segunda-feira, 13 de agosto de 2018

SOB O OLHAR SILENCIOSO DE ANTÓNIO AGOSTINHO NETO – I


Martinho Júnior | Luanda 
  
COMPASSO PRIMEIRO DE QUATRO PEQUENOS COMPASSOS DE DECIFRAGEM HISTÓRICA

Angola é fresca na sua independência de pouco mais de quatro décadas e também por causa disso, são imensos os desafios que há que enfrentar, devendo estar bem presentes os riscos deles decorrentes ou não, dos riscos que resultantes do passado e da globalização e as armadilhas que por razões sobretudo do estágio de subdesenvolvimento, há a desvendar e saber neutralizar.

Muitos desses manifestos desafios advêm de facto dum passado de trevas que não podem ser entendidas apenas por uma via de abordagem aos processos históricos dos últimos 500 anos, mas também por via duma abordagem antropológica que, no meu entender, deve ser feita com o sentido de avaliar quanto as culturas africanas em seu estágio de modestos garantes de vida e sobrevivência, foram vulneráveis aos impactos da colonização e o que a colonização fez para que essas culturas se tornassem ainda mais fragilizadas e vulneráveis, a ponto de as preparar para e prender aos poderosos factores exógenos sincronizados com a assimilação contemporânea que identifica o sufoco do opressivo neocolonialismo que recai sobre o continente.

Pela mesma razão o processo histórico após a independência deve ser abordado com esse padrão de consciência crítica: aos impactos forjados pelo colonialismo, pelo “apartheid” e por algumas das suas sequelas, seguiram-se outros impactos emanados pelo avassalador poder dominante, parte dos quais aproveitaram-se também das fragilidades e vulnerabilidades anteriores para, através dum mundo cada vez mais globalizado e em plena revolução de novas tecnologias, impor os vínculos históricos e culturais de domínio fluentes no hemisfério ocidental, eminentemente anglo-saxónicos, de carácter unipolar e capaz de instrumentalizar uma impetuosa corrente de vassalagens aptas às assimilações.

No presente, o estado traumático da sociedade angolana contemporânea, fornece mais dados a acrescentar sociologicamente, como também em relação ao que ao ambiente diz respeito, tendo em conta não só a inércia que advém do passado, mas também das assimetrias que se acentuaram com as guerras e da nocividade dos impactos produzidos a partir das correntes dominantes via choque e terapia neoliberal, que contribuíram para mais desarticulações, mais desequilíbrios, mais alienações e mais injustiças sociais, procurando apagar a memória histórica e impedir a fermentação duma geoestratégia para um desenvolvimento sustentável capaz de revitalizar o tecido humano e lançar uma perspectiva e projecção alternativa e renascentista sobre o povo angolano em todo o espaço nacional!

O pensamento elitista deixado como herança em África pelo império britânico, um dos autores e actores principais da Iª Revolução Industrial, em relação ao qual o génio imperialista de Cecil John Rhodes foi expoente e ao mesmo tempo ignição e mentor na África Austral, é parte integrante do esforço pelo domínio que derivou no surgimento da hegemonia unipolar e por essa razão histórica, cultural e económica do seu núcleo duro de poder, foi o seu “sargento-às-ordens”Barack Hussein Obama e não o Comandante Raul de Castro que foi convidado para as comemorações do 100º aniversário do nascimento de Nelson Mandela!

As elites sul-africanas demonstram assim sua insensibilidade para com os problemas de África, que foram aprofundados quando os Estados Unidos e seus aliados (entre eles a Grã-Bretanha e a França), atacaram a Líbia, assassinaram Kadafi e fizeram proliferar o caos e o terrorismo na Líbia e por todo o Sahel, o que justificou aos agressores aumentar a sua presença militar em toda essa imensa região, em nome dum “combate ao terrorismo” cujos mentores integram os fulcros de suas próprias alianças forjadas a partir dos expedientes dominantes indexados ao petrodólar!

Perdão algum em relação a qualquer elite é “assimilável”, se a prioridade deixar de ser a luta contra o subdesenvolvimento, pela justiça social e por um desenvolvimento sustentável que explicite em cada acto o imenso respeito devido à Mãe Terra, muito menos quando esse perdão conduza apenas à cosmética alienatória de disseminação de elites e deixe tudo o mais “para as urtigas” e para as “calendas gregas”, pondo em causa a lógica com sentido de vida, conforme aliás António Agostinho Neto também nos ensinou!

Ao fragilizarem-se as correntes socialistas, o poder da hegemonia unipolar nunca foi tão intenso, sufocante, multifuncionalmente dominante e opressor, por isso enviaram à África do Sul um dos seus “mestres” na persuasão, na alienação, na mentira, na proliferação do caos e do terrorismo e na guerra psicológica!

Face a essa provocação, há que inequivocamente saudar o socialismo de Cuba e da Venezuela, há que saudar suas dádivas heróicas, suas resistências lúcidas e suas vitórias vitais, sobretudo quando em acontecimentos como esse ligado ao sonante nome de Nelson Mandela, são preteridos os revolucionários para se fazerem prevalecer as marionetas do poder das bárbaras alienações, das ingerências grosseiras, do fomento do caos e do terrorismo e da contínua guerra psicológica movida contra as revoluções consequentes da América Latina, contra África e contra o resto da humanidade!

