sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Guiné-Bissau | Greve dos meios de comunicação social públicos com fim à vista


À DW África, Sabino Santos, do SINJOTECS, diz que houve progressos nas reuniões desta quinta-feira (09.08) com o Executivo. O acordo entre ambos deverá ser assinado e depois desconvocada a paralisação.

Os funcionários da rádio, televisão e agência noticiosa da Guiné-Bissau iniciaram, na passada segunda-feira (06.08), mais uma greve, desta feita de cinco dias. Já em julho, esta classe levou a cabo uma paralisação de três dias.

Em entrevista á DW África, Sabino Santos, presidente da comissão negocial do Sindicato dos Jornalistas e Técnicos da Comunicação Social da Guiné-Bissau (SINJOTECS) explica que as reivindicações destes profissionais são as mesmas de sempre, "não são novas”. E constam de um acordo assinado há vários anos e que o Governo nunca cumpriu. Entre os 17 pontos deste documento estão o pagamento de subsídios e melhorias de condições de trabalho.

No decorrer desta semana, os sindicatos apontaram ainda o dedo ao Governo por este ter colocado polícias no centro emissor de Nhacra, local onde se encontram, além de emissores da rádio e televisão da Guiné-Bissau, os equipamentos da RDP, RTP e Rádio França Internacional. E acusaram-no de estar a "amedrontar” os profissionais da classe.

Esta quinta-feira (09.08), e depois de três reuniões, sindicatos e Governo parecem te chegado a acordo com o Executivo a ceder em relação a alguns aspetos, nomeadamente, "à melhoria de condições de trabalho", com a "compra de viaturas" para os diferentes órgãos, instalação "de uma linha de internet" na agência noticiosa, e pagamento de subsídios. Sabino Santos mostrou-se "esperançoso" na assinatura deste acordo até sexta-feira (10.08). A informação que lhe foi passada, acrescenta, é que "o despacho do Primeiro-Ministro é de carácter de urgência".

DW África: O SINJOTECS iniciou, esta segunda-feira, uma greve de cinco dias, depois de, no mês passado, ter também levado a cabo uma paralisação de três dias. Quais as vossas reivindicações?

Sabino Santos (SS): Os sindicatos estão praticamente a exigir o cumprimento dos acordos alcançados com o patronato há dois, três, quatro anos. Neste acordo constam exigência de pagamentos de alguns subsídios, criação de condições de trabalho e outras reivindicações que não foram cumpridas até hoje.

DW África: Foram alcançados avanços com o Governo desde a última paralisação?

SS: Penso que, a partir de hoje, podemos dizer que se deu algum passo. Basta dizer que hoje tivemos três encontros. Nas duas primeiras paralisações, houve apenas um encontro [com o executivo] e não tivemos qualquer solução. Não posso dizer que há solução em relação àquilo que os sindicatos estão a exigir, mas há luz verde. Houve um engajamento por parte do Governo, do Ministério da Comunicação Social, da Primatura e do Secretário de Estado do Orçamento. Ficaram as promessas em como algumas reivindicações que estão por fazer serão atendidas a curto prazo. Não podemos dizer que há entendimento porque ainda não assinámos, mas posso dizer que houve, de facto, progressos à volta desta negociações.

DW África: Em que pontos houve entendimento?

SS: Por exemplo, no que diz respeito à criação de condições de trabalho, compra de viaturas para a agência noticiosa da Guiné-Bissau e para o jornal estatal, [instalação de] equipamento de agência, como uma linha de internet, a curto prazo, e pagamento de alguns subsídios. Não posso garantir que seja ainda esta semana ou já no início da próxima semana mas, na minha presença, o secretário de Estado do Orçamento informou-nos que, em conjunto com o ministro da Comunicação Social, reunirão para se tratar deste assunto o mais breve possível. Disseram mesmo que o despacho do primeiro-ministro é de caráter de urgência.

DW África: Portanto, a greve terminará amanhã?

SS: Vai depender do conteúdo do acordo. Em princípio tudo aquilo que nós inventariámos aqui como ideias vai ser transferido para o papel, que depois assinaremos. Vamos ver o que constará na proposta deste acordo. Só vamos falar na desconvocação ou na descontinuidade da greve a partir da assinatura do acordo, que pode acontecer entre hoje e amanhã.

DW África: Num comunicado enviado às redações, o Sindicato disse que o Executivo estaria a tentar "amedrontar" os trabalhadores. Este foi também um dos pontos discutidos com o Governo?

SS: Sim, relativamente a este assunto as interpretações são [diferentes] de cada lado. Nós mantemos esta visão de que retirar as pessoas dos gabinetes, colocar agentes de polícia nos centros e fazer circular abaixo assinados para convocação de assembleia geral [dos órgãos] são estratégias de amedrontar os sindicalistas. Sobre este assunto não ficou nenhuma garantia, mas o Primeiro-ministro ao falar desse assunto também mostrou o seu ponto de vista. [Disse] que o que é património do Estado tem de ser preservado, isto relativamente à colocação dos agentes da polícia no centro emissor. Sobre a retirada de gabinetes ao Sindicato não fez qualquer comentário. A nossa interpretação é esta: o que aconteceu ao longo desta greve foi uma estratégia de amedrontar os sindicatos, mas não vão conseguir porque estamos habituados a viver com isso, vamos continuar a fazer as nossas denúncias e a exigir ao patronato que cumpra com as suas obrigações.

DW África: O Sindicato está então com esperança de que haverá avanços a partir de amanhã…

SS: Sim, para ser honesto digo que sim. Estamos esperançosos que haverá um consenso capaz de fazer a desconvocação ou suspensão da greve. Neste momento, quase toda a gente está mobilizada para isso - fazer com que a greve não tenha lugar.

DW África: Entretanto, e ainda antes destas negociações, o Sindicato deu conta de que iria entregar um novo pré-aviso para uma greve de dez dias. Como sobrevive um país sem acesso a informação durante todo este tempo?

