segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Zanga de "comadres" põe a nu fragilidades da "Operação Fizz"


Andreia Sampaio* | Jornal de Angola | opinião

A Procuradoria Geral da República portuguesa emitiu, na sexta-feira, dia 2 de Fevereiro, um mandado para que Manuel Vicente, supostamente de viagem a Portugal, pudesse ser notificado e apresentasse comprovativo da sua residência no país.

Acontece que Manuel Vicente viajou, sim, mas para São Tomé e mais uma vez a justiça portuguesa pôs a nu debilidades que não a elevam ao patamar de ‘superioridade moral’ que muitos insistem em lhe atribuir.

E se o delírio que se apossou do Procurador que, no último fim-de-semana, “surpreendeu” o Eng.º Manuel Vicente nas margens do rio Tejo diz bem da credibilidade da justiça em Portugal, as sucessivas violações processuais e as permanentes fugas de informação confirmam quão nebulosa é a sua administração naquele país. 

Uma nebulosidade que, ao salpicar os corredores da PGR, dos tribunais e de alguns escritórios de advogados, não deixa de destapar a teia de promiscuidade prevalecente neste reino.

Orlando Figueira, procurador, e Paulo Blanco, advogado, partilham em comum uma mesma convicção: o Engº Manuel Vicente nada tem a ver com o alegado caso de corrupção que envolve o ex-procurador agora acusado de ter arquivado e, posteriormente, destruído documentos em troca de dinheiro. 

Ao arquivar o processo, fê-lo com a anuência dos seus superiores hierárquicos e não parece  ter havido violação processual alguma ou obstrução à justiça. 

Tanto mais que outros processos relativos a angolanos envolvidos igualmente na compra de apartamentos no mesmo edifício, acabaram por ter, sem quaisquer sobressaltos, o mesmo destino.

Já relativamente à destruição de documentos, só e unicamente Orlando Figueira pode responder por esta acusação.

Mas Paulo Blanco e Orlando Figueira não sendo conhecidos de longa data, chegaram, porém, a partilhar em comum um outro traço: a interesseira e circunstancial “amizade”.

Partilharam, por essa via, laços de inegável cumplicidade. Em questões profissionais e até mesmo na vida privada, embora, com esta última, ninguém aparentemente tenha nada a ver. É assunto privado.

A partir do momento, porém, em que o trabalho, envolvendo processos relativos à aquisição de apartamentos de figuras públicas angolanas, foi  transferido para a casa do Oeste de um  dos mais mediáticos protagonistas da “Operação Fizz”– Paulo Blanco –, o caso muda de figura. E muda de figura porque, com essa transferência mais intimista, facilmente se percebe que, entre ambos, afinal, havia inclusive relações “de pijama”, conforme troca de correspondência entre Orlando Figueira e Paulo Blanco apreendida pelos oficiais do TIC – Tribunal de Instrução Criminal –no escritório deste último.

Dessa troca de correspondência percebe-se ainda que as suas relações passam também por um mundo de códigos onde imperam informação privilegiada, influência, percentagens e “premiações”.

Relações que podem culminar com a montagem de um esquema em que os “prémios” podem não ter sido mais do que somas em dinheiro obtidas sob a ameaça do prosseguimento de inquéritos criminais, reais ou fictícios, instaurados a figuras públicas e a políticos angolanos.

Mas entre ambos um grão de areia pode ter encravado a engrenagem. Orlando Figueira, desde o início do julgamento, que guardava a sete chaves o código de três outras figuras citadas nos seus apontamentos pessoais como podendo estar envolvidas também neste processo.

O seu “amigo” do Oeste, Paulo Blanco, tratou agora de descodificar esses nomes e, ao destapar o mistério, pôs completamente a descoberto Orlando Figueira perante o tribunal... 

Com esta descodificação ficou a saber-se que alcunhas como “Ricky Martin”, “Loira” e “Meia Branca” referem-se, respectivamente, ao procurador Ricardo Matos, à advogada Ana Bruno, e ao procurador Rosário Teixeira.

Com a descodificação, Orlando Figueira passa a estar remetido a uma situação tão embaraçosa que o juiz Alfredo Costa não hesitou em proferir, de forma contundente, esta séria advertência: “Você está aqui a responder por crimes gravíssimos e fez disto um segredo dos deuses... Estas situações em tribunal não abonam a favor de quem as produz”...

O rol de desentendimentos não se fica por aqui. Quebrada a sintonia entre ambos, Orlando Figueira, em plena sessão de audiência, acusou Paulo Blanco de estar “a lavar roupa suja” e este, ao devolver a farpa, qualificou aquele de “falso amigo”.

Tudo a propósito de documentos sigilosos que Orlando Figueira diz ter entregue a Paulo Blanco, que nega redondamente tê-los recebido. E assim se conhecem os “amigos”...

*Jurista

Angola | GENERAIS PUM-PUM


Fonte: © Jornal de Angola/Ilustração de Casimiro Pedro

Presidente português recebe ministra da cultura


O Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, recebeu na sexta-feira em Belém, ao fim da tarde, a ministra da Cultura, Carolina Cerqueira, e todos os escultores e pintores que participam na exposição inaugurada na semana passada na sede da UCCLA - União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa.

Estiveram também presentes o ministro da Cultura português, Luís Filipe Castro Mendes, o embaixador de Angola em Portugal, José Marcos Barrica, o presidente da UCCLA, Vítor Ramalho, o vice-presidente da Comissão Executiva, Carlos Carreiras, o adido cultural da embaixada de Angola, Luandino Carvalho, e o curador da exposição, Lino Damião.

Jornal de Angola | Fotografia: Tiago Miranda

ANC reúne "de urgência" para debater saída de Presidente sul-africano


A cúpula nacional do partido governante na África do Sul, o Congresso Nacional Africano (ANC), foi convocada este domingo (11.02) para uma reunião "de urgência" que se realizará na segunda-feira (12.02).

O portal de notícias News24 explica que ainda não se confirmou a agenda desta reunião e a sua relação com as negociações entre o presidente do ANC e vice-presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, e o próprio Zuma para forçar a saída deste último sem agravar as divisões do partido.

Aos jornalistas, há cerca de uma semana, o atual líder do partido no poder, Cyril Ramaphosa, adiantou que esperava concluir conversações com Jacob Zuma sobre a transição de poder "nos próximos dias pelo interesse do povo", cita a agência de notícias Reuters.

No entanto, este domingo, à chegada a uma cerimónia de culto religioso na Catedral de São Jorge, na Cidade do Cabo, Ramaphosa declinou fazer comentários sobre o temas da reunião de amanhã.

A convocatória da reunião ocorre apenas um dia depois da reunião da direção da formação, cujos seis membros realizaram um extenso encontro na Cidade do Cabo. A News24 tinha adiantado que as negociações para a saída de Zuma ficariam fechadas antes do fim de semana, citando "fontes de confiança" do partido.

Esta mesma informação assegurava que as negociações com Zuma giram em torno de assuntos "de cosmética" como o pagamento da sua defesa legal nos casos de corrupção que enfrenta e a sua segurança pessoal e da sua família.

O único órgão do ANC com capacidade para forçar a saída do chefe de Estado é o comité executivo nacional, que se reúne na segunda-feira, já que as regras internas da formação estabelecem que todos os membros do partido, incluindo os cargos eleitos, devem submeter-se à vontade desta.

Pressão sobre Zuma aumentou

Contudo, se Zuma se negasse a deixar o cargo, a única via possível seria uma moção de censura parlamentar.

Depois de ter ultrapassado sete moções anteriormente, o Presidente, que continua a ser alvo de acusações de corrupção, vai enfrentar - senão se demitir antes - no próximo dia 22 uma nova moção de censura parlamentar, pedida por um partido da oposição.

Após deixar a presidência da formação no último congresso, realizado em dezembro, a favor de Ramaphosa - que não era o seu candidato preferido - a pressão para que o chefe de Estado abandone o poder aumentou, especialmente nas últimas semanas.

O atual líder do partido vai intervir este domingo num encontro que servirá para lançar oficialmente os atos do centenário do nascimento do ex-Presidente sul-africano Nelson Mandela.

Agência Lusa, AFP, Reuters | em Deutsche Welle

UE chama Polisario para negociação de acordo de Pesca

A União Europeia reconheceu o direito da Frente Polisario de participar na renegociação do acordo de pesca da UE com o Marrocos, que colocaria as partes em confronto à mesma mesa pela primeira vez desde 2012, publicou hoje o Africa Confidential.

Segundo este meio de comunicação um alto representante da União Europeia para o Comércio afirmou que “Devemos aceitar a decisão do Tribunal (Tribunal de Justiça Europeu) e isso significa que a Polisario deve participar nas negociações”.

“Estou convencido de que vamos convencer Marrocos de que a Polisario deve estar na mesa de negociações”, acrescentou.

Entretanto o TSA (jornal online argelino) confirmou que o Serviço Europeu de Ação Externa contatou o representante do Polisario em Bruxelas.

Marrocos procura silenciar esta nova abordagem e o reconhecimento da Frente Polisario como legitimo representante do povo saharaui por parte da União Europeia, publicando noticias em que exige a presença da Argélia na mesa de negociações e não a Frente Polisário.