Mais do que suas inestimáveis provas de tão sensível vitalidade e amor, pela sua resistência à guerra psicológica constante que sobre essas revoluções foi transferida com todo o peso que dá continuidade ao que animou o império durante o que foi por si declarado como “Guerra Fria” e pelo que essas revoluções inspiram em termos de coerência, de dignidade, de solidariedade e de inteligência em relação a toda a humanidade, há que saudá-las, também por causa das disputas que Nelson Mandela provocou, provoca e continuará a provocar na sua deriva que, com ele em últimos anos de sua vida e depois de sua física morte, tanto se tem vindo a afastar da identidade para com os povos!


É evidente que toda essa saudável corrente revolucionária e civilizacional inspira tudo o que deve ser balanceado, sem por isso se perder de vista em África uma crucial questão de fundo:

Poderá uma cultura de libertação patriótica africana subsistir como civilização, quando tem de se haver contra um universo tão controverso de culturas, com algumas delas poderosa e barbaramente suas adversas, com algumas a imporem-se de forma multifuncionalmente opressora e dum modo não só persuasivo, utilizando o seu “soft power”, mas também fomentando por via de ingerências, vínculos e manipulações de toda a ordem, por via duma guerra psicológica só possível nos termos das novas tecnologias, lançar mão ao recurso “sistémico” de “cirúrgicas” acções militares e de inteligência?...

Poderá uma cultura de libertação patriótica africana transmitir-se de geração em geração, em ambientes globais, continentais, regionais e nacionais tão adversos e asfixiantes, quando o império da hegemonia unipolar ocupa e impõe um único espaço artificioso, como se África tivesse de ser digerida num enorme estômago nutrido de fluidos tão venenosos, nutrido das contraditórias manipulações fomentadas exclusivamente pelo seu áspero domínio?...

Poderá África, aquela África pobre mas respeitadora e seguidora do movimento de libertação, imunizar-se em relação aos cortantes punhais e aos sulfúricos venenos, que o império tece e procura a todo o transe perpetuar na digestão onde provoca os lucros de 1% dos que se impõem sobre o resto da humanidade?...

Até que ponto o corpo inerte de África estará tão flacidamente disponível para os abutres que continuamente o querem despedaçar, quando alguns dos filhos do seu próprio ventre, formatados pelas “filosofias” que se têm comprovadamente evidenciado como contranatura, se juntam como mercenários, de forma tão abjecta, ainda que por vezes “por portas e travessas”, a esse poder dominante do império da hegemonia unipolar?

Ao não se honrar o passado e a nossa história, ao não se evocarem a memória e os ensinamentos de António Agostinho Neto, ao se perder da clarividência socialista para se implantar a hipocrisia e o cinismo social-democrata, ou uma metamorfose elitista de última geração, quanto Angola, quanto África tem perdido de sua identidade, dignidade e coerência histórica e antropológica, quanto tem perdido de força anímica capaz de ampla mobilização, para levar por diante a longa luta contra o subdesenvolvimento?

Martinho Júnior - Luanda, 9 de Agosto de 2018

Fotos:
António Agostinho Neto, numa pausa durante a guerrilha, dedicando-se à leitura;
Conferência histórica alusiva aos 55 anos do MPLA, no dia 6 de Dezembro de 2011, foto tirada por mim nesse evento.

Luanda | "Zungueiras" sofrem violência por parte de agentes de fiscalização


Em Luanda, as vendedoras ambulantes, conhecidas como "zungueiras”, queixam-se de maus tratos por parte dos agentes da fiscalização, que lhe passam corridas e até as agridem. Ativista fala em Justiça desigual.

Luciana Nsumba é uma das muitas zungueiras que encontram nas ruas de Luanda o sustento dos filhos. Mas não é fácil garantir o pão durante o dia devido à ação dos agentes da fiscalização. Luciana Nsumba já chegou a ser presa algumas vezes.

"Já fui presa cerca de três vezes no bairro Uige e no São Paulo nas corridas. Na prisão, fica-se mesmo de castigo. Não se vai lá fora. Quando alguém vem te ver, eles dizem: ‘a fulana não está aqui'. E você fica mesmo ali, a sofrer, sem água e sem comida. Se eles quiserem, perguntam: ‘tens marido?'. Se disseres que tens, mandam chama-lo para ele pagar a multa de dez mil kwanzas [cerca de 33 euros]”, explicou à DW África.

Luciana Nsumba revelou ainda que muitas vezes as zungueiras são vítimas de agressão na rua e os seus produtos são levados pelos fiscais do Estado.

"Eles dão corrida, depois de te agarrar, e levam o negócio. Depois de ser levado o negócio, ainda te batem. Eles sabem que vão cobrar dinheiro para devolver o negócio, mas ainda te dão muitas voltas”, acrescentou.

Ser zungueira pode ser fatal

As corridas são constantes. Na tentativa de fugir dos fiscais, muitas vezes as zungueiras são atropeladas porque vendem os seus produtos à berma das estradas. Ainda na última quinta-feira (9.08) uma zungueira sobreviveu a um atropelamento no município de Viana, mas há situações em que acabam por morrer, denuncia a ativista Laurinda Gouveia.

"Muitas zungueiras ao vender e ao fugir dos fiscais atravessam as estradas e ao atravessar o carro bate-lhes e acabam por morrer. E outras morrem por espancamento”, conta Laurinda Gouveia.

Ainda assim, os fiscais não são responsabilizados. No entanto, o Tribunal Provincial de Luanda, condenou, no mês passado, a cidadã Maria Francisco Bento, de 45 anos, a cinco meses de prisão convertidos em multa por agredir um agente da fiscalização quando tentava remover a sua viatura mal estacionada na via pública.

Justiça não é igual para todos

Para Laurinda Gouveia, a "Justiça devia ser para todos” e que também devia haver responsabilização par os fiscais e o próprio Governo.