SS: É uma questão que se colocaria aos nossos governantes: como é que você é dirigente de um país e deixa o país sem informação pública? Claro que os órgãos privados estão a funcionar, mas estamos a falar da informação pública, que o governo devia dar a qualquer cidadão e não está a dar. O que está a acontecer demonstra o quão está desprezado o setor da comunicação social na Guiné-Bissau. Tudo aquilo que os trabalhadores estão a reivindicar é o cumprimento dos compromissos assumidos, não há nenhuma inovação nas reivindicações. Por isso, apelamos ao Governo para que cumpra sob pena de correr o risco da sociedade ficar sem informação pública.

Raquel Loureiro | Deutsche Welle

Tribunal da CEDEAO condena Guiné-Bissau a indemnizar familiares de "Nino" Vieira


Tribunal de Justiça da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) condenou a Guiné-Bissau a pagar uma indemnização à família do antigo Presidente "Nino" Vieira.

Numa publicação nas redes sociais, a Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH) refere que o "Tribunal de Justiça da CEDEAO condenou a 24 de maio de 2018 o Estado da Guiné-Bissau a pagar uma indemnização de 40 milhões de francos cfa [cerca de 61 mil euros] a uma parte da família do malogrado João Bernardo 'Nino' Vieira".

O antigo Presidente guineense João Bernardo "Nino" Vieira foi assassinado a 02 de março de 2009, horas depois de o chefe das Forças Armadas do país, general Tagmé Na Waie, ter sido morto numa explosão, ocorrida no Estado-Maior. Até hoje, ninguém foi condenado pelo assassínio dos dois homens.

"Independentemente de eventuais erros ou vícios deste processo, trata-se de um aviso sério ao Estado guineense sobre as suas responsabilidades no combate à impunidade", sublinha a Liga Guineense dos Direitos Humanos.

Justiça guineense criticada pela LGDH

Na publicação, a organização não-governamental refere também que é "inaceitável" que nove anos depois dos "acontecimentos macabros", a justiça guineense não tenha identificadoos atores "morais e materiais".

No final de dezembro de 2017, o Procurador-Geral da República da Guiné-Bissau, Bacari Biai, mandou arquivar o processo de investigações ao assassínio do antigo Presidente, em obediência a uma ordem judicial.

Segundo Bacari Biai, o processo foi arquivado porque o Supremo Tribunal de Justiça (que também tem funções de Tribunal Constitucional) mandou que seis depois do início de qualquer investigação em curso no Ministério Público ou há uma acusação ou o processo é arquivado.

Em outubro de 2017, a antiga mulher de 'Nino' Vieira, Nazaré Vieira, disse, em entrevista, que tinha exigido um julgamento para explicar as circunstâncias da morte do marido e que tinha apresentado uma queixa no Tribunal de Justiça da CEDEAO.

Agência Lusa, ar | em Deutsche Welle

Na foto: Nino Vieira

ANGOLA E AS INQUIETAÇÕES ESSENCIAIS ENTRE A CIVILIZAÇÃO E A BARBÁRIE!...

Martinho Júnior | Luanda 

Sob o olhar silencioso de Lenin, a República Popular de Angola preconizava, por via dum só povo e duma só nação, o socialismo para Angola, daí o papel das gloriosas FAPLA, que conjuntamente com a SEGURANÇA DO ESTADO e a ORGANIZAÇÃO DE DEFESA POPULAR de então, face ao colonialismo, ao “apartheid” e às suas sequelas, (quantas delas se estenderam por longos processos de assimilação em função do poder dominante do império da hegemonia unipolar),  foram heroicamente os instrumentos do poder do estado angolano!...

Sob o olhar silencioso dos factores de domínio do império da hegemonia unipolar que confluíram a 31 de Maio de 1991 para BICESSE após o colapso dos aliados naturais de Angola (à excepção da heroica e revolucionária Cuba), no rescaldo contemporâneo do Exercício Alcora mantido em segredo até Setembro de 2016 pelo poder do “spinolismo” que tão marcantemente imbuiu e doutrinou o “arco da Governação” em Portugal, foi desencadeada a ofensiva do capitalismo neoliberal (e prova disso é o choque da "guerra os diamantes de sangue" protagonizado por Savimbi entre 1992 e 2002), pelo que as FAA, enquanto instrumento de poder de estado, passaram a assumir um compromisso que se pode em nome da vida salvar com o aprofundamento da paz (enunciada por José Eduardo dos Santos), da democracia, da longa luta contra o subdesenvolvimento e da justiça social (entre outros objectivos)!...

Por isso hoje e amanhã com João Lourenço, é tão importante manter acesa a chama da memória e dos ensinamentos de António Agostinho Neto, em prol da cultura inteligente e segura da independência, da soberania e de lógica com sentido de vida que deve corresponder, com amor, patriotismo e dignidade, aos anseios mais legítimos do povo angolano e dos povos de todo o mundo, à felicidade e ao esforço consciente e crítico a fim de preservar a espécie, respeitando o tão frágil equilíbrio que o planeta, como dádiva essencial, a todos nos oferece!...

“Com a força do passado e do presente, construamos um futuro melhor!”

Martinho Júnior - Luanda, 6 de Agosto de 2018

Imagem: Símbolo do próximo Congresso Extraordinário do MPLA, a realizar a 7 de Setembro de 2018.

Obras chinesas em Angola são sinónimo de má qualidade


A qualidade das obras executadas por empresas chinesas em Angola deixa muito a desejar. Estradas, hospitais e casas apresentam muitos problemas em pouco tempo de duração. Falta fiscalização e a corrupção continua.

Com o fim da guerra em 2002, Angola solicitou uma linha de crédito à China avaliada em cerca de 60 mil milhões de dólares para a reconstrução nacional. Dívida que tem sido paga com petróleo angolano.