Uma estratégia conhecida de Marrocos que não que abrir mão do território saharaui que ilegalmente ocupa desde 1975 e que apesar de ter assinado o acordo de cessar fogo em 1991, nunca respeitou as resoluções das Nações Unidas, tendo impedido de forma sistemática a realização do referendo sobre a autodeterminação do povo saharaui.

Após reuniões recentes com funcionários da Comissão Europeia, o representante do Frente POLISARIO na Europa Mohamed Sidati comentou:

“As discussões abordaram uma grande variedade de questões, das tentativas em curso de incluir o Sahara Ocidental nos acordos comerciais UE-Marrocos sem o consentimento do povo saharaui através do seu legítimo Representante a Frente Polisario, à necessidade de a UE desempenhar um papel mais pró-ativo em apoiar os esforços para revitalizar o processo de paz da ONU. Congratulamo-nos com o convite da Comissão Europeia para discutir estas questões; e espero que isto sinalize o primeiro passo para uma abordagem mais construtiva da Comissão.

Durante a reunião, esclarecemos as nossas profundas preocupações com as negociações em curso para incluir o Sahara Ocidental no acordo comercial da UE com Marrocos e a ausência de um processo transparente, legal e credível para obter o consentimento da Frente Polisario, o Representante legal do Povo saharaui. Qualquer acordo económico entre a UE e Marrocos que não exclua explicitamente o Sahara Ocidental continuará a reforçar a ocupação ilegal de Marrocos. Nesta medida, enfatizamos a nossa confiança na legislação da UE e a nossa disposição para voltar ao Tribunal de Justiça Europeu relativamente a tais questões.

Paralelamente, reiteramos o nosso compromisso inequívoco com o processo de paz da ONU através do nosso compromisso contínuo e construtivo com os esforços do Enviado Pessoal do Secretário Geral da ONU, H. Horst Kohler. Neste contexto, lembramos a Comissão da relevância dos desenvolvimentos na UE para o processo político das Nações Unidas e a necessidade de garantir que não sejam apresentados obstáculos aos esforços do Sr. Kohler.

A Frente Polisario permanece aberta e pronta para um comércio construtivo e cooperação com a UE no âmbito do direito internacional e da UE. Um futuro sustentável, estável e próspero para o Magrebe só é possível através do respeito mútuo do direito internacional, da justiça, do princípio da autodeterminação, dos direitos humanos fundamentais e dos valores“.

Ayúdanos a difundir

POR UN SAHARA LIBRE.org | Notícias e artigos sobre o Sahara Ocidental

A UE selou o acordo comercial do Sahara Ocidental em violação do julgamento do Tribunal


wsrw.org.– A Comissão Europeia e Marrocos rubricaram ontem um acordo que abrange o comércio de mercadorias originárias do Sahara Ocidental sem o consentimento do povo deste território, contrariamente às ordens do Tribunal de Justiça da UE.

A Comissão Européia, a 31 de janeiro de 2018, assinou um novo acordo comercial com o Governo de Marrocos. O documento foi assinado em Bruxelas, com a presença de dois ministros marroquinos. O acordo ignora o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (CJUE) de 21 de dezembro de 2016, segundo o qual o Sahara Ocidental é um território “separado e distinto” de Marrocos e, portanto, que os representantes do povo do território deveriam consentir qualquer acordo comercial ou de associação da UE que afecte o seu território.

O pré-requisito do consentimento dos representantes do povo do território foi totalmente ignorado durante as negociações e, segundo se informa, não é encontrado no contrato assindo.

O documento ainda não foi formalmente aprovado pelo chamado College of Commissioners, uma formalidade que deverá ocorrer na próxima semana. Não é claro em que pontos, se houver, este acordo é diferente daquele que foi declarado inválido pelo Tribunal em 2016. O acordo abrange o tratamento preferencial de produtos da pesca e agricultura originários do Sahara Ocidental ilegalmente ocupado.

“Western Sahara Resource Watch está profundamente chocado com o comportamento desonesto da Comissão Européia, que mostra um flagrante desrespeito pelo julgamento do Tribunal de Justiça e por obstruir os esforços de paz da ONU no Sahara Ocidental. A Europa deve ser orientada pelo direito e pela retidão moral , não cinismo e imprudência “, afirmou Morten Nielsen, da Western Ressource Watch (WSRW).

Segundo as fontes da UE, esse acordo súbito foi uma surpresa total para todos em Bruxelas. A Comissão não deu sinais sobre o próximo acordo quando informou os legisladores seniores do Parlamento apenas alguns dias antes. Alegadamente, a Comissão sublinhou que estava empenhada em cumprir o acórdão e estava interessada em consultar várias partes interessadas, incluindo a sociedade civil saharaui e até mesmo a Frente Polisario. Isso parece ter sido enganador e nos bastidores, a Comissão estava a finalizar o acordo.

“Este é um insulto ao Parlamento Europeu e ao Tribunal de Justiça”, enfatiza Nielsen.

Desde o início das negociações com Marrocos, a abordagem da Comissão para a decisão do Tribunal da UE não atende aos padrões básicos da UE de negociações comerciais transparentes e responsáveis. Uma principal fonte de preocupação foi que a Comissão parece ter interpretado erroneamente as conclusões do Tribunal de que tais acordos precisavam obter o “consentimento dos representantes do Sahara Ocidental” e, em vez disso, procuraram apenas “consultar as populações do Sahara Ocidental”. Ao substituir um com o outro, era possível às instituições da UE afastar o povo saharaui, tanto por falar com as pessoas erradas quanto por não ter em conta a sua feroz objeção ao acordo.

“A Comissão, aparentemente, não consultou ninguém, independentemente de serem a Frente Polisario, a sociedade civil saharaui ou as organizações de marionetes marroquinas criadas para dar legitimidade à ocupação do Marrocos. Nenhuma medida parece ter sido tomada pela Comissão da UE, nem pelo SEAE, para obter o consentimento da representação do povo do Sahara Ocidental, a Frente Polisario “, afirmou Nielsen.

A WSRW espera que o acordo seja enviado aos Estados membros e ao Parlamento em março, e que será abordado nas comissões parlamentares a partir de abril.

Pelo que a WSRW entende, a Comissão colocou-se numa situação inescrutável durante as negociações, em que simplesmente não havia possibilidade de se conformar com o acórdão do Tribunal enquanto agradava o Governo marroquino. Esta súbita assinatura do acordo pode assim ser lida como outro sinal de boa vontade para um governo marroquino cada vez mais nervoso. E compra a UE mais algumas semanas, até que um julgamento do TJUE seja aprovado sobre a legalidade do Acordo de Parceria de Pesca UE-Marrocos em 27 de fevereiro de 2018.

Em 10 de janeiro de 2018, o advogado-geral do Tribunal da União Européia, Melchior Wathelet, emitiu uma Opinião antes da decisão do tribunal, afirmando que o direito à autodeterminação é uma obrigação erga omnes e que a União não cumpriu suas obrigações. Ele sublinhou que a União tem o dever de não reconhecer uma situação ilegal resultante de uma violação das normas erga omnes do direito internacional. Além disso, o advogado geral descobriu que a União prestou auxílio e assistência na manutenção da ocupação ilegal resultante da violação do direito do povo do Sahara Ocidental à autodeterminação, ao celebrar um acordo internacional com Marrocos. Tudo isso tendo em conta, ele concluiu que o acordo de pesca da UE com Marrocos, portanto, é “inválido”, pois incluiu as águas no mar do Sahara Ocidental.

Outros países, como Noruega, Suíça, Islândia, Liechtenstein e os EUA, têm acordos comerciais legais com Marrocos que explicitamente não se aplicam ao Sahara Ocidental. A UE, sob pressão francesa, reluta em seguir essa rota.

Até 30 de janeiro, a Sahara Resource Watch (WSRW) recebeu um convite do Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE) – o serviço de relações externas da UE – para “uma reunião informal” em 6 de fevereiro, onde o SEAE apresentaria o seu trabalho para cumprir com o acórdão do Tribunal e “para obter a sua opinião sobre os benefícios relacionados que poderiam ser derivados para a população envolvida pelo acordo”.

A WSRW respondeu a esse pedido em 1 de fevereiro de 2018, sublinhando que não representa de modo algum o povo saharaui. Em vista do que agora é aparentemente um acordo concluído, a WSRW também solicitou ao SEAE para esclarecer o propósito do convite da reunião. WSRW também sublinhou a sua confusão quanto ao motivo pelo qual os “benefícios” da “população” deveriam ser discutidos, já que o CJUE (parágrafo 106) considerou irrelevante para avaliar a legalidade do acordo. Finalmente, a WSRW afirmou que está interessada em trocar pontos de vista com o SEAE, mas que não quer se envolver em um processo que possa prejudicar o requisito de obter o consentimento dos representantes das pessoas do território, como um corolário de seu direito à autodeterminação.

POR UN SAHARA LIBRE.org | Notícias e artigos sobre o Sahara Ocidental

PORTUGAL | O outro diabo e o trabalho


Pedro Marques Lopes | Diário de Notícias | opinião

1 - O conflito de baixa intensidade entre o governo, a parte do PS que gostava de que o PS fosse outra coisa, o BE e o PCP sobre legislação do trabalho preencheu a semana política. Ou seja, um assunto que mal se viu, esmagado pela extraordinária importância dos humores de Bruno de Carvalho e as humorísticas disputas eclesiásticas sobre as alcovas dos fiéis.