"Fazem isso porque o Governo acha que tem que manter a cidade limpa e manter a cidade limpa é combater as zungueiras ao invés de olhar para questões básicas. Elas só estão na rua porque vão buscar algumas coisas para comer”, defende Laurinda Gouveia. 

Manuel Luamba | Deutsche Welle

"Desobedeçamos à União Europeia!"

Deslocalizações, destruição metódica dos direitos sociais, incapacidade de proteger o ambiente, recusa da democracia... 

Após a adoção do Tratado de Lisboa em 2008, poderia acreditar-se que a União Europeia havia atingido o fundo do buraco liberal. Erro! Desde a crise financeira, que ela o cava! Até mesmo o ideal de solidariedade entre Estados voa em pedaços. Uma vaga de austeridade sem precedentes abate-se sobre a Europa, colocando o seu povo sob a tutela dos mercados financeiros.

Será preciso esperar que a extrema-direita venha colher os benefícios da incompetência das "elites" europeias convertidas ao ultraliberalismo? Certamente que não. A esquerda deve assumir a desobediência à ordem jurídica estabelecida pela União Europeia: não apenas quando se trata de cortar nos OGM ou aceitar migrantes sem documentos, mas também e em primeiro lugar quando é questão de concretamente sair do ultraliberalismo à maneira da União Europeia.

A quase totalidade das medidas propostas pela "verdadeira" esquerda é incompatível com o direito da União Europeia. Mas ninguém se atreve a dizer isso! Não faz sentido ficarmos indignados com as ameaças aos serviços públicos e ao programa do Conselho Nacional de Resistência se não quebrarmos este pacto de silêncio e não restaurarmos o primado do direito nacional sobre o direito comunitário. Sem desobediência europeia, não haverá nenhuma política ecológica ou social.

A escolha é simples: ou terá que se dissolver uma vez por todas a esquerda na Europa ou teremos que assumir a ruptura. E esta ruptura tem um nome: desobediência europeia!

O livro de Aurélien Bernier apresenta o debate proibido, mostrando que não nos levará ao apocalipse, mas a uma verdadeira revolução progressista através do voto. 

Ver também: 
  En finir avec l'Europe , Cédric Durand
  O euro e as mentiras , Jacques Sapir
  "O Euro é um cancro que corrói a Europa" , Jacques Sapir

O original encontra-se em www.legrandsoir.info/desobeissons-a-l-union-europeenne.html

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

Milhares protestam contra extrema direita em Washington


No aniversário de violenta marcha de supremacistas brancos em Charlottesville, manifestantes saem às ruas da capital aos gritos de "Voltem para casa, nazistas", em oposição a pequeno grupo de extremistas de direita.

Milhares de pessoas se reuniram em Washington neste domingo (12/08) em oposição a uma manifestação de supremacistas brancos, marcando o aniversário de um ano de uma marcha de extrema direita em Charlottesville, na Virgínia, que resultou em violência e na morte de uma mulher.

Os organizadores da marcha de extrema direita deste domingo esperavam reunir de 100 a 400 pessoas, segundo o pedido de autorização para realizar o evento enviado ao município, mas apenas cerca de 20 supremacistas brancos compareceram.

Para evitar confrontos, a polícia de Washington reservou um espaço cercado próximo à Casa Branca ao grupo de extrema direita. Por trás das barreiras, o grupo foi vaiado com gritos de "Voltem para casa, nazistas" e "Vergonha, vergonha, vergonha" por manifestantes que exibiam cartazes com mensagens como "Sem ódio, sem medo" ou "Defendamo-nos da supremacia branca". 

A manifestação de extrema direita teve início às 16h locais e terminou cerca de uma hora e meia depois, quando começou a chover forte.

Em 12 de agosto de 2017, centenas de supremacistas brancos – incluindo neonazistas, skinheads e membros do Ku Klux Klan – se reuniram em Charlottesville na marcha "Unite the Right", para protestar contra a decisão da cidade de remover uma estátua do general confederado Robert E. Lee de um parque.

A manifestação do ano passado – organizada por Jason Kessler, que também liderou a marcha deste domingo em Washington – resultou na morte por atropelamento de Heather Heyer, de 32 anos. O carro que atropelou Heyer era conduzido por um extremista de direita que investiu contra um grupo de manifestantes contra o racismo.

Uma manifestação contra o racismo e a supremacia branca também foi realizada por ativistas e estudantes em Charlottesville neste fim de semana. A mãe de Heyer visitou o local do ataque e afirmou que os Estados Unidos ainda precisam fazer muito para curar as feridas oriundas do racismo.

Os eventos foram, em geral, pacíficos, embora com momentos tensos, e fizeram parte de um programa de discursos, vigílias e marchas pelo aniversário da marcha de Charlottesville, um dos maiores encontros de supremacistas brancos e outros grupos de extrema direita em uma década no país. Uma pessoa foi presa em Washington, e quatro outras em Charlottesville.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que causou revolta no ano passado ao culpar ambos os lados pela violência, não estava em Washington neste ano, mas em seu clube de golfe em Nova Jersey.

Trump se manifestou no Twitter sobre o ocorrido há um ano, afirmando que condena todos os tipos de racismo e violência. "Os tumultos em Charlottesville há um ano resultaram em morte e divisão sem sentido. Precisamos nos unir como nação", escreveu.

PJ/dpa/lusa/ap | Deutsche Welle

Portugal | Asfaltar a CP


Há muitos anos que espero ver a CP a apanhar o comboio. Nesse dia que há-de trilhar caminho, picaremos bilhete num país com uma política de transportes que invista na ferrovia como força nuclear da inclusão geográfica das suas gentes, assumindo redes de circulação integradas.