Para a construção de infraestruturas sociais, a mão de obra, as empresas e algum material vieram do gigante asiático. "A matriz chinesa é comunista e não prima pela qualidade, mas pela satisfação das necessidades de todos. A construção obedeceu a uma regra no sentido de construir quantidade. E quando construímos em quantidade, o preço é baixo e a qualidade também é menor", explica David Kissadila, especialista em políticas públicas.

As linhas rodoviárias e ferroviárias construídas pelas empresas chinesas em Angola, apesar de permitirem a circulação de pessoas em bens, são de péssima qualidade, comenta o politólogo João Locombo.

"Só demonstra que o processo de fiscalização das obras públicas levado a cabo até então foi um processo falhado. Isso engloba não só as habitações como as próprias estradas", destaca.

"Temos vindo a ver a necessidade de se reconstruir de dois em dois anos a mesma estrada em que ontem se gastou milhões e milhões e nem sequer tem cinco anos de existência", afirma o especialista.

Não faltam exemplos de má construção

As centralidades do Sequele e do Kilamba, em Luanda, apresentam problemas de infiltração de água, deficiência das redes técnicas e fissuras. A estrada que liga Luanda ao Huambo é outro dos exemplos do mau trabalho efetuado pelos chineses.

O Hospital Geral de Luanda teve de ser demolido em 2010, apenas quatro anos depois da sua inauguração. Também as linhas férreas construídas têm baixa taxa de operacionalidade.

Davida Kissadila diz que os efeitos da má qualidade das obras já se sentem - basta ver as várias reportagens que têm sido feitas sobre as centralidades. "Os materiais utilizados não são de primeira linha em termos de industrialização. As reparações e as manutenções são constantes porque o material utilizado não é de grande qualidade. Vemos isso nas fechaduras, nos mosaicos, nas paredes", explica.

O analista aponta também a corrupção como estando na base da fraca qualidade das obras. "Todos se aproveitam dos negócios do Estado para se enriquecer", lembra. "Aqui legalizou-se os 10% dos contratos das empreitadas. Quer dizer que quando uma empresa assinava um contrato de investimento tinha a obrigação de devolver mais 10% ao Estado".

Manuel Luamba (Luanda) | Deutsche Welle

Na foto: Centralidade do Kilamba, em Luanda

Angola | Autores de rombo financeiro serão responsabilizados?


Inspeção-Geral da Administração do Estado de Angola descobriu um buraco financeiro de mais de 100 milhões de dólares no Ministério das Obras Públicas. Analistas pedem responsabilização dos autores.

A Inspeção-Geral da Administração do Estado (IGAE) revelou que, entre 2007 e 2014, o Ministério das Obras Públicas não justificou despesas no valor de 115 milhões de dólares. Na altura, o titular da pasta era Higino Carneiro, atual deputado do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA, no poder).

A promoção de 14 funcionários que não reuniam os requisitos legais para ocupar os cargos, bem como o pagamento de despesas de viaturas a pessoas estranhas ao serviço figuram na lista de gastos não justificados.

"E quando pedimos o contraditório, o ministro na altura disse que não tinha tempo para dar justificações", contou o diretor do gabinete de inspeção da IGAE, Tomás Gabriel, citado pela agência noticiosa Lusa.

Ministério Público "obrigado" a investigar

Ouvido pela DW, o jurista Albano Pedro, entende que, face a esta denúncia pública, a Procuradoria-Geral da República de Angola tem o dever de investigar o caso.

"O Ministério Público está obrigado a investigar, tendo em conta que se trata de fundos públicos, património público, bens públicos ou interesse público", afirma.

O jurista acredita que, apesar da imunidade como deputado, Higino Carneiro poderá ser chamado a prestar contas na Justiça. Mas tudo depende do Parlamento angolano: "É claro que a responsabilização é possível, mas mediante certos procedimentos que obrigam à retirada de imunidades. Desde que a Assembleia Nacional entenda que pode retirar as imunidades para que ele seja julgado, será julgado."

Caso único?

Além disso, Albano Pedro desconfia que o Tribunal de Contas tenha também uma palavra a dizer sobre o caso: "Esse rombo financeiro ter-se-á dado com o conhecimento implícito, por assim dizer, do Tribunal de Contas, porque todas as despesas públicas devidamente cabimentadas devem sempre ter um visto do Tribunal de Contas no processo de execução, mesmo a fiscalização destas despesas", explica o advogado.

Cláudio Fortuna, investigador da Universidade Católica de Angola, teme, porém, que este não seja um caso isolado: "Não é a primeira vez que nós ouvimos, pelo menos à boca pequena, que há buracos financeiros ou gestão danosa em grande parte das instituições públicas. Estamos com esta falta de capital porque houve gestão danosa. Espero que, num futuro próximo, situações do género sejam banidas", comenta.

Manuel Luamba (Luanda), Agência Lusa | em Deutsche Welle

Brasil | O sarau na Porto Alegre de outrora

“Poética noite de sarau lua cheia comparece com sua poesia.“  (Daniel Brito)


O sarau, que chegou ao Brasil em 1808, com a corte portuguesa, constituiu-se numa das formas de lazer da elite porto-alegrense. Em seu conhecido romance A Moreninha (1844), Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) narra este evento de cunho artístico e social, celebrado entre amigos. O sarau assumiria um caráter popular, somente no século 20, após os anos 40.

Nos saraus da antiga Porto Alegre, sonetos eram recitados, ouvia-se música e, aos convidados ofereciam-se chá, licor, biscoitos e doces. Criado pelo italiano Bartolomeo Cristofori (1655-1731), o piano era a joia da casa. Nele se tocavam valsas, havaneiras, shotings, czardas, polcas e o velho minueto. Enquanto os pares dançavam, em nome da moral familiar, mães e avós ficavam com olhos fixos nas moças e nos rapazes. Havia também os jogos de prendas e adivinhações.