Na melhor das hipóteses, ficou pela enésima vez patente a incapacidade dos partidos que apoiam a solução governativa de se entenderem em questões-chave. Enquanto a devolução de direitos e a restituição de regalias (ambas justas) foram o eixo central da política governamental tudo estava bem, no momento em que é preciso governar, reformar, intervir em questões estruturais, as diferenças inultrapassáveis entre o PS e os seus circunstancialíssimos parceiros vieram à tona. Não é possível misturar azeite e água.

As promessas de amor eterno e os elogios que os socialistas dedicam aos seus parceiros soam cada vez mais a falso. Uma espécie de divórcio que querem que seja a bem, mas em que não estão dispostos a dar um tostão que seja do património que construíram em comum. Continue a situação económica em bom estado, prossiga a redução do desemprego, não exista qualquer convulsão internacional que traga turbulência e o PCP e, sobretudo, o BE vão arrepender-se amargamente de não terem ido para o governo: quer se queira quer não, é o governo que capitaliza o sucesso. BE e PCP estão numa situação em que se não protestam correm o risco de ver os seus eleitores tradicionais incomodados; se protestam arriscam-se a ser vistos pelo eleitorado da esquerda moderada (a grande maioria do eleitorado de esquerda e centro-esquerda) como forças de bloqueio quando os resultados estão a ser bons. É preciso dizer que os bloquistas são os que terão mais problemas. Não só o eleitorado tradicional do PCP é mais fiel, como o BE não tem as fortes raízes dos comunistas no movimento sindical e nas autarquias (mesmo assim, foi o que foi nas últimas eleições autárquicas).

Mantenha-se tudo como está e serão os bloquistas e os comunistas que ficarão a pensar se a vinda do diabo teria sido assim tão má. Mais, os resultados eleitorais trarão maiores problemas para a esquerda do PS do que para o PSD.

2 - Assisto a muitas discussões sobre flexibilidade e rigidez de despedimentos e poucas sobre esta relação com a produtividade.

Há países em que o despedimento individual é praticamente livre e em que a produtividade é elevada e outros em que o despedimento também é livre e a produtividade baixíssima. Como temos países com uma elevada rigidez nos despedimentos que têm elevados índices de produtividade e países com o mesmo tipo de legislação laboral com reduzida produtividade.

Circunscrever a questão da produtividade à facilidade ou dificuldade de despedir ou colocá-la como fator decisivo na criação de riqueza é um erro crasso. Aliás, Portugal é um excelente exemplo disso. Somos um país onde se trabalha muitas horas e a produtividade é baixa, e não foi, nem é, a antiga rigidez ou a recente flexibilidade nos despedimentos que alterou o que quer que fosse. E, no entanto, a legislação laboral é sempre vista como o alfa e o ómega da discussão sobre produtividade e crescimento económico. Não há leis laborais nem maior facilidade em despedir que remedeiem a nossa má organização do trabalho, a deficiente formação da maioria dos nossos empresários e gestores, a falta de investimento, o desprezo pela formação dentro e fora do posto de trabalho.

Numa outra dimensão, é também recorrente uma análise meramente económica sobre o trabalho e o emprego. Aparece amiúde quando se discute o valor do salário mínimo ou mesmo a sua própria existência.

Convém recordar que o salário mínimo e o seu valor têm que ver com o especial papel que a comunidade dá ao trabalho. Algo com origens nos valores mais profundos da civilização judaico-cristã e enunciado, por exemplo, de uma forma veemente pela doutrina social da Igreja. O trabalho define em grande parte o papel e a inserção do cidadão na comunidade. Trabalhar tem de corresponder a uma retribuição que garanta a um homem ou a uma mulher viver com dignidade - ainda estamos longe disso no nosso país. Colocar o trabalho como um simples fator de produção põe o homem com a mesma dignidade de uma máquina ou de um pedaço de terra. Não pode haver argumento económico que se sobreponha ao conteúdo ético do trabalho.

No mesmo sentido, apesar de numa dimensão diferente, ver o trabalho como uma simples transação em que as partes estão em igualdade de circunstâncias não é admissível porque simplesmente não é verdade. A regulamentação - que tem de ter limites para que não torne impossível a organização do trabalho que tem sempre de ser do empresário - de uma relação que será sempre desequilibrada tem de, mais uma vez, proteger a parte mais fraca e impor direitos e deveres não negociáveis.

É verdade que é impossível olhar para o trabalho como se olhava, sequer, há vinte anos. A transformação da maneira como se trabalha, as mudanças que as novas tecnologias provocaram, a globalização, exigem uma reflexão sobre o trabalho e o que a nova realidade implica que em larga medida ainda está por fazer. Mas por muito que esse novo mundo se imponha, retirar o conteúdo ético ao trabalho ou transformá-lo num mero produto nunca pode ser opção.

DEMOCRACIA MASCARADA

Bom dia. A seguir vai ter a possibilidade de ler no PG o Curto do Expresso, com um pouco de cafeína, qb. Rui Gustavo é quem serve, sem traumas, editor, que é, de sociedade, lá pelo burgo do tio Balsemão, a que chamam Impresa, com SIC e muito mais nas ilhargas. Avancemos.

Hoje estamos à porta do Entrudo, amanhã é para os foliões, os mascarados, os momos, e outros estafermos do género. Alguns desses retirados da política, da Assembleia da República – onde passam as legislaturas maquilhados e mascarados de cidadãos exemplares, ativos, republicanos e democráticos, quando na realidade não são nada disso mas o contrário. No dizer de muitos plebeus são uns grandes beneficiários das defesas dos lobies, do capital selvagem, estulto, desumano, antidemocrático, golpista, radicalmente neoliberal, neoesclavagista, e o que mais for de pior para as populações, de Portugal e do mundo. Já dizia Albino Forjaz de Sampaio que “mascarado é o político que diz aquilo que não sente, para enganar a gente”. Seguem também, tais mascarados, um dos ensinamentos de “O Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry- Porto Editora”: cativam para enganar. No seu cativar é que está o lucro (deles), o engodo e o nosso engano. Por isso os plebeus os epitetam de fdp’s. Não todos mas alguns, bastantes – mesmo que fossem só dois. Na realidade são muitos mais e pior ainda aqueles que se alapam nas suas ilhargas e os compram. Umas “putas”, diria o meu avô por entre aquele seu bigode farto e semelhante ao de Estaline. Carnaval é todo o ano. Estamos a ver e sentir que sim.

Que amanhã, terça-feira do dito Carnaval, não é feriado reconhecido oficialmente mas que haverá “tolerância de ponto”. Sabe-se que inúmeras empresas dispensam os empregados… Mas não é feriado obrigatório. E este governo de Costa vai nessa. Um não feriado em que talvez a maioria não trabalhe. Dá jeito aos patrões que não dispensam os seus empregados. É que se fosse feriado oficial teriam de pagar um pouco mais aos que nesse dia têm de trabalhar. Negócios com a cumplicidade dos políticos das decisões. Ou é feriado ou não é. De vez. Assim é que devia de ser. Já no tempo salazarista não era feriado… E continua. Estamos no salazarismo da moda, naquele em que o governo de Passos se inspirou para destinar portugueses à fome e à morte por suicídio ou por falta de tratamentos adequados na velhice? Quem disso sabe melhor, sobre a bagunça nos hospitais, é o Dr. Morte, que atualmente é o grande patrão da Caixa Geral de Depósitos. Esse tal Paulo Macedo, batizado de dr. Morte justamente, na máscara que trazia de ministro da saúde de Passos e do neoliberalismo que nos pôs à míngua.

Certo é que muitas máscaras já caíram, desses e de outros. É igualmente certo que esses mascarados são quase todos iguais no conteúdo e às vezes até na forma. Por isso se diz que com tais avantesmas quem se lixa é o mexilhão. Esses tais de “marisco” são a maioria. Eu, tu, nós, vós. Milhões. Pois é, mas se até a democracia está mascarada à moda e interesses deles… Democracia sem máscaras é que não. Nada como democracia com máscara, para se governarem. Pois.

Sigam para o Curto, porque aqui a cegada acabou. Mascarem-se de divertidos e muito felizes, como é costume. Gozem o Carnaval… todo o ano.

MM | PG

 37 milhões de razões para aproveitar bem o dia

Rui Gustavo | Expresso

Bom dia. Hoje é segunda-feira, véspera de Carnaval. Uma ponte antes da tolerância de ponto já decretada pelo Governo e em vigor na esmagadora maioria das empresas. E tal como em todos os anos, está frio (ao menos não chove), há desfiles de Carnaval com bailarinas em pele de galinha, crianças de férias mascaradas de Elsa ou Batman com casaco impermeável por cima, locais públicos fechados e Justiça a meio gás.