Miguel Guedes* | opinião

Os Comboios de Portugal coram de vergonha perante a degradação e o desinvestimento, a anos-luz da filigrana das redes de transportes urbanos. Com ou sem demissões no Conselho de Administração, continuaremos a ser testemunhas a ver andar a carruagem, viajantes "wagon-lit" sem romantismo, dormentes pela interminável e dolorosa viagem. A perplexidade com que assistimos à degradação da CP e da qualidade do serviço que presta aos seus clientes atingiu máximos históricos neste verão de 2018. Mas não é indignação de primeira viagem. A deterioração, sentida há uma década de ferrugem, é visível a olho nu. Há limites. Mesmo para os indefectíveis de um "Trabant" a rolar em estradas albanesas.

A solução milagrosa poderia ser uma adaptação da receita que Cavaco Silva, plantador de alcatrão, prescreveu na década de oitenta. Asfaltar os carris. Bastaria uma ínfima parte do investimento que alcatroou Portugal entre 1986 e 2004 (de 196 km para mais de 2000 km de auto-estradas em 18 anos) ou uma quota-parte do investimento em estradas paralelamente construídas para, consulta do viajante, escoar mais parcerias do que pessoas em viagem. Se o assunto fosse alcatrão, não haveria apeadeiros para Portugal e os seus comboios. Há assuntos em que somos especialistas. Outros há, à beira da ruptura, que ignoramos olimpicamente até à última estação.

Ricardo Araújo Pereira vociferava "segue, segue, segue por uma estrada de espiche" num dos mais emblemáticos sketches do "Gato Fedorento". Manuel João Vieira, crónico candidato à Presidência da República, queria alcatifar Portugal. Plantar a ideia de que a CP é só mais uma empresa pública a ser mal gerida é coisa para fazer km de caminho. Aproveitando a falta de ar condicionado do momento e a supressão da paciência, não faltará quem clame pela entrega da empresa ao sector privado. E a liberalização do longo curso está já ali. Enquanto outros países investem na sua rede ferroviária como prioridade, não faltará quem procure a salvação noutros carris, invertendo o jogo, afastando ferozmente a CP do sector público enquanto se comovem sentimentalmente com o regresso dos comboios ao postal turístico da Linha do Tua.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

Artigo publicado no DN a 8 de agosto de 2018

* em Esquerda.net

Portugal | Serviço Militar Obrigatório, um tema recorrente


Volta não volta, o Serviço Militar Obrigatório (SMO) salta para a ribalta, envolto num manto de esperança da resolução do problema do recrutamento que atinge, de forma preocupante, as Forças Armadas.

AbrilAbril | editorial

O tema merece hoje (10.8) chamada de primeira página no jornal Público, cuja notícia, entre outros aspectos, nos dá conta de opiniões sobre a matéria de praticamente todo o espectro partidário parlamentar. Retirando o BE, que não quer entrar nesta discussão, e o líder da JS, que parece não saber exactamente do que fala, representantes dos restantes partidos abordaram a questão, embora sobre ângulos diversos.

O PCP, único partido que votou contra o fim do SMO, assume a sua defesa, não num quadro de simples reposição do modelo extinto, mas antes sustentando a sua concretização em estudos sobre as novas realidades e as suas necessidades. Também o deputado do PSD ouvido assume, sem equívocos, a defesa do SMO, embora clarifique que o faz a título pessoal já que, segundo o próprio, o PSD não tem, neste momento opinião oficial. Quanto ao CDS, para já, sem se mostrar contra o SMO, prefere esperar para ver.

O mesmo parece acontecer com o PS, cuja expectativa está sobretudo no que farão outros países envolvidos nas estruturas da NATO e, eventualmente, nas orientações mais ou menos formais que venham desta estrutura político-militar. Aliás, importa recordar que tal posicionamento não é novo, já que PS e PSD promoveram a extinção do SMO, não por pressão das suas juventudes partidárias como procuraram fazer crer, mas no rescaldo de decisões e orientações supranacionais.

Assim, de forma recorrente, os dois maiores partidos não assumem oficialmente opinião sobre a matéria, independentemente dos seus dirigentes e deputados, de forma avulsa e ao sabor dos interesses do momento, lançarem ou alimentarem o tema, dizendo sempre qualquer coisinha.

Mas, a notícia fala-nos também de afirmações do ministro da Defesa Nacional, durante uma visita ao contingente de fuzileiros portugueses em missão da NATO na Lituânia, considerando que o regresso do SMO é uma ideia interessante, mas que só deve ser discutida depois de 2019.

Ora, estando o Governo a preparar para as próximas semanas a aprovação de legislação no sentido de consagrar novos incentivos e um contrato de longa duração para o regime de voluntariado e de contrato, a ideia de nos próximos anos se poder abrir a discussão em torno do SMO é admitir, desde já, o fracasso das medidas que estão a ser anunciadas. Fracasso que, aliás, diversos observadores não rejeitam, por um lado, face à perspectiva de se manterem as baixas remunerações para os militares em regime de voluntariado e de contrato, e por outro, devido ao facto de o regime de incentivos criado em 2000, na sequência do fim do SMO, ser alvo de contestação por não ter sido integralmente cumprido.

A necessária discussão em torno do Serviço Militar Obrigatório deverá ter lugar, não devido a qualquer pressão da envolvente internacional, tenha ela maior carácter atlantista ou europeísta, ou por causa da falta de bombeiros e de nadadores-salvadores, mas sim no quadro de um debate mais amplo sobre as Forças Armadas e o seu papel enquanto instrumento de soberania nacional e factor para o reforço da coesão nacional.