A diversão à noite, nas primeiras décadas do século 19, limitava-se a poucos espaços, pois a parca iluminação da Capital era motivo de medo e insegurança. Com exceção do sarau doméstico, havia locais considerados de “má fama”, exigindo discrição dos frequentadores, conforme nos narra a historiadora Núncia Santoro de Constantino (1944-2014) em seu artigo, "A Conquista do Tempo Noturno: Porto Alegre moderna“, publicado, em 1994, na revista Estudos Ibero-Americanos (PUCRS).   

Em 1834, duzentos lampiões a óleo de baleia passaram a iluminar as ruas da Capital. A utilização do querosene, em 1864, não mudou a rotina do porto-alegrense, habituado com o serviço de iluminação precário.

À noite, havia o toque de recolher, quando soavam os sinos da Igreja Matriz, pontualmente às 21 h no inverno e às 22 h no verão. Caso não houvesse o brilho da lua, a cidade ficava, ainda, mais escura. Sem uma autorização oficial, o cidadão não podia permanecer na rua.

Implantada a iluminação a gás (1874), a vida noturna do morador da Capital ficou mais atraente. O censo de 1872 registrou 43.988 habitantes, entre livres e escravos.

Após a proclamação da República (1889), os saraus se mantiveram em destaque na sociedade gaúcha. No seu livro “Reminiscências De Um Artista” (1961), José De Francesco nos informa de que, em Porto Alegre, essas reuniões, em 1901, ocorriam às quintas e aos sábados. Às 20h, a moça mais velha da família sentava-se ao piano e executava uma música, iniciando o sarau.

De acordo com Athos Damasceno Ferreira (1902-1975), em “Imagens Sentimentais da Cidade” (1940), o retorno à Capital gaúcha de jovens recém-formados fazia com que as mocinhas acordassem com expectativas quanto a um casamento promissor. O sarau era, com certeza, uma ocasião propícia para iniciar-se um namoro. Cadeiras de palhinha, o lustre de cristal, cortinas com laçarotes, além dos espelhos e os retratos de família, compunham o cenário de um antigo sarau. Preparado com esmero pelos anfitriões, na varanda havia uma mesa com diferentes tipos de doces, como o pão de ló, feito com ovos de pata, considerado uma deliciosa iguaria.

No início do século 20, se o piano ocupava o lugar de honra na casa, nas ruas se destacava o violão. Na Praça da Harmonia, à beira do Guaíba, atual Praça Brigadeiro Sampaio, os seresteiros dedilhavam seus violões.  O flautista brasileiro Carlos Poyares (1928-2004), na apresentação de seu disco Brasil, Seresta (1974), registrou que esse costume originou-se da Península Ibérica.

Devido a reclamações quanto ao barulho, Achyles Porto Alegre (1848-1926), em seu livro “Flores entre Ruínas” (1920), conta que, em Porto Alegre, as serenatas, nos primeiros anos da República Velha (1889-1930), foram proibidas por Barros Cassal (1858-1903). 

Ao iniciar o Ano Novo, o Porto Alegrense se encantou ao ver, na chaminé da Fiat Lux, o letreiro “Salve o século XX” iluminar-se com a eletricidade. Quando se acenderam as lâmpadas, o cidadão começou a vivenciar a modernidade da “Belle Époque gaúcha”.                                                                             
Publicado no Almanaque Gaúcho / Zero Hora  em 08-08-2018
      
*Pesquisador e Coordenador do setor de imprensa do Museu da Comunicação HJC


Imagens 
1-  Iluminação a gás - Imagens sentimentais da cidade (1940) / Athos Damasceno Ferreira    
2-  Journal des Dames et des Modes, Costumes Parisiens, 25 mars 1836 
3 -Ilustração/ O Século  06/01/1884 - Acervo Museu da Comunicação  HJC
4-  Fiat Lux / vista do Guaíba - 1900  Museu Joaquim Felizardo / Fototeca Sioma  Breitman 

Juristas internacionais denunciam injustiça e parcialidade contra Lula


Por meio de uma carta, grupo formado por renomados juristas da Espanha, França e Argentina expressa preocupação pelo andamento do processo. Documento será entregue a mandatários da França, Espanha e Portugal.

Dez juristas e advogados europeus e latino-americanos, entre eles o renomado ex-juiz espanhol Baltasar Garzón, denunciaram nesta quinta-feira o que chamam de irregularidades no julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva  e pediram que a lei seja respeitada "com rigor e independência".

Promovida pelo advogado francês William Bourdon, presidente e fundador da associação de proteção e defesa das vítimas de crimes econômicos Sherpa, a denúncia foi feita por meio de uma carta assinada em Paris e endereçada à presidente do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia, com cópias enviadas aos demais membros do STF e ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luiz Fux.

O documento, que também será encaminhado aos presidentes da França, Emmanuel Macron, e da Espanha, Pedro Sánchez, assim como ao primeiro-ministro de Portugal, Antonio Costa, expressa a preocupação dos juristas pela parcialidade do processo que levou o ex-presidente brasileiro à prisão e os obstáculos para a sua liberdade.

O grupo de juristas e advogados —entre os quais também se encontram Emilio García, presidente da Fundacção de Direitos Humanos Sur Argentina, e o presidente honorário da Liga de Direitos Humanos (LDH), Henri Leclerc— denunciou, por exemplo, a atitude do juiz federal Sérgio Moro ao autorizar a publicação na imprensa da gravação de uma conversa telefônica entre Lula e a ex-presidenta Dilma Rousseff.

No mesmo dia em que Lula foi anunciado como o novo ministro da Casa Civil do Governo de Rousseff, em 17 de março de 2016, Moro levantou o sigilo da investigação contra o ex-presidente e divulgou o diálogo em que ambos tratavam da posse dele no cargo. Caso assumisse, Lula não poderia ser preso porque a decisão teria sido tomada por um juiz de primeira instância e, como ministro, só o Supremo Tribunal Federal poderia mandar prendê-lo. A gravação teve imediato impacto político e contribuiu para insuflar ainda mais as manifestações de rua contra o ex-presidente.

