nacional; os juízes do Supremo Tribunal de Justiça podem ser exonerados e aposentados compulsivamente quando decretam uma sentença contra os interesses do referido partido; os deputados podem ser revistos por tropas estrangeiras que entram e permanecem no país sem autorização da Assembleia Nacional; a censura na rádio e televisão pública pode permanecer indefinidamente como propósito de defesa de interesses políticos governamentais e o presidente da república, ao contrário daquilo que é a sua principal função constitucional, deve patrocinar, sucessivamente, soluções políticas especiais, em defesa de um partido político, neste caso o ADI, em violação flagrante do principio da igualdade de tratamento entre todos os partidos políticos.

Se os partidos da oposição, todos sem exceção, andaram quatro anos a lutar contra estes atropelos à democracia, sem resultados, condescendência ou compreensão do ADI, e transformaram este ato na sua principal bandeira eleitoral, como é que estarão, agora, em condições de fazer uma coligação com o próprio ADI para formação de um novo governo da república, tendo como suporte diferenciador e antagónico uma questão tão estruturante?

Como é que o próprio presidente da república pode patrocinar uma coisa desta sabendo-se que, ele mesmo, como árbitro e supervisor do nosso sistema político, nunca fez nada para impedir ou minimizar o ímpeto asfixiante e avassalador do ADI sobre os pilares do nosso edifício democrático, apesar de sucessivas chamadas de atenção por parte dos referidos partidos da oposição e da própria sociedade civil?

Não basta, por isso, ao ADI, pedir, agora, desculpas ao povo, por erros de governação. De que erros se tratam? De erros relacionados com opções e decisões políticas legitimas que tomou? De erros relacionados com atropelos à democracia?

Se os erros em causa estão relacionados com opções e decisões políticas legitimas que o ADI tomou, então, este perdão encerra ingenuidade, dissimulação ou um truque extemporâneo que possa dar algum conforto político, agora, ao partido em causa, porque a política é arte de se fazer o possível, de acordo com as convicções ou interesses ideológicos em presença e as condições existentes. O ADI, como maior partido, pelo menos eleitoralmente, do nosso sistema político-partidário, não pode andar a arrepender-se das decisões políticas que toma, legitimamente, porque isto mina a credibilidade e a confiança do referido partido e do próprio sistema político junto do eleitorado. Se os partidos políticos passam a vida a tomar decisões políticas legitimas e, depois, arrependem-se, considerando-as um erro, o eleitorado deixa de acreditar neles.

Se, pelo contrário, os erros em causa, estão relacionados com atropelos à democracia, então, a situação parece-me mais grave, ainda, porque o ADI tinha, objetivamente, consciência deles, até pelo facto ter sido alertado pela oposição e a própria sociedade civil quando os praticou, e não se preocupou com as consequências de tal propósito que incluem, eventualmente, a prática de ilegalidades com o único propósito de se manter no poder.

Perguntar-se-á, então: e o presidente da república que patrocinou, objetiva ou subjetivamente, estas ilegalidades e manteve-se, sempre, ao lado do referido partido, apesar de sucessivas chamadas de atenção por parte dos partidos da oposição e da própria sociedade civil também vai pedir desculpas ao povo? Ele não será, neste momento, um ativo tóxico, sem autoridade e independência no cargo que ocupa, aos olhos da maioria da população Santomense, enfraquecendo, de forma quase irreversível, a instituição que representa?

Por tudo isto, acho muito improvável e até indesejável, a existência de condições, neste momento, para que o ADI venha a fazer parte de uma eventual coligação governamental, envolvendo qualquer partido da oposição, até, pelo facto de, se tal acontecer, uma parte significativa das pessoas que votaram nestas eleições, nos referidos partidos, poderem sentir-se traídas com tal propósito porque estes votos parecem representar um caráter estratégico ou útil, de mudança, tendencialmente dirigido para impedir ou rejeitar qualquer deriva autoritária no país.

Por outro lado, a viabilização de um suposto governo do ADI, contando com o respaldo e aprovação do presidente da república e apoio político, na Assembleia Nacional, de eventuais deputados da oposição, principescamente comprados como se faz num mercado moderno de escravos, poderia colocar em causa, no limite, o maior pilar da nossa democracia representativa. E é isto que eu, ultimamente, ouço, da parte de alguns simpatizantes e militantes do ADI, de forma encapotada e envergonhada, quando sugerem que a atual oposição, em bloco, apesar de múltiplas manifestações públicas, escritas e verbalizadas, de entendimento em torno de um acordo de governação que os une, deveria provar este propósito político na Assembleia Nacional.

Se tal facto (um governo da ADI com deputados comprados da oposição), contudo, vier a acontecer, o epicentro da contestação e revolta popular deslocar-se-á, rapidamente, das imediações do ADI para a presidência da república e o país entrará num processo de instabilidade política e social imprevisível. Não será mesmo isto que o ADI quererá?

Tenho dificuldades, contudo, em compreender esta estratégia, tendo em conta as condições, política e socioeconómica, prevalecentes no país, e não é crível que a tentativa de resolução desta hipotética instabilidade, com recurso a um novo ato eleitoral, num contexto temporal de curto prazo, traga vantagens significativas para o ADI.

Vivemos, neste momento, provavelmente, desde a instauração da democracia no país, o período mais difícil da nossa vida comunitária e uma parte das causas da manifestação destas dificuldades está diretamente relacionada com as armadilhas que o ADI montou, durante os quatro anos da legislatura anterior, com o propósito de abalar os alicerces da nossa democracia, como se de um pêndulo programado, milimetricamente, se tratasse, com o objetivo de continuarem a usufruir de um poder, quase absoluto, durante décadas.

O problema, todavia, é que qualquer instrumento ou sistema, na linguagem de uma Ciência como a Física, reage de acordo com as condições iniciais existentes. Um pêndulo, não seria exceção. Determinada a inclinação e a velocidade inicial do referido pêndulo, bem como as variáveis como o atrito e gravidade, o ADI interiorizou a ideia de que saberia e controlaria em todos os instantes, a localização do pêndulo e que todos os movimentos do referido instrumento seriam previsíveis.

Só que o pêndulo que o ADI utilizou era imperfeito e desprezaram, como tal, o papel de outras variáveis no referido instrumento o que determinou o caos que estamos, momentaneamente, a viver e que ninguém sabe como controlar.

*Adelino Cardoso Cassandra

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