O SOL FALOU COM A SONDA DA NASA, SEM NOVIDADES

A NASA, essa grande empresa que lança aquelas coisas parecidas com pepinos todos direitinhos para o espaço. Levam fogachos no trazeiro que até encandeiam os mirones e a fumaça é por demais. Arre, cofe, cofe. Uma intoxicação daquelas que apela à corrida a botijas de oxigénio. Livra.

Assim mesmo lá foi esse tal de pepino fumaroso e fogacheiro lançado para uma visita ao sol e o que mais der na gana aos que o conduzem. Que o programaram, melhor dizendo.

Até dá para imaginar a coisa que se separou do pepino, a sonda, a falar com o sol e questionar: Oh sol, mas porque andas a causar cancros na pele aos do planeta de onde venho? E porque é que andas a incendiar as florestas como nunca antes o fizeste?

O sol, sorrindo depois de um bafo incandescente, lá respondeu com maus modos: Porque esses habitantes do teu planeta de origem, chamada Terra, os terráqueos, autointitulados humanos, são umas bestas enormes que desprezam a natureza, o planeta e aquilo que o rodeia e lhe pode prestar estabilidade e a consequente vida causando desiquilibrios e as mais diversas e gravosas alterações climáticas. Tudo porque são fanáticos do deus dinheiro, do lucro, da ganância do desprezo pela vida da humanidade. Uns desumanos, que são imensos mas centrados nuns quantos que vivem para a exploração do homem pelo homem como não existe memória nos milhões de anos que todo este sistema planetário tem.

E mais não disse o sol. A sonda afastou-se, para trazer o recado à Terra. Estúpida, como se o que disse o sol fora novidade.

E pronto, o Curto do Expresso está já a seguir. Tem sol, sonda, Picasso, deuses pfss... e amor. Ai amor. Porra. Onde? Onde? Isso é só uma palavra das bonitinhas mas que dá em nada na maior parte dos casos, das vezes, das circunstâncias, etc., etc.

Evidentemente que para os crentes disso, do amor, esta afirmação é reprovável. Desculpem lá, mas como disse o Albino: tratem-nos bem, deixem-se de tretas e de tantas hipocrisias.

Basta. O Curto, por Joana. Em cima a cultura, a arte de Picasso. Bom. Muito bom. Joana também traça a lauda sobre isso.

Bom dia, boas festas aos animais de quatro patas que passarem por si. Os de duas patas são sempre uma grande incógnita. (MM | PG)

Bom dia este é o seu Expresso Curto

Sol, Deus e o amor

Joana Pereira Bastos | Expresso

Bom dia,

Vivemos um momento histórico. Partiu há 24 horas do centro espacial Kennedy, no Cabo Canaveral (Flórida), o mais rápido objeto voador de todos os tempos, que atingirá quase 700 mil quilómetros por hora. À quarta tentativa, a NASA conseguiu finalmente lançar a sonda Parker, que se aproximará do Solmais do que qualquer outra até hoje. Com uma duração prevista de sete anos, a missão ajudará a desvendar o mistério da coroa, a camada externa da atmosfera solar.

Até agora, a Ciência não conseguiu compreender o funcionamento da coroa, nem a razão pela qual é centenas de vezes mais quente do que a superfície do Sol. Na coroa, as temperaturas ultrapassam um milhão de graus Celsius, enquanto a superfície subjacente está a cerca de 6 mil.

Batizada em homenagem ao astrofísico Eugene Parker, de 91 anos, que dedicou grande parte da vida ao estudo dos ventos solares e que ontem assistiu ao histórico lançamento, a sonda está protegida por um escudo térmico de carbono, que lhe permitirá “tocar” o Sol sem o desfecho trágico de Ícaro.

É uma das mais complexas missões espaciais de sempre, que resulta de cerca de seis décadas de investigação e requer 55 vezes mais energia do que chegar até Marte. Ao longo dos mais de 2500 dias de viagem, a sonda Parker fará 24 órbitas em torno do astro, aproximando-se mais em cada uma, de forma a reunir amostras do vento solar e a obter imagens nunca antes vistas da estrela que dá luz e vida à Terra. Um vídeo do New York Times explica tudo, em pouco menos de quatro minutos.

Visto como um Deus na generalidade das religiões politeístas, a adoração do Sol é tão antiga como a própria história da Humanidade. As principais festas pagãs em honra do Sol viriam a ser convertidas em celebrações cristãs - como o Natal, que coincide com o Solstício de Inverno. E já no século passado, foi também o Sol que levou a Igreja Católica a “validar” as aparições de Fátima.

A 13 de Maio de 1917, os pastorinhos relataram que a Virgem Maria lhes apareceu no cimo de uma azinheira, prometendo um milagre para o dia 13 de outubro desse ano, na Cova da Iria, de modo a que todos acreditassem nas suas aparições. No dia prometido, milhares de pessoas dizem ter presenciado um “milagre do Sol”, testemunhando que, depois de uma chuva torrencial, este irrompeu entre as nuvens, movendo-se em ziguezagues pelo céu e mudando de cor.

O acontecimento, que diferentes teorias atribuem a um fenómeno astronómico ou meteorológico, à sugestão coletiva ou à ilusão de ótica, foi oficialmente aceite como milagre pela Igreja Católica em 1930. Todos os anos milhares de pessoas rumam ao Santuário de Fátima. Hoje mesmo assinala-se a Peregrinação Internacional do Migrante, a que leva mais fieis a Fátima, a seguir ao 13 de Maio e ao 13 de outubro. As cerimónias serão presididas pelo cardeal cabo-verdiano D. Arlindo Gomes Furtado.