Na carta, os juristas questionam o caráter "precipitado, injusto e parcial" do processo e afirmam estar preocupados com a "grave afronta aos direitos da defesa" de Lula, refletidas, por exemplo, no fato de que seus advogados foram submetidos à vigilância telefônica. Em sua opinião, essas "irregularidades e anomalias" não seriam alheias a "uma forte pressão da mídia, alimentada pelo jogo das ambições pessoais".

Garzón e seus colegas ressaltaram que seu apelo não tem a intenção levantar questões sobre a culpa ou inocência do ex-presidente, mas salientaram que o fato de o mundo estar passando por um período problemático, "quando não caótico", faz, na opinião deles, com que seja "ainda mais necessário que todos os princípios da legalidade sejam respeitados com rigor e independência". Por isso, exigem respeito por "todos esses princípios, amparando-os de qualquer estratégia", que busque impedir a aplicação imparcial da lei. 

Fonte: El Pais | em Portal Vermelho

Chovem entendidos de grandes incêndios em Portugal. Saberão o que é uma mangueira?


O Curto de hoje, por Cristina Figueiredo, do Expresso da Impresa do tio Balsemão, abre com as desgraças do mundo que a humanidade escolheu de alma e coração e teima em escavacar o planeta, o clima e quase tudo em que toca. Chama-se a isso as “alterações climáticas”, a Grande Mãe de Imensas Desgraças da Humanidade. Acontece um pouco (ou demasiado) por todo o mundo. Em Portugal também. Vê-se nos fogos monstruosos que ocorrem em Portugal. O ano passado com a marca negra e triste de Pedrógão e imediações. Este ano com o de Monchique, até agora sem vítimas mortais.

Vimos este ano, também no ano passado e noutros anos, que em Portugal chovem imensos entendidos nesta coisa de dominar e extinguir os fogos, os incêndios gigantescos. Pena que na maior parte dos casos só saibam debitar palavras e que nem numa mangueira para regar o pequeno jardim lá de casa saibam pegar, dar-lhe a pressão devida ou apontá-la para onde devem. Aliás, muito provavelmente nem têm um único metro de mangueira. Bem, mas vai daí, passeiam-se pela televisões, rádios e jornais a debitar palavras e opiniões de sabedoria de cordel. Neste caso contra os governantes, a Proteção Civil e os que mais se lembrarem. Na TVI ouviu-se uma verdadeira enxurrada de palavras em velocidade supersónica de uma jornalista-bombeira de sabedoria ímpar. Disse mal de tudo e de todos. E pronto. Grande jornalista, grande esclarecedora e formadora dos telespectadores. Como ela há-de haver por aí muitos mais. Pena que nem saibam pegar numa mangueira e que falem sem ter conhecimento do que não se vê nos fogos mas que está lá: a impotência perante os fenómenos naturais, a impotência e o fracasso dos pequeninos que somos, nós, os humanos. Adiante.

De teoria em teoria pegam-se nas palavras ditas por este e aquele e dá-se-lhe outro sentido. E blá-blá-blá. É muito triste o espetáculo dado a presenciar e escutar ou ler. Gente que se mostra pequena a esticar-se, a pôr-se em bicos dos pés. Continuem, que vão longe com tanta carga de mediocridade. Pior é que isso pega-se, contagiam a sociedade cada vez mais decadente e adversária dos valores que podem muito bem preservar e melhorar a vida humana neste planeta. Não assim. Não por acaso, planetáriamente, a desumanidade é crescente. Nacionalmente também.

Bom dia. A seguir o Curto do Expresso e um recado para o tio Balsemão: Por favor, pague melhor aos seus trabalhadores. No caso à vista já a seguir, aumente-os o suficiente para comprarem vedante para as frinchas das janelas, para que assim se concentrem  sem esforço, devidamente, quando estão a escrever em casa. Afinal estão a trabalhar para si, para nós também, caro tio Balsemão. Muito obrigado. 

Estão a ler e não perceberam... Já a seguir entenderão.

O Curto. Que não é só desgraças porque também contém referências boas. A melhor será o slogan do Expresso: "Liberdade para pensar". Primordial. Isso é como pão para a boca. Pois. (MM | PG)

Bom dia este é o seu Expresso Curto

"Pintou um clima". Mas esta "novela" não promete um final feliz

Cristina Figueiredo | Expresso

Às duas da manhã, o vento soprava tanto entre as frinchas das portadas das minhas janelas que me dificultava a concentração para continuar a escrever. Não fosse a casa ainda estar tão quente das temperaturas infernais de há uma semana e julgar-se-ia que era inverno. Pouco antes, a SIC passara imagens tão espectaculares quanto assustadoras de um tornado de fogo em Inglaterra - um fenómeno que já não é assim tão raro. Há notícia de cheias em França e na India (causaram 20 mortos e milhares de desalojados). Na Califórnia continua a lavrar um incêndio de proporções bíblicas (considerado já o mais grave na história daquele Estado norte-americado) e na Nova Gales do Sul, "celeiro" da Austrália, há registo de uma seca nunca vista: sem água, o país está à beira de ficar também sem pão. Por cá, uma semana depois, o fogo em Monchique (que consumiu mais de 26 mil hectares e já foi classificado como o maior fogo europeu do ano) está finalmente dominado.

A responsabilidade última de tudo isto é do clima, ou melhor, das "condições meteorológicas excepcionais", como diria o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, que ontem deu uma entrevista à TVI. Tem razão. Sim, eu sei, somos tentados a interpretar a afirmação do ministro como alijar de responsabilidades num processo onde, apesar de tudo (e este apesar não é pouco: apesar da imensa área ardida e da perda de muitas habitações, não houve vítimas mortais), continuou a haver falhas na prevenção, falhas no combate e... falhas na comunicação. E a propósito destas últimas, o gabinete do primeiro-ministro veio assegurar, em comunicado enviado às redações ontem ao final da tarde que, quando disse que "Monchique foi a excepção que confirmou o sucesso da operação de combate aos incêndios", António Costa não estava a desdramatizar o que se estava a passar na serra algarvia. As suas palavras terão sido, lê-se, "descontextualizadas e deturpadas". Eu diria que foram, apenas, má-escolhidas.