Há dois juízes desembargadores suspeitos de corrupção detidos pela PJ? Sim, mas só na quarta-feira, depois da ponte e do ponto, saberão quais as medidas de coação que lhes serão aplicadas. A ex-diretora do DCIAP diz no julgamento do procurador Orlando Figueira que “não é normal” que documentos oficiais sejam destruídos ou que desapareçam e deixa no ar suspeitas contra um outro procurador? Sim, mas só na quarta-feira de cinzas irá continuar a depor. Porque hoje é ponte.

No Parlamento, a casa da democracia, não há plenário nem comissões. Só “trabalho de gabinete”. O que não é uma grande diferença em relação às segundas-feiras normais, normalmente dedicadas aos “contactos com eleitores”.

Na Autoeuropa não há ponte mas também não há trabalho. Faltam peças para a linha de produção e o sindicato argumenta que a decisão da administração de obrigar os trabalhadores a trabalhar ao sábado foi precipitada.

O Governo, a julgar pelas manchetes de hoje, aproveitou a ponte para mostrar serviço. Segundo o Público, “vai propor a criação de três novos impostos europeus”. As taxas, ou taxinhas, serão aplicadas às “plataformas digitais, empresas poluentes e transações financeiras internacionais”. Segundo o diário, a posição portuguesa já foi transmitida por António Costa à Comissão Europeia e será formalmente transmitida na reunião do conselho europeu de 23 de fevereiro. Portugal junta-se assim à posição de Jean-Claude Juncker, que defende o aumento da participação dos Estados-membros de 1% para 1,2%.

De acordo com o Correio da Manhã, o mesmo Governo “apresenta hoje em Bruxelas estratégia nacional para o lítio”. Trata-se de um mineral presente nas baterias dos telemóveis e carros elétricos e o jornal garante: “Portugal rico em novo petróleo”. Em setembro do ano passado o discreto ministro da Economia, Caldeira Cabral, tinha revelado que o Governo estava a preparar um plano para a extracção do lítio que previa a criação de uma indústria associada à sua exploração. Em janeiro deste ano, O Governo tinha aprovado em Conselho de Ministros as "linhas de orientação estratégica quanto à valorização do potencial de minerais de lítio em Portugal".

Em 2012, quando o Governo do PSD aboliu feriados a bem da recuperação económica e da felicidade da troika, o economista Luís Bento calculou em 37 milhões de euros o custo para o Estado de cada feriado e argumentou que era importante acabar com as pontes e as tolerâncias de ponto por causa dos “atrasos” que provocavam na vida das empresas. Mas a abolição dos feriados foi abolida, voltaram as pontes e a recuperação económica.

A vida é demasiado séria para a passarmos a trabalhar e hoje temos 37 milhões de razões (mais coisa menos coisa) para aproveitar bem o dia. Se gosta de Carnaval, há desfiles em Loures, Loulé, Estarreja e Torres Vedras. No Brasil, caso possa viajar, o pré-carnaval, já começou a 8 de fevereiro e prolonga-se, pelo menos, até dia 14. Lá é verão e não há pele de galinha.

OUTRAS NOTÍCIAS

O Aeroporto Cidade de Londres foi encerrado esta manhã. Não porque os funcionários tenham decidido fazer ponte, mas porque foi encontrada numa doca uma bomba da segunda guerra mundial por detonar.

A seleção portuguesa de futsal vai ser condecorada com a Ordem de mérito pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Os campeões da Europa foram recebidos em Belém, tiveram direito a uma selfie com o presidente e a uma receção apoteótica no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. Ganhamos 3-2 à Espanha depois de Ricardinho, o melhor do mundo, se ter lesionado no prolongamento. Só faltaram as traças para a história do Euro 2016 de futebol se repetir.

Está marcada para hoje uma “sessão de esclarecimento” do presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, com um grupo alargado de jornalistas e comentadores. Ontem, o líder sportinguista – que exige uma aprovação de 75 por cento dos sócios a uma alteração de estatutos do clube - tinha convidado mais de 40 “sportingados” para “esclarecer”, mas só cinco compareceram. Às 16h00 saberemos se há ponte à convocatória presidencial.

Um avião russo despenhou-se ontem a 40 quilómetros de Moscovo matando 77 pessoas – 71 passageiros e seis tripulantes. O aparelho desapareceu dos radares dois minutos depois de ter descolado do aeroporto de Domodedovo. O Antonov da Seratov Airlines foi visto em chamas antes de se despenhar e não são ainda conhecidas as razões para o acidente. O presidente Putin ordenou uma investigação imediata. As primeiras suspeitas apontam para erro humano.

A Operação Carnaval da GNR termina amanhã e já há cinco mortos a lamentar em mais de 600 acidentes. Em igual período do ano passado não houve acidentes mortais. O número não é exatamente surpreendente se tivermos em conta que em 2017 houve um aumento do número de mortos, algo que já não acontecia há mais 20 anos.

Os Beatles acabaram. Não os de Liverpool, mas os da Síria. Falo de um grupo de terroristas britânicos que se juntaram ao daesh e se destacaram pelo sotaque “brit” e pela brutalidade dos seus atos. Serão responsáveis pela morte e decapitação de 27 prisioneiros e do grupo fariam parte Jihadi John, morto em 2015 e Aine Davis, também morto. Alexanda Kotey e El Shafee Elsheikh foram recentemente capturados pelas forças regulares sírias. O Independent sintetiza aqui o que sabe sobre eles, agora que chegaram ao fim.

O procurador-geral de Nova Iorque abriu um processo judicial contra Harvey Weinstein por assédio sexual de várias funcionárias da empresa que dirigia com o irmão, a Weinstein Company, ainda um dos estúdios mais poderosos do pais. O processo também é dirigido à empresa. É a primeira vez que o escândalo sexual atinge a companhia, que mal o escândalo rebentou apressou-se a demitir o sócio fundador.

O FC Porto fez mais uma demonstração de poder desmantelando por 4 -0 o Chaves, uma das melhores equipas do campeonato. Vai à frente do campeonato com meio jogo a menos (estão a perder 0-1 com o Estoril, jogo interrompido por causa de umas rachas na bancada do estádio Manuel Coimbra da Mota). O Sporting também ganhou, em casa, ao Feirense e colou-se ao Benfica que tinha vencido o Portimonense no sábado. Temos campeonato.

Frases

“Orgulho-me muito de tê-lo como vice-presidente”
Assunção Cristas, presidente do CDS, a respeito de Adolfo Mesquita Nunes, que em entrevista ao Expresso assumiu ser homossexual.

“Parabéns malta”
Cristiano Ronaldo, numa mensagem de felicitações à seleção de futsal que este sábado se sagrou campeã da Europa

“Mais uma vez os portugueses demonstraram que quando são bons são os melhores”
"Eu disse logo: Genial. Ponto de exclamação"
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, nos parabéns à seleção

“O futsal conseguiu tocar o céu”
Ricardinho, capitão da seleção e melhor jogador do euro, para Marcelo. Tal como Ronaldo também se lesionou na final.

"A alta velocidade é um tema tabu na política portuguesa e vai sê-lo por muito tempo"
António Costa, em entrevista ao jornal espanhol ABC, sobre o TGV

“Não tiveram qualquer hipótese de sobreviver”
Fonte do Ministério de Emergência russo sobre a queda do Antonov que matou 77 pessoas

“Fico surpreendido com esta disponibilidade revolucionária em participar numa greve”
Jerónimo de Sousa,líder do PCP

“Parece estar a correr razoavelmente bem, contrastando com muito do que vai acontecendo no resto da Europa”
Noam Chomsky, filósofo e linguista americano, sobre a geringonça portuguesa

O QUE EU ANDO A LER

Cartas de Casanova. Lisboa 1757, António Mega Ferreira

É mais o que eu ando a ouvir. O teatro Nacional D.Maria II organizou no salão Nobre decorado com trabalhos de Vilhs uma leitura de excertos do livro de Mega Ferreira. A obra, que desconhecia, ficciona a viagem do filósofo libertino italiano a Portugal na altura do terramoto que devastou Lisboa. O ator Manuel Coelho leu e músicos da Orquestra Metropolitana de Lisboa executaram dois quintetos de Mozart, um para trompa e outro para violino. Dia 5 de março a iniciativa repete-se, desta vez com música de Nikolai Rimsky-Korsakov e do sueco Franz Berwald. São nomes longe do mediatismo do compositor austríaco mas vale a pena ouvi-los. Berwald, por exemplo, não teve muito sucesso em vida e teve de se dedicar a outras profissões como cirurgião ortopédico e gerente de uma fundição de vidro. Hoje é nome de uma das salas de concertos mais importantes da Suécia e é considerado o maior compositor sueco do século XIX.

O QUE EU ANDO A VER

The End of the F**king World

Série da netflix, é uma espécie de Thelma & Louise britânica para adolescentes. James tem 17 anos, uma faca de mato e a certeza de que é psicopata. Alyssa é da mesma idade, quer fugir ao padrasto abusador e à mãe inexistente. Os dois fogem à vida e à polícia ao som de um rock’n’roll decente e entram de cabeça no mundo real. Ou muito me engano ou os dois putos que interpretam as personagens principais – Jessica Barden e Alex Lawther – serão estrelas do futuro.

Por hoje é tudo. E nem de propósito: Martinho da Vila nasceu há oitenta anos e é homenageado no Carnaval de São Paulo. Festeje-o também aqui.