Longe vai o tempo em que a religião e a ciência ensaiaram a destruição mútua. No século do retorno das religiões, indiferente à disputa, o Sol continua a chegar para todos.

OUTRAS NOTÍCIAS

Não sendo o Sol, Nelson Évora brilhou ontem à noite, ao vencer a medalha de ouro nos Campeonatos Europeus de Berlim, com um triplo salto de 17,10 metros. Aos 34 anos, e depois de duas lesões graves, o atleta do Sporting regressou em grande, conseguindo o único título que lhe faltava e que vem juntar-se aos conquistados em 2007, nos Mundiais, e 2008, nos Jogos Olímpicos. A Tribuna Expresso conta-lhe o que leva um atleta a quem iam amputando uma perna a regressar ao sítio onde os ossos se desfizeram, uma e outra vez, e a testar os limites do seu corpo, em busca do salto perfeito.

No futebol, o Sporting venceu em Moreira de Cónegos não com um triplo salto, mas com uma tripla de golos. Começou a perder (com um golo bem cedo de Heriberto), mas deu a volta e ganhou na primeira jornada da I Liga, por 3-1. Valeram os regressados: Bas Dost marcou dois (um de penálti) e Bruno Fernandes marcou um e assistiu outro. O português fez questão de festejar o golo tapando as orelhas com as mãos, como quem diz que não quer ouvir as críticas dos adeptos mais desconfiados depois do conturbado verão do clube, que procura ainda um presidente.

Com a vitória, o Sporting, dos também regressados Sousa Cintra e José Peseiro, juntou-se a Porto, Feirense, Setúbal, Benfica, Braga, Belenenses e Marítimo, que venceram todos na primeira jornada do campeonato que arrancou na sexta-feira.

O campeonato italiano, esse, ainda não começou, mas Cristiano Ronaldo, por muitos considerado o astro Rei do futebol, teve a sua estreia ontem com a camisola da Juventus, num jogo de pré-temporada que opôs a equipa principal à equipa B da formação de Turim. Ronaldo fez aquilo a que já nos habituou. Veja o golo aqui

No ciclismo, o espanhol Raúl Alarcón (W52-FC Porto) conquistou ontem a segunda Volta a Portugal, ao ser terceiro na 10.ª e última etapa, um contrarrelógio em Fafe, ganho pelo conterrâneo Vicente García de Mateos (Aviludo-Louletano).

Ainda no desporto, o piloto português Miguel Oliveira foi segundo no Grande Prémio de Motociclismo da Áustria e perdeu a liderança do Mundial de Moto2 para o italiano Francesco Bagnaia. A luta entre os dois promete ser taco a taco até ao final.

Um violento acidente matou ontem duas crianças, de 10 e 13 anos, numa colisão entre três viaturas na EN 334, perto de Mira (Coimbra). Uma ultrapassagem mal calculada deverá ter estado na origem do sinistro, que fez ainda oito feridos, um em estado grave.

Depois de Monchique, um incêndio deflagrou ontem no concelho da Sertã (Castelo Branco). Combatido por cerca de 250 bombeiros, o fogo começou pouco depois das 14h, mas foi dado como dominado a meio da tarde.

Começa hoje a greve geral dos enfermeiros, que se prolonga até sexta-feira contra o impasse na negociação do acordo coletivo de trabalho. Também os trabalhadores portuários iniciam esta segunda-feira uma greve ao trabalho suplementar que afetará alguns dos principais portos do país até 10 de setembro.

Dois reclusos da prisão da Carregueira, em Sintra, tentaram fugir ontem à tarde, mas a fuga não durou muito.

A rede Multibanco teve falhas técnicas em toda a rede nacional esta noite, desde as 22h30, impedindo levantamentos de dinheiro e transferências, mas o problema ficou resolvidomenos de duas horas depois.

Lá fora, um estudo revela que a maioria dos círculos eleitorais do Reino Unido está contra o Brexit, o que sugere uma mudança na opinião dos britânicos.

A lira turca desvalorizou mais 9% esta segunda-feira, na sequência do agravamento da tensão diplomática entre a Turquia e os Estados Unidos. O euro também saiu perdedor e os investidores temem que esta crise financeira possa atingir os mercados europeus.

Em Espanha, mais de 250 pessoas ficaram feridas, das quais cinco com gravidade, em resultado do colapso de uma plataforma durante o festival O'Marisquiño, que decorre no passeio marítimo de Vigo.

Depois de em junho ter estado vários dias à deriva à espera de luz verde para atracar na Europa com centenas de migrantes a bordo, o navio "Aquarius" está novamente à procura de um porto. Desta vez, transporta 141 pessoas resgatadas do mar na sexta-feira, perto da costa líbia.

O escritor britânico de origem caribenha V.S. Naipaul, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 2001, morreu este fim de semana, aos 85 anos. Autor de mais de 30 livros, entre novelas, ensaios e diários de viagem, Naipul era um crítico fervoroso do colonialismo e viajou um pouco por todo o mundo, para tentar compreendê-lo "como ele é”.

Se não passou esta última noite a olhar para o céu, saiba que perdeu a chuva de estrelas Perseidas que todos os anos acontece no mês de agosto e que esta madrugada atingiu o pico. Para o ano, há mais.