Mas volto propositadamente ao clima (e à "sua" culpa). Domingos Xavier Viegas, que coordenou a equipa de investigadores que elaborou o relatório sobre os incêndios de Pedrogão Grande, escreveu ontem um artigo no Expresso Diário sobre as lições (algumas melhor aprendidas que outras) que 2017 nos deu. E concorda com Cabrita: "No processo de gestão dos incêndios florestais existem várias condicionantes que não dependem de nós, ou que, pelo menos, não se podem alterar por uma ação direta por parte das pessoas, como por exemplo as condições do clima e da meteorologia. O aquecimento global da atmosfera produz uma maior variabilidade nas condições meteorológicas. Em consequência disso temos maior probabilidade de registar temperaturas muito altas, como já estamos a verificar". Por sua vez, Filipe Duarte Santos, especialista em alterações climáticas, dá hoje uma entrevista ao "i" (link não disponível) onde alerta : "Se não se respeitar o acordo de Paris passaremos a ser parecidos com o norte de África".

Isto leva-me ao artigo da revista científica "Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA", de que o Expresso já deu notícia e que a minha homónima Cristina Peres aqui citou na quarta-feira. Nele se dá conta de um estudo segundo o qual, se não se trava rapidamente o aquecimento global, o planeta vai tornar-se numa estufa, com consequências devastadoras (de que o fim da Humanidade não é de excluir). Todos (a começar pelos responsáveis políticos) o devíamos ler, e com aquela atenção que o ritmo acelerado do scroll nem sempre proporciona. Acrescento este do The Guardian, já com algumas semanas, onde James Hansen, antigo cientista da NASA que há 30 anos alerta para o aquecimento global, critica o facto de o poder político estar a falhar "miseravelmente" no combate ao problema.

E pergunto ao primeiro-ministro e ao ministro da Administração Interna, e ao do Ambiente e ao da Economia e ao secretário de Estado da Energia: estamos mesmos a fazer tudo o que podemos? Por exemplo: numa altura em que a necessidade de arrepiar caminho já é inquestionável e em que se sabe que é preciso alterar comportamentos, faz sentido que Portugal continue a apostar nos combustíveis fósseis e autorize a prospeção para uma eventual exploração de petróleo?

OUTRAS NOTÍCIAS, CÁ DENTRO...

Nem de propósito, o Movimento Algarve Livre de Petróleo (MALP) organiza uma caminhada contra a exploração de petróleo no Algarve e contra o furo de petróleo de Aljezur. A partida é às 09h00, na praia de Vale de Lobo, e a chegada está prevista para as 11h00, na Praia do Gigi (Quinta do Lago), com a leitura de uma carta aberta ao Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa não estará lá (só deve chegar ao seu habitual toldo de férias durante o fim-de-semana), mas já prometeu uma audiência ao movimento para amanhã, às 17h00, na sede da junta de freguesia de Almancil.

António Costa admite pensões mais favoráveis para as carreiras mais longas. As palavras não estarão certamente deturpadas nem descontextualizadas: é a manchete (neste momento que escrevo) do site do Expresso, a antecipar a entrevista do primeiro-ministro que será publicada este sábado no semanário. Prometem-se declarações do chefe do Governo sobre as próximas legislativas, os incêndios, a situação na Saúde, o caso Robles e a Procuradora-Geral da República.

Diz o Público que o "Estado entregou a americanos a coleção de arte do Novo Banco". Escreve a Cristina Ferreira que "depois de aplicar 3,9 mil milhões de euros no Novo Banco e de abrir a porta a injectar outro tanto, o Estado deixou para o fundo de investimento norte-americano Lone Star 50 milhões de euros em moedas raras, fotografias contemporâneas, pintura, mapas portulanos e livros quinhentistas". Somos um povo generoso.

Se é dos que já lhe estava a sentir a falta (não é o meu caso, confesso), pode respirar fundo: o campeonato nacional de futebol está de volta. Às 20h30 recomeça a 1ª Liga, com um jogo entre o Benfica e o Vitória de Guimarães ou entre um eterno candidato ao título e uma equipa promissora, na antevisão de Tiago Teixeira que pode ler (se for assinante) na edição de ontem do Expresso Diário. O analista conta-lhe tudo sobre "os candidatos crónicos, as equipas a seguir com atenção e os jogadores que vão surpreender na Liga 2018/19". E como uma boa notícia nunca vem só, esteja atento ao sorteio para a primeira eliminatória da Taça de Portugal: é às 15h00.

O futebol a começar, o ciclismo a acabar: é já no domingo que termina a Volta a Portugal em Bicicleta. Hoje corre-se a 8ª etapa, 147,6 km entre Barcelos e Braga.

...E LÁ FORA

No Iémen, um ataque liderado pela coligação militar saudita a um autocarro escolar provocou a morte de 29 crianças e ferimentos em mais 30. O secretário-geral da ONU, António Guterres, já anunciou querer uma investigação ao sucedido.

Nos EUA vai saber-se se o juiz federal de Seattle Robert Lasnik, que a 31 de julho suspendeu a autorização da Administração Trump para a divulgação de manuais de instruções que permitem a qualquer um imprimir armas em 3D, mantém a opinião. O juiz volta a analisar o tema na sequência de uma providência cautelar apresentada por procuradores-gerais de vários Estados norte-americanos e da capital.

No Brasil, realizou-se esta noite o primeiro debate televisivo para as presidenciais de outubro. Oito dos 13 candidatos ao Planalto discutiram ideias. Pode rever o debate aqui.