Os curdos e xadrez geopolítico do Oriente Médio


Em meio a um intrincado jogo de potências globais (EUA e Rússia) e regionais (Turquia e Síria), eles buscam autonomia, enquanto combatem vigorosamente o Estado Islâmico, agora praticamente derrotado

Ercan Ayboga, em openDemocracy | Outras Palavras | Tradução: Heval

Após a derrota do chamado “Estado Islâmico” (EI) em solo na Síria, a geopolítica dos curdos sírios passou a ser discutida mais do que nunca. Mais precisamente, devemos falar das Forças Democráticas da Síria (SDF) e da estrutura política “Federação Democrática do Norte da Síria” (DFNS), da qual Rojava (Curdistão Sírio/Curdistão do Oeste) faz parte. O que interessa a este artigo é a crítica de alguns (muitos) círculos de esquerda de diversos países sobre a cooperação militar com os EUA. Contudo, isso é restringir a discussão apenas aos EUA, enquanto o conflito também envolve a Rússia e outras potências regionais como a Turquia e o Irã.

A geopolítica dos curdos sírios só pode ser entendida quando conectada com o Movimento de Libertação Curda (KFM), com orientação de esquerda democrática. Começando com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) no Curdistão do Norte (Bakur; parte turca) nos 1970, o movimento também se espalhou fortemente para Rojava e para o Curdistão do Leste (Rojhilat; parte iraniana) nos anos 1990. Quando, em 2003, o Partido da União Democrática (PYD) foi fundado, aceitou como base o conceito político de Confederalismo Democrático, fundado por Öcalan. Devido à intensa repressão por parte do regime Baath (na Síria), seu espaço de atuação permaneceu pequeno, mas a organização da população nunca deixou de existir.

Quando o levante contra o regime sírio se iniciou na primavera de 2011, o PYD estava interessado em beneficiar-se da fraqueza do regime e organizar de forma democrática e ampla a população em Rojava e nas grandes cidades sírias. Nos primeiros meses, o objetivo também era ampliar a capacidade de autodefesa, pois era difícil prever o desdobramento do conflito contra o regime Baath, assim como o conflito contra a oposição  reacionária armada (“islamista”/jihadista, racista). Nos meses seguintes, o movimento revolucionário foi organizado como TEV-DEM que, além do PYD, inclui dezenas de organizações sociais e pessoas dos crescentes conselhos populares em toda Rojava. O ENKS, bloco partidário conservador curdo em Rojava, ligado a Barzani, permaneceu fraco enquanto o TEV-DEM tornou-se o principal grupo político em na região. Na primavera de 2012, quando ficou claro que a guerra se intensificaria cada vez mais pela oposição reacionária, começaram os preparativos para a libertação de Rojava. O movimento precisava estar pronto para quando chegasse o momento certo.

Diante do momento crucial, o TEV-DEM viu-se frente a duas decisões fundamentais. Ou Rojava seria defendida por forças próprias ou teria que ser abandonada. A segunda opção significaria que o controle de Rojava passaria para outras forças como o ENKS e/ou à oposição síria. É preciso compreender que as condições para defender Rojava são muito mais desafiadoras do que em outras partes do Curdistão. O primeiro motivo é territorial, pois Rojava é majoritariamente plana e não é compacta territorialmente falando. O segundo é que muitas potências internacionais e regionais abasteceram todos os lados da guerra na Síria com muito armamento. Somente o TEV-DEM e alguns pequenos grupos democráticos não armados na Síria não receberam apoio do exterior. No entanto, o TEV-DEM afirmou que é seu dever defender Rojava, do contrário haveria um grande revés do Movimento de Libertação Curda (KFM) em todas as partes do Curdistão. A decisão foi defender a atual revolução e extrair lições das revoluções anteriores que ocorreram no mundo.

Os ataques a Rojava se tornaram sucessivamente mais fortes após o início da libertação bem sucedida de cidades da região, em julho de 2012. Primeiro, foram alguns grupos da FSA e Al-Nusra, que foram derrotados pelas próprias forças de defesa dos curdos, YPG (Unidades de Proteção Popular) e YPJ (Unidades de Proteção da Mulher). Então, o Estado Islâmico chegou à Síria, que também poderia ter sido derrotado logo no início de sua ocupação (verão de 2013 até maio de 2014), mas, após terem ocupado Mossul, ganharam enorme poder expulsando até mesmo os exércitos de Estado. Não podemos esquecer do regime Baath, que atacava seletivamente a região de tempos em tempos – o qual também era motivado pelo regime iraniano.

Atualmente a maior ameaça é o exército turco, que ataca Rojava desde outubro de 2015, quase que diariamente nas fronteiras e nas linhas de frente. Nenhum poder regional e internacional tem interesse que uma força independente e democrática na Síria se torne forte. Nem os Estados ocidentais, que simplesmente ignoraram o TEV-DEM, nem a Rússia que teve algumas reuniões com o TEV-DEM, mas sem planejar ações em comum. Mesmo a Turquia, a Síria e o Irã se encontraram com o  TEV-DEM (mais tarde, a Autoridade Democrática, DSA, fundada em janeiro de 2014 como um bloco democrático expandido), mas com o único objetivo de incorporá-lo ao seu próprio bloco.

Voltemos ao verão de 2014, quando o EI teve seu pico de poder. Quase todo o mundo estava chocado e o EI foi considerado a nova grande ameaça pela maioria das pessoas no Oriente Médio e no mundo. Neste momento foram as forças do KFM que resistiram contra o EI em Shingal, o principal assentamento dos yazidis curdos em Başur. No início de agosto de 2014 tanto o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) como as forças YPG/YPJ resgataram cerca de 80.000 yazidis e impediram que seu genocídio fosse maior. Não foi a “comunidade mundial” que fez isso, mas  os “curdos livres” que até então eram considerados “terroristas”, quando não ignorados. Desde então, a visão sobre os curdos em geral, particularmente em Rojava, e sobre o PKK, começou a mudar. Logo após essa resistência, formou-se uma coalizão global liderada pelos EUA contra o EI. Num primeiro momento esta coalizão estava focada apenas no Iraque.

Foi quando, em setembro de 2014, aconteceu o grande ataque do EI a Kobane. Os curdos resistiram com tudo o que tinham. Dezenas de milhares de pessoas em Bakur reuniram-se continuamente na fronteira com Kobane, a fim de mostrar solidariedade e protestar contra o apoio do Estado turco ao EI. Milhares de pessoas cruzaram a fronteira para lutar do lado curdo. Por causa da ameaça global e da resistência bem sucedida em Shingal, a imprensa internacional também estava presente na fronteira. Nunca antes na história os curdos estiveram tanto na agenda mundial, que reconhecia não só o sofrimento, mas também a resistência curda. A maioria do público mundial teve conhecimento e apoiou a resistência em Kobane!

Embora os curdos estivessem resistindo fortemente, foi muito difícil ter sucesso na resistência diante de milhares de soldados de elite do EI. Por causa do embargo da Turquia, as Unidades de Proteção Popular (YPG) e as Unidades de Proteção da Mulher (YPJ) da Cizîre, a maior região de Rojava, não puderam se juntar à resistência. Caso contrário, haveria um equilíbrio que dispensaria o apoio internacional que necessitaram. Este aspecto é muitas vezes ignorado nas discussões atuais.

Enquanto nos primeiros dias de outubro de 2014 os EUA diziam publicamente que não viam esperanças, embora já tivessem começado a bombardear o EI na Síria, poucos dias depois começaram a bombardear sistematicamente o EI na cidade de Kobane e seus arredores. A resistência em Kobane, uma grande revolta em Bakur/Turquia e o pedido público mundial por apoio a Kobane foram os principais motivos para isso. Não houve longas negociações entre os curdos sírios e os EUA para esse apoio aéreo, talvez alguns dias. Esta intervenção em Kobane começou sob condições políticas específicas e não ficou claro seu tempo de duração. Mais tarde, foram realizadas negociações mais sérias.

Motivações para os EUA e os curdos sírios

Os EUA podem ter visto na derrota do EI em Kobane uma oportunidade na estratégia contra o grupo na Síria e no Iraque. Na verdade, Kobane tornou-se o Stalingrado do EI. Para a revolução de Rojava, a defesa de Kobane era crucial, caso contrário poderia ser marginalizada na Síria. Dessa forma, entre o KFM e os EUA houve uma coincidência de interesses a curto prazo, onde as duas forças permanecem ideologicamente em posições contrárias. Bom lembrar que os EUA apoiaram ativamente a Turquia contra o KFM e, em 1999, sequestraram Öcalan, que está presente em todos os lugares em Rojava.

O bombardeio do EI levou os EUA a encontrar um parceiro forte na Síria. Por muito tempo os EUA apoiaram, em cooperação com a Turquia e os Estados do Golfo, a oposição armada contra o regime Baath. Mas essas forças armadas nunca conseguiram derrubar o regime e perderam força. Elas também sofreram uma transformação “islamista-reacionária” e tornaram-se menos comprometidas com os estados ocidentais (mas com a Turquia e os Estados do Golfo), o que os EUA viram com suspeita. Então, em cooperação com a YPG / YPJ, os EUA poderiam ter influência na Síria, onde querem ser uma parte atuante na reconstrução política do país.