MANCHETES

Público: “Há quase 2000 processos disciplinares contra médicos por decidir

Jornal de Notícias: "Benfica suspeito de prometer 10 mil euros para vencer F.C. Porto"

Correio da Manhã: "Crianças morrem a caminho da praia"

I: “Câmaras gastam milhões em concertos de verão”

Diário de Notícias: “Segurança Social usa precários para ajudar a despachar pedidos de pensões

Negócios: “Novos registos de alojamento local duplicam em Lisboa

FRASES

“Quando comecei, há muitos anos, era esse o meu objetivo: fazer história”
Nelson Évora, após vencer a medalha de ouro nos Europeus de Berlim

“Deus logo dirá se sim ou não”
Marcelo Rebelo de Sousa, sobre uma eventual recandidatura a Belém, nas Presidenciais de 2021

O QUE ANDO A LER 

Dora Maar - Paris in the time of Man Ray, Jean Cocteau and Picasso, de Louise Baring

Para muitos, Dora Maar é um nome quase desconhecido. Afotógrafa de origem croata, foi a quinta das sete mulheres de Picasso e manteve com o maior artista da modernidade uma intensa e conturbada relação amorosa entre 1936 e 1944. Dotada de um talento promissor, elogiado por nomes maiores da fotografia como Man Ray ou Cartier-Bresson, Dora chegou a ter fotomontagens suas exibidas, em 1936, na Exposição Internacional do Surrealismo, em Londres, ao lado de trabalhos de artistas como Salvador Dali, Max Ernst ou René Magritte. São dela alguns dos mais conhecidos retratos de Picasso e foi também ela que fotografou o processo de criação de “Guernica”. Mas Dora acabaria por abandonar a carreira, consumida pelo ciúme e destruída pelo fim do amor.

O livro, sem edição em Português, conta a triste história de Dora Maar e reúne dezenas das suas melhores fotografias, num trabalho que Cartier-Bresson disse ter sempre algo de “desafiante e misterioso”.

"Em que é que eu ousei embarcar ao entrar na tua vida?", perguntou Dora a Picasso, num telegrama de 12 de agosto de 1936. Menos de um ano depois, numa carta de 18 de abril de 1937, Dora escreveu-lhe uma das mais pungentes e auto-destrutivas declarações de amor: "Se todos os cães que alguma vez existiram fossem colocados juntos numa planície, com um único homem, um único dono, que força teria esse grande amor, a bondade e a submissão de todos esses cães ao seu dono. Amo-te e é assim que quero amar-te".

Para Dora, Picasso era o Sol. E a vida apagou-se quando ele deixou de a iluminar, trocando-a por uma nova musa, a mais jovem Françoise Gilot. Dora praticamente deixou de fotografar. O último trabalho que vendeu foi um retrato a cores de Picasso que faria a capa da revista Time em fevereiro de 1939. Quando a artista morreu, em 1997, poucas fotografias com a sua assinatura sobravam em museus e coleções particulares.

Morreu sozinha e na miséria, a poucos meses de completar 90 anos, num velho apartamento junto ao Sena, rodeada de centenas de quadros, retratos, fotografias e cartas de Picasso, que sempre recusou vender. Após a sua morte, realizaram-se seis leilões milionários com o tesouro que Maar guardou em silêncio durante mais de meio século.

Picasso imortalizou-a em dezenas de quadros, como “Dora e o Minotauro”, em que o pintor se auto-retrata como um violento animal que se impõe sobre o corpo dela. Os mais famosos são, no entanto, o conjunto de obras que batizou com o título trágico “La Femme qui Pleure”. “Nunca consegui pintar um retrato de Dora a sorrir. Para mim, ela é a mulher que chora”, confessou um dia o pintor espanhol.

A devoção a Picasso destruiu-a.

O mistério do amor pode ser tão insondável como o mistério do Sol.

Por hoje é tudo. Este Expresso Curto, que já vai bastante longo, fica por aqui. Desejo-lhe uma boa semana de trabalho ou umas ótimas férias, se for o caso. Pode sempre acompanhar toda a atualidade em www.expresso.pt e no Expresso Diário, às 18h.

Cabo Verde | “Posso ser candidato a Presidente da República” - José Maria Neves


Foi Primeiro-Ministro durante 15 anos, saiu do poder em 2016 mas nunca deixou de estar no centro do debate político. De passagem por Tenerife, onde participou numa conferência sobre os oito anos da Cimeira de Mindelo, organizada pelo Campus África, José Maria Neves falou em exclusivo ao Expresso das Ilhas e à Rádio Morabeza. Está tudo nestas páginas: TACV, evacuações médicas, SOFA, liderança do PAICV e a “provável” candidatura presidencial.

Oito anos depois da Conferência de Mindelo, em que ponto está a Macaronésia?

Foi um processo muito complexo. Primeiro, porque Cabo Verde é um Estado soberano e os outros três arquipélagos são regiões ultra­periféricas da União Europeia. Por outro lado, há questões que têm a ver com o financiamento do desenvolvimento desses arquipélagos. Enquanto os três arquipélagos, regiões autónomas, têm um forte financiamento da União Europeia, via Fundo de Desenvolvimento Regional, Cabo Verde tem um outro mecanismo de relacionamento, apesar da Parceria Especial, que é o Fundo Europeu de Desenvolvimento. Os recursos são desproporcionais e era necessário construir esta ideia, a nível da União Europeia. Nós discutimos muito esta questão com a Comissão Europeia, designadamente com o comissario do Desen­volvimento e com o então presidente da Comissão, Durão Barroso, discutimos também com o actual presi­dente, na altura Primeiro-Ministro de Luxemburgo, Juncker, e discutimos com os dois chefes de Governo, de Portugal e Espanha, Sócrates e Zapatero. A partir daí, foi possível viabilizar a ideia de uma cimeira entre os quatro arquipélagos. Criá­mos a Conferência dos Arquipélagos da Macaronésia, para irmos trabalhando a ideia e, gradualmente, transformarmos esta platafor­ma de cooperação em região, para se poder beneficiar de outros envelopes de financia­mento.