Teve início às 4h da manhã, e prolonga-se por 24 horas, a greve dos pilotos da Ryanair na Irlanda, na Suécia, na Bélgica e também na Alemanha. Os portugueses que andam em viagem pela Europa por estes dias (não hão-de ser poucos!) levam naturalmente por tabela com as consequências (atrasos, adiamentos e cancelamentos de voos) de mais um protesto dos funcionários desta companhia de aviação low cost, que reivindicam melhoria de salários e condições de trabalho.

Termina hoje o prazo para a oposição zimbabueana apresentar recurso ao Tribunal Constitucional do país a contestar os resultados das eleições presidenciais de 30 de julho.

AS MANCHETES DOS JORNAIS E REVISTAS

"Mulheres do Norte puxam pela subida do emprego" (Jornal de Notícias)
"Estado entregou a americanos coleção de arte do Novo Banco" (Público)
"Guerra ao plástico" (i)
"Novas pistolas: Exército bate com a porta à NATO e pede novo concurso" (Diário de Notícias)
"CP paga táxis para levar passageiros" (Correio da Manhã)
"Portagens descem sem acordo com concessionárias" (Jornal de Negócios)
"Lista negra de devedores ao fisco representa 2% do PIB" (Jornal Económico)
"Sobe o pano" (A Bola)
"Sturaro é leão" (Record)
"Maresa tem de dar provas" (O Jogo)

O QUE ANDO A LER 

Chegou-me às mãos na terça-feira. Ainda só li meia dúzia de páginas mas já deu para perceber que não descansarei antes de chegar ao fim, apesar de que "a história" é tudo menos fácil, ligeira ou "de verão". Chama-se "Le lambeau" (ainda não tem edição em português), palavra francesa com pelo menos três significados (como a editora faz questão de informar na contracapa, recorrendo ao Trésor de La Langue Française), o mais "poético" dos quais (para efeitos de título de um livro) será... "farrapo". O autor é Philippe Lançon, escritor e jornalista do Libération e do Charlie Hebdo, o semanário humorístico parisiense onde, a 7 de janeiro de 2015, os irmãos Kouachi entraram com espingardas, gritando "Alá é grande" e matando 12 pessoas. Lançon estava lá. Foi atingido no rosto (ficou sem mandíbula), esteve internado nove meses, sofreu 18 intervenções cirúrgicas. Deixou Paris, mudou-se para Roma e publicou em junho estas 500 páginas, que resultam numa espécie de relato, catarse ou mesmo exorcismo de alguém que, com legitimidade ímpar, foi verdadeiramente Charlie. Eu soube da obra (que já é um fenómeno editorial em França) ao ler, há algumas semanas, este artigo na revista semanal do El Pais. Como se retoma a vida de todos os dias depois de um acontecimento brutal assim? Não se retoma. Na entrevista ao diário madrileno (uma das poucas que deu desde o atentado), o jornalista francês explica(-se): "Regresso pouco a pouco, com distanciamento, a uma vida que já não é a mesma porque eu já não sou o mesmo".

A chegada do "Le lambeau" à minha mesa de cabeceira deixou em breve stand by as últimas páginas das memórias de Carmen Dolores, "Vozes dentro de mim". A atriz foi condecorada por Marcelo Rebelo de Sousa a 12 de julho com as insígnias de Grande-Oficial da Ordem do Mérito, por ocasião do seu 94º aniversário, no mesmo dia em que estreava no Teatro da Trindade, em Lisboa, a peça "Carmen", baseada precisamente neste livro (publicado em maio de 2017). Voltar a ver Carmen Dolores (afastou-se dos palcos em 2005) recordou-me o belo texto de Tiago Rodrigues, "Três dedos abaixo do joelho", uma peça engenhosamente construída a partir de excertos de relatórios da Censura (entre 1933 e 1974) e dos pedidos em vão de diretores de companhias (e Carmen, à época diretora do Teatro Moderno de Lisboa, foi dos mais insistentes) para levarem a cena determinados autores mal-quistos do regime. Daí à vontade de mergulhar nestas memórias demorou apenas o tempo de adquirir o livro, que se lê num instante. São recordações avulsas de uma outra época (de um outro mundo), escritas "ao correr da pena", por alguém que se confessa apaixonada pela "sonoridade das palavras", paixão com que qualquer jornalista se identifica.

E o Curto, que para não variar já vai longo, fica por aqui. Neste 10 de agosto, há 73 anos, depois dos ataques nucleares dos EUA às cidades de Hiroshima (a 6 de agosto) e Nagasáqui (a 9), o Japão rendia-se incondicionalmente, pondo fim à II Guerra Mundial. Hoje também, se fosse vivo, Jorge Amado faria 106 anos. No seu livro "O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, uma história de amor", há uma frase que lhe sugiro para o acompanhar na navegação pelos sítios que o mantêm bem informado: leve em linha de conta que todos "temos olhos de ver e olhos de não ver. Depende do estado do coração de cada um". Amanhã há Expresso nas bancas. Tenha um bom fim-de-semana.

Governo PSD/CDS-PP foi avisado que a CP não conseguia cumprir investimentos mínimos


Desde 2014 que a CP diz que o estrangulamento financeiro imposto pelos governos não permite «assegurar os seus investimentos». Empresa perdeu mais de 100 milhões em indemnizações compensatórias.

O primeiro alerta surge no relatório da empresa de 2014, em que a administração da CP afirma que, «na sequência da redução do valor de indemnizações compensatórias atribuídas, deixou de dispor de fundos suficientes para assegurar os seus investimentos».

O desinvestimento já se vinha sentido – no ano anterior a empresa dizia que só conseguiu cumprir «um nível mínimo de investimentos, essencial para manter a segurança do material circulante e das instalações», recorrendo às receitas próprias –, mas foi a partir do momento em que o Estado deixou de pagar pelo serviço público que a ruptura foi assumida.