No início da cooperação militar, os EUA planejavam subordinar militarmente Rojava ao governo de Başur. As notas das conversas realizadas em 14 de março de 2015 entre vários deputados do Partido Popular Democrático (HDP) e o líder do PKK preso, Abdullah Öcalan, afirmam que os EUA pressionaram o YPG / YPJ para aceitar fazer parte da estrutura de comando PDK-Peshmerga e que Öcalan se opôs a isso. O acordo não aconteceu, mas a cooperação continuou.

Sem dúvida existem outras motivações a longo prazo para que os EUA iniciem a cooperação militar com YPG/YPJ/SDF. Um deles é retornar à cena política do Oriente Médio como o principal poder a ser considerado após as ocupações no Iraque e no Afeganistão. As críticas aos EUA aumentaram significativamente entre a população no Oriente Médio após essas ocupações, tanto que se tornaram uma força indesejada em quase todos os principais estados muçulmanos.

Esse engajamento militar também ocorreu com o interesse de limitar a influência do Irã no Iraque, que cresceu principalmente nos anos anteriores a 2014. O novo primeiro-ministro do Iraque, Haider al-Abadi, designado em julho de 2014, é mais próximo aos EUA do que seu antecessor, Al-Maliki. O interesse estadunidense em limitar o Irã no Iraque, assim como na Síria, ganhou destaque após a eleição de Trump para presidente dos EUA. Irã voltou a ser um dos principais alvos de sua política externa, o que reforça a motivação dos EUA para continuarem a cooperação militar com a SDF depois de derrotar o EI na Síria.

Outra razão para essa atuação dos EUA na região é exercer uma pressão sobre o governo turco, que nos últimos anos tem se posicionado cada vez mais distante dos estados ocidentais. A Turquia tenta se beneficiar das contradições entre os poderes internacionais, particularmente entre EUA e Rússia, para aumentar sua influência no Oriente Médio. O apoio à Al Nusra e ao EI foi parte desta estratégia. Por outro lado, a Turquia contornou o embargo ao Irã promovido pelos EUA. Por anos, a OTAN vem suspeitando dessa política de seus aliados. A maior preocupação da Turquia em política internacional são os curdos.

Outra motivação, relacionada diretamente aos curdos como um todo, é o apoio ativo dos EUA aos grandes partidos PDK e YNK (PUK) em Başur desde 1991, o que conduziu a sua autonomia. Entre muitas expectativas havia a que os dois partidos se tornassem dominantes nas outras três partes do Curdistão e enfraqueceria o KFM. Mas eles falharam e ainda se corromperam e levaram Başur a uma grande crise econômica e política. Além disso, o PDK tem sido muito influenciado pelas políticas turcas, como por exemplo na venda de petróleo através dos oleodutos turcos.

Por outro lado, os princípios visionários de Öcalan são inspirações para uma nova abordagem democrática e inclusiva. O Confederalismo Democrático é o conceito democrático mais poderoso no Oriente Médio com chance de implementação por milhões de pessoas em Bakur e Rojava. Exitosas coalizões pela democracia  são formuladas com turcos, árabes, assírios, entre outros. Nem os Estados Ocidentais nem o bloco russo-chinês conseguem propor algo para a crise multidimensional no Oriente Médio – faltam-lhes ideias. A discussão é praticamente apenas sobre “derrotar terroristas, estabilidade e construção de muros contra refugiados”. Em relação aos Estados regionais, todos querem a restauração como foi o Congresso de Viena de 1815 para a Europa. Governos fundados no Islã, que alegam ser um “alternativa”, continuam antidemocráticos, anti-mulher e acabam por ser entidades políticas extremamente repressivas.

Se os EUA, a curto ou médio prazo, acharem que compreenderam o KFM e podem torná-lo dependente, eles o instrumentalizarão tendo em vista seus próprios interesses. O que isso poderia representar ainda é difícil de se descrever em detalhes, mas é possível que os EUA queiram  tanto colocar todo KFM “na linha”, quanto desconectar Rojava das demais partes do KFM. Essa última possibilidade se daria por meio da oferta de mais apoio, tanto militar quanto na política internacional, com a promessa de fortalecer seu status político dentro da Síria. Em troca a DFNS precisaria recusar Öcalan como seu líder ideológico,  rejeitando qualquer solidariedade e relações com o KFM em Bakur (que poderia também significar um distanciamento do PKK). Isso daria também espaço em Rojava para o PDK de Barzani e o YNK. Contudo, desde o começo da cooperação militar, em outubro de 2014, não se desenvolveu essa relação de dependência e a balança dessa relação não unilateral não se alterou significativamente.

É claro que seria muito mais difícil para as SDF defenderem sua própria terra se os EUA cessassem toda a cooperação militar imediatamente. A DFNS seria mais vulnerável aos ataques do Estado turco e das forças do regime sírio. O EI não representa mais uma ameaça para a existência de Rojava, mas aqui precisamos considerar que a YPG e a YPJ têm defendido seus territórios antes mesmo da cooperação com os EUA. Agora as SDF possuem muito mais combatentes, capacidades técnicas, motivações e, por isso, maior capacidade de defesa. Talvez os exércitos turco e sírio possam ocupar algumas áreas dentro de um curto espaço de tempo, mas isso implicaria em uma grande resistência e uma guerra com resultados imprevisíveis.

Cooperação Russa com as SDF

Como dito na introdução, as  Forças Democráticas da Síria (SDF) também possuem importantes relações com a Rússia desde 2012.

O objetivo da Rússia na relação com as SDF/DFNS possui muitas faces que certamente são relacionadas umas às outras. Para assegurar esses objetivos é importante que, no atual estágio das SDF, essa cooperação militar com os EUA não se aprofundem e terminem em breve.

Um dos objetivos da Rússia é usar essa cooperação limitada com as SDF contra a Turquia, assim como fazem os EUA. Durante os primeiros anos do conflito na Síria a Turquia queria derrubar o regime de Ba’ath, porém desde 2016 seu foco se voltou quase exclusivamente em limitar o surgimento e fortalecimento de um novo projeto democrático em Rojava/Norte da Síria. Essa abordagem do governo turco dá à Rússia a oportunidade de explorar os medos da Turquia. Como as relações política, econômica e militar com a Turquia foram sólidas por anos, a Rússia permitiu que o exército turco invadisse a região do triângulo entre Jarablus, Al-Bab e Azaz, no Norte da Síria em troca da retirada de seu apoio turco a grupos armados em Aleppo. Essa invasão impediu que as SDF libertassem os territórios de Kobane e Afrin pudesse ser conectada. Ao mesmo tempo, com o exército turco se aproximando da Síria, a Rússia pode pressionar as SDF. Esse é o caso principalmente nos arredores de Afrin, onde há constante ameaça turca. A Rússia continua em pontos de observação de Afrin, que usa para interesses próprios contra a Turquia e as SDF.

A Rússia também demonstra contínuos esforços para que a DFNS encontre um caminho para um acordo com o regime de Ba’ath e, então, seja possível um tipo de restauração do Estado-Nação Sírio. A DFNS declarou várias vezes que buscam estrategicamente um acordo com o regime sírio que poderia construir uma Síria democrática e federal. Se tornou público que os dois lados se encontraram várias vezes e por muito tempo nesses encontros o regime sírio esteve pronto para aceitar apenas direitos culturais dos curdos e o fortalecimento das municipalidades. O DFNS insistiu que seria aceito uma democracia ampliada no nordeste da Síria e uma democratização básica de toda a Síria. No final de outubro de 2017, o Ministro do Exterior sírio, Muallim Walid, declarou que as negociações sobre autonomia para as principais regiões curdas poderiam ser discutidas, o que representa um grande avanço. Porém é uma proposta perigosa e inaceitável pois iria dividir as principais terras curdas das principais regiões árabes. Aqui a DFNS está em uma situação vantajosa e continua insistindo em ser aceita pelo regime de Ba’ath como uma região federal.

A DFNS considera suas relações com a Rússia positivas em vários aspectos. Um deles é limitar os ataques do Estado turco contra os territórios libertados pelas SDF. Outro é usar a influência russa para pressionar o regime sírio a negociar uma solução democrática na Síria e incluir a DFNS nas negociações internacionais para acabar com o conflito armado. Ao que parece, um dos interesses da Rússia é o de não ampliar seu envolvimento militar na Síria. Um terceiro aspecto é não aprofundar muito as relações com os EUA e se beneficiar das contradições dos dois poderes internacionais e regionais. Apesar disso, ambos os estados têm em suas políticas internacionais o interesse de permanecer em contato ou até mesmo desenvolver laços com os curdos, o que hoje inclui também o KFM – mesmo que taticamente – e não apenas o governo do Curdistão do Sul.

O EI ser totalmente derrotado no território do Estado sírio nos próximos meses não significa que o exército sírio começará um ataque militar contra as SDF. Uma das razões para isso é obviamente a cooperação SDF-EUA em curso, outra é que as SDF são bastante fortes e uma terceira é o foco nas organizações afiliadas da Al Qaida em Idlib, Dara e outras regiões.

As características da cooperação

A cooperação militar caracterizou-se muitas vezes por tensões. Uma grande e controversa discussão foi sobre a área de Minbic (Manbij), que as SDF queriam que fosse libertada enquanto os EUA se concentravam em Raqqa. As SDF iniciaram as ações em Minbic sem o apoio dos EUA. Quando já alcançavam os subúrbios da cidade de Minbic, os EUA iniciaram o apoio, o que resultou no sucesso final  da operação em 12 de agosto de 2016. Este caso evidencia que a cooperação entre as SDF e os EUA não é unilateral.

No final de agosto de 2016, o exército turco começou a ocupar Jarablus e durante vários dias as SDF tentaram libertar região sul do EI e reagir ao exército turco. Embora o exército turco tenha sofrido perdas, poderia assumir a cidade de Jarablus, já que o EI não lutou resistiu e recuou após um dia do início da operação. No entanto, depois de vários dias os EUA negociaram um cessar-fogo entre as SDF e o exército turco, mas a coordenação entre as SDF e os EUA entrou em uma crise que durou várias semanas, pois os EUA autorizaram a invasão turca.

Quando as SDF também se deslocaram de Minbic para Al-Bab, libertando a região do EI, também lutaram sem o apoio dos EUA que não queriam ir muito para o oeste. As SDF conseguiram resistir com bastante sucesso contra as tropas turcas que se moviam paralelamente. Depois que o exército turco tomou Al-Bab, atacou Arimah, uma cidade no oeste da região de Minbic por duas duas semanas, conseguindo conquistar apenas uma aldeia que, na verdade, havia sido abandonada por razões militares, embora equipada com muitos tanques e armas pesadas. Os confrontos terminaram quando, depois de algumas semanas, a Rússia e os EUA enviaram soldados para o fronte em torno de Minbic.

O número de soldados dos EUA no norte da Síria não deve ser exagerado, pois eles não se juntam às lutas em solo (exceto a cidade de Raqqa) e realizam mais treinamentos ou coordenação da chegada de equipamento e armas. Em âmbito internacional, o número de soldados dos EUA é mais discutido do que os combatentes das SDF, que passaram de 50.000. Às vezes, analistas falam sobre “EUA e parceiros locais” quando tratam da Síria. Esta abordagem é uma degradação das SDF.

Um mês antes da libertação de Raqqa, as SDF iniciaram a operação “Cizîre Storm” para libertar toda a região a leste do rio Eufrates na província de Deir Ez-Zor. Os comandantes das SDF declararam que o fizeram, embora os EUA não o quisessem. As SDF pressionaram os EUA devido à urgência: o exército sírio estava avançando rapidamente em direção à cidade de Deir Ez-Zor. Na verdade, a operação continua muito bem sucedida. Nas primeiras semanas houve algumas tensões e confrontos com o exército sírio, mas agora há uma pequena cooperação militar no rio Eufrates, perto da fronteira iraquiana.

Embora a cooperação militar entre as SDF e os EUA tenha liderado a Coalizão Global Anti-ISIS realizada particularmente com a operação de Raqqa, não é possível falar sobre uma cooperação política. Os Estados Unidos diferem muito claramente entre a dimensão política e militar e não insistiram para que a DFNS fizesse parte das negociações de Genebra. Embora o governo dos EUA tenha recusado publicamente as acusações da Turquia de que o YPG seja terrorista e que o apoio de armas dos EUA para as SDF seja entregue ao PKK, nunca foi dito nada positivo em público sobre o processo político em Rojava / Norte da Síria. Apenas algumas altas autoridades militares emitiram declarações positivas sobre as SDF. Até hoje os EUA nunca permitiram que uma liderança da DFNS ou das SDF pudesse visitar os EUA.

Embora a relação militar da SDF com a Rússia seja muito menos desenvolvida do que com os EUA, politicamente a Rússia faz declarações mais diretas e positivas sobre os curdos sírios e a DFNS. Por exemplo, no início de 2017, a Rússia preparou um rascunho para uma nova constituição e disse com mais freqüência do que os EUA que os curdos deveriam estar envolvidos nas negociações internacionais. Recentemente, a Rússia anunciou um “congresso popular da Síria” para o qual o PYD/Curdos seria convidado.

Entendendo os antecedentes da guerra

O KFM diz que nos encontramos atualmente na 3ª Guerra Mundial, com foco no Oriente Médio e a Síria no centro. Existem três linhas principais. A primeira é o imperialismo internacional representado principalmente pelos EUA e pela Rússia. A segunda linha inclui os poderes do status quo regional, tendo como principais atores a Turquia, o Irã e a Arábia Saudita, que também possuem características imperialistas. A terceira linha é a das forças revolucionárias e democráticas, liderada pela Revolução Rojava e pelo PKK. Todas as três linhas lutam entre si, as forças da 1ª e da 2ª linha lutam entre si. O resultado é uma complexa e contínua coalizão e conflitos armados. Todas as forças desenvolvem relações com as que parecem estar em contradição com o inimigo, a fim de alcançar seus interesses estratégicos.

Isso está relacionado com a profunda crise estrutural da modernidade capitalista existente no Oriente Médio. Não é suficiente ter uma abordagem ideológica e política como fazem muitas organizações de esquerda e socialistas, mas uma abordagem organizacional e militar é crucial. Sem ser dogmático, é necessário lutar contra ameaças, mas também ser capaz de reestruturar a própria organização de acordo com as condições, e compreender a dinâmica e as contradições de outros atores para poder se beneficiar deles. O objetivo deve ser defender as conquistas e construir uma sociedade forte auto-organizada e a base para fortalecer o próprio poder. A criação de áreas de liberdade não é possível apenas com forças amigáveis. Uma posição dogmática levará à derrota, então cada passo precisa ser bem calculado, particularmente para os curdos que foram colonizados por quatro estados-nações. Como o KFM atua nesta abordagem desde sua fundação, ele pôde alcançar o nível atual de força. Na verdade, o KFM contribuiu para o caos existente através de sua luta pela liberdade que levou à quebra do papel das potências imperialistas que pareciam fortes. O potencial da crise é: Ou a modernidade capitalista será restaurada no Oriente Médio e governará mais 100 anos ou serão criadas violações da liberdade para toda a humanidade. É por isso que as potências internacionais e regionais intervêm com tanta força. Não é apenas petróleo e gás.

Como a população de Rojava / Norte da Síria vê a cooperação com os EUA

Independente de todos os acontecimentos e discussões, é muito importante ver como a cooperação militar com os EUA afeta a sociedade de Rojava. Há duas questões principais. Primeiro, como os ativistas políticos e a população consideram essa cooperação militar. Em segundo lugar, como e se as estruturas econômico-político-culturais são afetadas por essa cooperação.

Entre fevereiro e março de 2017, o autor realizou cerca de 50 entrevistas com ativistas políticos e pessoas de diferentes órgãos administrativos sobre seus trabalhos políticos e a situação político-social. Exceto por uma pessoa, as demais entrevistadas consideraram a cooperação militar  com alguma preocupação. Os entrevistados disseram principalmente que: essa cooperação surgiu devido a condições difíceis, (particularmente em Kobane, e inúmeros inimigos), isso não inclui uma dimensão politica, a cooperação é feita pelos EUA por interesses próprios e é uma cooperação tática.

Havia a consciência clara de que a revolução não deveria contar com essa cooperação militar que poderia ter fim a qualquer momento, mas deveria tentar se beneficiar dela. O mesmo é válido para a Rússia. Estas foram importantes respostas baseadas em uma percepção crítica e visão lúcida sobre o que acontece. Elas mostram que os ativistas continuam a desenvolver e aprofundar seus trabalhos políticos e em na busca por uma sociedade fortemente auto-organizada. O autor observou que, em Rojava, uma sociedade auto-organizada e autossuficiente inclui comunas cada vez mais fortes, conselho popular e outras estruturas políticas, uma economia comunal, um sistema de educação e saúde independente e propagação de autodefesa em todos os bairros, comunas e aldeias. Esta abordagem está ligada aos 40 anos de experiência do KFM, que nunca se tornou dependente de qualquer outro poder político. Sempre houve um compromisso forte e convicto com os objetivos políticos.

A cooperação militar com os EUA raramente é tema nas discussões políticas gerais
Como as outras estruturas políticas e sociais, a imprensa de Rojava não coloca a cooperação militar no centro das notícias. Em vez disso, dá espaço a informações sobre o projeto político do federalismo democrático/autonomia, defesa, libertação, criação de novas estruturas na sociedade e manifestações públicas.

Entre a população, o autor encontrou poucas pessoas que expressaram uma grande expectativa com os EUA. Rojava não pode absolutamente ser considerada com Başur. O silêncio dos Estados Unidos e da OTAN quando o exército iraquiano atacou Kirkuk após o referendo em Başur em 25 de setembro de 2017 confirmou que é necessária uma abordagem crítica sobre essa relação.

Os esforços para construir comunas em todo o território nunca cessaram após o início da cooperação militar com os EUA; Em vez disso, o número de comunas dobrou. Também continuou a criação de cooperativas; hoje existem poucas centenas de cooperativas. A economia democrático-comunal continua a ser desenvolvida e progride através do convencimento. A crítica à modernidade capitalista e à mentalidade capitalista em 2017 foi ainda mais forte do que em maio de 2014, quando o autor viajou pela primeira vez para Rojava.