A CP ainda espera ser ressarcida pelo período em que deixou de receber as indemnizações compensatórias a que tem direito por cumprir serviço público nos últimos quatro anos, que actualmente já vai em mais de 100 milhões de euros, assumindo um valor idêntico ao praticado até 2014 – pouco mais de 30 milhões por ano.

Quase uma década sem investimento na frota

De acordo com as contas da CP, o último ano em que houve investimentos significativos no material circulante foi 2009. A partir de 2010 e dos sucessivos pacotes de cortes e austeridade dos governos de José Sócrates (PS) e Passos Coelho (PSD/CDS-PP), os investimentos da CP foram remetidos aos mínimos, nunca tendo chegado aos 20 milhões de euros anuais desde então.

Mas, entre 2006 e 2009, mais de 100 milhões de euros do investimento da empresa na frota (cerca de 150 milhões) foram destinados à aquisição de material circulante para o transporte de mercadorias – para a CP Carga, que o anterior governo viria a privatizar seis anos depois, nas últimas semanas do seu mandato, por 53 milhões de euros: muito menos do que custaram as 25 locomotivas eléctricas que chegaram à CP Carga em 2009.

Actual Governo do PS não inverteu rumo

Nos últimos dois anos e meio, as promessas do Governo de investimento na ferrovia têm tido parcos reflexos nas contas da CP. A empresa tem registado níveis de investimento próximos do verificados nos anos anteriores – sempre abaixo dos 20 milhões de euros anuais – e mesmo muito abaixo do prometido pela tutela na discussão dos orçamentos do Estado.

No final de 2016, o ministro do Planeamento e Infraestruturas, Pedro Marques, prometia no Parlamento que no ano seguinte a CP teria mais de 50 milhões de euros para investir. De acordo com a Unidade Técnica de Apoio Orçamental, a execução não terá chegado a 30%. Para este ano, dos 44 milhões de euros orçamentados, a empresa só tinha de facto investido pouco mais de um décimo, cinco milhões, na primeira metade do ano.


Na foto: O governo do PSD e do CDS-PP sabia que o estrangulamento financeiro estava a impedir a CP de realizar os investimentos necessários | Créditos José Sena Goulão / Lusa

Alterações climáticas: e se tivermos já atingido um ponto de não retorno?


Ana Alexandra Gonçalves* | opinião

Imagine-se Lisboa sem a sua zona ribeirinha, consequência do aumento do nível médio do mar. Consegue-se imaginar? É difícil. O exemplo dado pelo jornal Público serve para ilustrar melhor aos leitores portugueses um cenário que segundo a revista científica PNAS pode muito bem se tornar real.

Recorde-se que a temperatura média da terra tem vindo a aumentar desde, pelo menos os últimos 35 anos, designadamente devido ao já tão conhecido aumento de concentração de dióxido de carbono que resulta da queima de combustíveis fósseis.

No sentido de evitar o pior cenário, praticamente todos os países do mundo chegaram ao Acordo de Paris que determinou que aquecimento global não pode chegar aos dois graus. Porém, o que os cientistas agora preconizam é que essa meta pode muito bem não ser suficiente para travar aquilo que será um verdadeiro cataclismo, uma fatalidade para a Terra: a subida de 5 a 6 graus da temperatura média que transformará o planeta numa estufa "com desertos e savanas em vez de florestas, fenómenos meteorológicos extremos" e a subida do nível médio do mar que "faria desaparecer muitas regiões costeiras incluindo a zona ribeirinha de Lisboa".

Segundo o mesmo artigo, os sistemas naturais que contribuem para travar o aquecimento global podem falhar precisamente com o aumento da temperatura da Terra que resultará na "inversão dessa função".

Da próxima vez que Trump afirmar que as alterações climáticas são uma invenção dos chineses ou que o Tratado de Paris não serve os interesses americanos, imaginem Lisboa sem a sua zona ribeirinha; imaginem a Terra transformada numa savana, com desertos e sem florestas; imaginem os piores fenómenos meteorológicos e lembrem-se que a ignorância aliada ao mais abjecto egoísmo tem um custo incomensurável. E se tivermos atingido já um ponto de não retorno?

*Ana Alexandra Gonçalves | Triunfo da Razão

(in)Seguranças em Portugal | No submundo dos músculos


Inês Cardoso | Jornal de Notícias | opinião

De tempos a tempos, quando há uma agressão ao estilo da que em novembro foi gravada no exterior da discoteca Urban Beach ou um processo judicial picante envolvendo clubes de futebol, acordamos para o submundo da segurança privada. Há mais de 55 mil vigilantes com cartão emitido, mas uma minoria de gente musculada e malformada basta para criar uma imagem de desconfiança quanto aos excessos e à falta de fiscalização da atividade.

A revisão da lei estava prometida há muito pelo Governo e traz novidades importantes. Desde logo, porque introduz o princípio de responsabilização dos proprietários dos estabelecimentos pelos atos cometidos por seguranças. Deixa de ser possível sacudir a água do capote, o que terá como consequência natural um maior cuidado na contratação e no acompanhamento dos funcionários.

Introduz-se a possibilidade de as autoridades acederem, em tempo real, a imagens de videovigilância em lojas, discotecas ou residências. Mas nem tudo é reforço da intervenção e fiscalização policial: os seguranças ganham poderes para fazer revistas com apalpação, ainda que mediante supervisão, em locais como estádios de futebol ou aeroportos. Em discotecas não - o que se percebe mas poderá ser um paradoxo num cenário como, por exemplo, de ataque terrorista.

Os princípios podem ser globalmente positivos, mas é no detalhe que se irá ver a sua coerência e operacionalização. As mudanças agora aprovadas em Conselho de Ministros são relativamente genéricas e apenas a regulamentação permitirá clarificar as vantagens e eventuais riscos. Já que a proposta legislativa está há tanto tempo a marinar, que ao menos valha a pena a espera. E, já agora, que depois haja recursos para a fiscalização preventiva da atividade. Antes de serem pisadas linhas vermelhas, e não depois.

* Subdiretora JN

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