Nas discussões com os membros do YPG e do YPJ, não houve supervalorização das relações com os EUA. Na verdade isso quase não era objeto de discussão, caso o autor não perguntasse. Foi afirmado várias vezes no Norte da Síria que a cooperação tem uma série de vantagens, como o acesso a maior número e tipos de equipamentos e armas militares, mas que é preciso enfatizar que o ser humano é sempre a arma mais forte em uma guerra.

Um membro do YPG com relações diretas com comandantes em todas as áreas, informou que os militares dos EUA nunca tentaram impor algo diretamente ou intervir na vida ou no modelo político-social-econômico. Ele acrescentou que as SDF e a DFNS nunca aceitariam qualquer tipo de intervenção nas próprias políticas internas o que os EUA estão bem cientes disso. Em seguida informou que em cada reunião com os EUA os membros das SDF estavam sempre preparados e faziam propostas para novas estratégias e operações de libertação. Muito antes de qualquer cidade com a área circundante ter sido libertada, a DFNS preparou um conselho civil composto por pessoas da região local. Segundo ele, a delegação dos EUA não poderia dizer nada mais do que concordar. No final de 2016, os militares dos EUA queriam encontrar a coordenação do Conselho Civil de Minbic e ver com seus próprios olhos como isso funciona. Dito isso, devemos nos lembrar que em cada país ocupado pelos EUA, uma espécie de governo nacional /civil foi instalado, mas quase todos falharam, particularmente no Iraque e no Afeganistão.

No final da conversa, o membro do YPG enfatizou que eles se organizam de modo que estejam preparados para o fim da cooperação militar com o exército dos EUA a qualquer momento. Segundo ele, a cooperação tem algumas vantagens importantes, mas também traz riscos. Particularmente o risco de se acostumarem com o apoio dos EUA ao longo do tempo, e isso precisa ser discutido permanentemente, e ao qual o YPG precisa tomar medidas. Outro desafio é que, devido à presença dos EUA na Síria, as disputas com o regime sírio não devem acabar em uma grande guerra porque a DFNS quer chegar a um acordo mútuo e respeitoso com o regime Ba’ath. A resposta à pergunta se a coordenação das SDF não teme que a cooperação possa mudar o interesse a médio prazo e a visão política dos combatentes das SDF foi muito interessante: “Acreditamos que temos um forte projeto político com o Confederalismo Democrático, que é uma ferramenta inspiradora para nós. Que tipo de ideias nos oferecem os Estados Unidos ou outros estados? Temos uma democracia mais forte, direta e inclusiva e uma liberdade de gênero em rápido desenvolvimento. O mais importante, temos a visão para uma nova vida das pessoas da região maior. O que os estados capitalistas têm é dinheiro, armas e democracia em crise estrutural. Nada mais”.

Outro aspecto da discussão é que o número de internacionalistas (pessoas de diferentes partes do mundo que se juntam à revolução) se manteve alto em 2016 e 2017. Particularmente os jovens sentem o espírito revolucionário e querem fazer parte da fase de construção ou defesa e querem entender o processo. O autor pôde falar com dezenas dessas pessoas, principalmente da Europa ou da América do Norte. Todas elas tiveram uma visão positiva sobre o desenvolvimento no Norte da Síria e queriam ficar mais tempo. Houve algumas exceções: o autor conheceu um pequeno número de homens com idade entre 45 e 55 anos que estavam saindo de Rojava porque não conseguiam lutar muito no campo de batalha. Eles disseram que vieram apenas para lutar contra o EI e nada mais.

Os internacionalistas em Rojava foram atraídos pela maneira  como as pessoas se organizam, como discutem e como elas compartilham entre si o que têm. Mais adiante, eles querem entender quais são as principais discussões e os principais valores revolucionários. O objetivo é entender o que esse movimento revolucionário conseguiu reviver ou desenvolver que outros movimentos revolucionários não conseguiram. Ou, em outras palavras: o que eles podem aprender com esta revolução, a mais inspiradora do século 21?

Os internacionalistas não consideram a cooperação militar entre SDF e EUA como um obstáculo para estarem comprometidos no Norte da Síria. Devemos levar em conta que existem várias centenas de internacionalistas, não incluindo os árabes, turcos e outras pessoas do Oriente Médio. Esse fato deve levar à reflexão quem consideram a cooperação militar entre as SDF e a liderança global liderada pelos Estados Unidos como traição e não veem todos os outros desenvolvimentos revolucionários e sociais profundos no Norte da Síria.

Resumo e Discussão

Em 2014 a cooperação militar entre as SDF e os EUA liderou a coalizão global anti-ISIS contra o EI que teve início porque praticamente não havia outra alternativa para ambos os lados. Considerando seus antecedentes, é uma cooperação paradoxal. Muito provavelmente não terminará imediatamente após a derrota total do EI na Síria, como as declarações dos EUA e das SDF implicam; mas devido a uma série de fatores, é difícil prever quanto tempo e de que forma pode continuar. A cooperação militar não é política e é muito frágil. Enquanto cooperam com sucesso contra o EI, há tensões entre os dois lados. No entanto as condições os obrigaram a continuar. Como na Síria o fim da guerra está se aproximando e diferentes níveis de negociações se iniciaram, provavelmente a cooperação continuará durante esse processo que pode levar anos. A DFNS / SDF têm grande interesse em conseguir um acordo com o regime de Ba’ath com base na ampla democratização da Síria e na aceitação da DFNS, o que tornaria a cooperação militar com os EUA completamente desnecessária.

No entanto, existem dois riscos na cooperação militar em curso com os EUA. Em primeiro lugar, se os EUA acabarem com a cooperação militar sem qualquer acordo de paz para a Síria, deixaria o território controlado pelas SDF mais vulnerável para grandes ataques militares do exército turco e do regime sírio; mas isso não deve acontecer. Isso significaria uma intensificação de todo o conflito sírio com resultado incerto. Uma outra possibilidade seria a cooperação contínua de longo prazo resultar em uma dependência da DFNS/SDF aos EUA devido à deterioração das condições para o Norte da Síria sem tempo hábil para a DFNS tomar as medidas certas para evitar essa condição. O resultado seria aceitar a agenda política dos EUA. Mas até agora não há sinal de que os EUA tenham desenvolvido qualquer predominância nessa cooperação.

Uma abordagem usada para evitar a dependência dos EUA é, a partir da experiência em solo no Norte da Síria, deixar claro para toda a sociedade sobre os riscos da cooperação militar com os EUA. Ambos os revolucionários civis e militares são conscientes disso e fazem com que grande parte da população entenda os lados positivos e negativos, confie na própria força para continuar seu trabalho político na mesma intensidade e não fique “desapontada” quando a cooperação terminar.

Outro mecanismo contra uma dependência dos EUA é se beneficiar das contradições de todos os poderes envolvidos na guerra síria. Aqui, um foco é manter relações com a Rússia, que está interessada em ter relações com os curdos nos estados da Síria e do Iraque a fim de criar espaço para seus próprios interesses a longo prazo. Há ainda as relações com o Estado Sírio, mas elas não são estáveis e, de tempo em tempo, tem momentos críticos.

Graças à “diplomacia revolucionária”, que faz concessões ao próprio núcleo revolucionário, foi possível que a KFM sobrevivesse dentro da guerra síria e desenvolvesse aos poucos um novo modelo político, primeiro em Rojava e depois em outras partes do Norte da Síria, reverberando para pessoas progressistas em todo o mundo. A diplomacia revolucionária inclui também uma avaliação permanente sobre os riscos futuros, bem como iniciativas para atuar nessas cooperações políticas e militares.

Outro mecanismo importante – e claro, também um princípio – é desenvolver a solidariedade internacional com a revolução de Rojava e, de forma mais ampla, com a KFM, a maior força revolucionária no Oriente Médio. Uma das frentes estão os vários internacionalistas em Rojava que têm o papel histórico de transferir a revolução para seus países, outra frente é o trabalho político contínuo a nível internacional. A resistência em Kobane estimulou uma grande solidariedade em todo o mundo, mas não é suficientemente forte para dar grande visibilidade a nível internacional. A solidariedade internacional não deve ser subestimada à medida que as forças antirrevolucionárias fazem lobby contra a revolução em todas as etapas. Apenas uma forte solidariedade internacional – também no Oriente Médio – tornará os revolucionários menos dependentes de cooperações militares como com os EUA.

Cada dia que passa aumenta a adesão de mais pessoas na Síria à DFNS e ao conceito político de uma nação com Confederalismo Democrático. Quanto mais a revolução viver, mais sírios farão parte da mudança revolucionária e da sua possibilidade de sobreviver no inferno entre os estados-nações e as forças fascistas do Oriente Médio.

Se a revolução de Rojava falhar, provavelmente representaria um revés para as forças democráticas e revolucionárias no Curdistão, na Síria e também no Oriente Médio ao longo de décadas, afetando negativamente a política em todo o mundo. A sobrevivência e o desenvolvimento do processo revolucionário, ou seja, de uma nova perspectiva democrática, tem o grande potencial para mudar as mentalidades de dezenas de milhões de pessoas no Oriente Médio.

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