As metas preconizadas foram cumpridas?

Há alguns ganhos. Há mais intercâmbio a nível cultural e do turismo, há mais ligações aéreas entre as ilhas. Temos mais intercâmbio a nível do ensino superior e da ciência.

Vamos analisar alguns temas da actualidade nacional e começamos pela TACV. Depois de mais um momento conturbado na companhia aérea, que ficou novamente sem aviões, como é que olha para o processo de privatização em curso?

A TACV nunca foi um dossier simples. Quando assumi o Governo, estava numa situação de falência técnica, com graves problemas de funcionamento. Tivemos que tomar algumas medidas.

O actual Governo desmente essa versão e diz que a situação da TACV era, à data, muito mais favorável.

Não, não era, até porque nem tinha conselho de administração. Tinha uma comissão provisória de gestão e a situação era extraordinariamente difícil. Aliás, ao assumir, em 2001, os trabalhadores fizeram uma carta a apresentar a situação catastrófica em que estava a empresa, com dívidas avultadíssimas à ASA. Tivemos que resolver essa situação, num primeiro momento, transferindo património à ASA. Imediatamente aprovámos um decreto-lei de privatização, mas aconteceu o 11 de Setembro. Procurámos muitas parcerias que não foram possíveis, porque a TACV, além de ser uma pequena companhia, não tinha activos quer permitissem uma forte parceria. Tivemos que fazer um longo trabalho, tivemos que modernizar todo o sistema de aeronáutica civil, liberalizámos o transporte aéreo, já estávamos a trabalhar a problemática dos céus abertos, a questão dos voos charter, conseguimos a categoria 1 no domínio da aviação civil.

Mas nada disso impediu que a TACV continuasse com os seus problemas...

Sim. Passámos a ter também certificado ICAO, mas continuámos a ter problemas.

O que falhou?

Nos finais da primeira década de 2000, contratámos a Sterling para fazer a reestruturação da TACV. Sintomaticamente, a empresa apresentou a proposta que agora veio a ser apresentada [do hub]. Na altura, fizemos a análise e chegámos à conclusão que, com a construção dos aeroportos de São Vicente, Boa Vista e Praia, com quatro aeroportos internacionais, já não fazia sentido falar de hub no Sal. A nossa ideia era falar de Cabo Verde como um hub e continuar a fazer os voos para os 4 aeroportos internacionais. Fala-se em problemas de gestão, mas a TACV tem muitos aspectos intangíveis que não são contabilizados.

Por exemplo?

A TACV fazia voos para todas as ilhas, mesmo em rotas deficitárias, garantia o transporte ou escoamento dos passageiros quando havia grandes actividades culturais ou económicas numa das ilhas e fazia a evacuação dos doentes em todas as circunstâncias, fazia o transporte de cargas. Muitas vezes, não era compensada por estes serviços, que eram custos mas também ganhos intangíveis para a sociedade cabo-verdiana.

Pensa que o Estado se demitiu, durante esse período, de algumas das suas responsabilidades em relação à TACV, nomeadamente ao não subsidiar as rotas que não eram rentáveis?

Foi isso que aconteceu. Houve alguns problemas de gestão mas houve também uma, não diria demissão, mas uma não compensação da empresa.

Porquê?

Acho que foi toda uma inércia, que já vinha de há muitos anos. Desde sempre a TACV não foi compensada por esses serviços. O que é que fizemos? Fizemos os estudos e eram essas as conclusões. Em Fevereiro de 2016, nós aprovámos uma resolução a dizer o seguinte: as rotas deficitárias serão todas subsidiadas. Fomos mais longe, para garantir uma maior integração das ilhas, e aprovámos uma outra proposta no sentido de os transportes aéreos inter-ilhas serem subsidiados. Para além da subsidiação das rotas deficitárias, subsidiar os transportes inter-ilhas através do Fundo do Turismo. Os passageiros pagariam metade do custo e a outra metade seria compensada com o Fundo do Turismo, para garantir maior mobilidade entre as ilhas. Tínhamos vários cenários sobre a mesa. O cenário mais provável era a criação da TACV Inter-ilhas, TACV Internacional, uma empresa de manutenção e uma empresa de handling. A empresa de handling foi criada e transferida para a ASA para pagar a globalidade das dívidas e para garantir a competitividade do sector. Esses eram os cenários e todos esses estudos foram deixados ao actual Governo. Estávamos num ano pré-eleitoral e essas medidas exigem um grande consenso.

Então pergunto-lhe por que razão foi necessário esperar pelas vésperas das eleições para propor essas medidas?

A situação dos TACV sempre foi uma situação difícil. Num primeiro momento, estávamos à procura de parceiros e não conseguimos esses parceiros para implementar essas medidas.
Foram sendo experimentadas diversas soluções.

Diferentes soluções. Tínhamos a Sterling, não deu certo, não por causa das soluções ou das medidas, mas pela excessiva politização do processo, não só da oposição, mas também dentro da própria maioria.

Havia resistências do próprio PAICV?

Basta ver os jornais da época, as entrevistas de vários deputados e dirigentes do PAICV que eram contra aquele processo de reestruturação.

Nalgum momento esteve em cima da mesa fechar a companhia?

Houve várias propostas neste sentido mas eu sempre disse que não, porque considerava que a TACV era um grande activo do nosso país.

As empresas que há pouco identificou, que resultariam da reestruturação da TACV, teriam capital privado?

Numa parceria entre o sector público e o sector privado. Eu nunca considerei, apesar de ter sido posto sobre a mesa, o monopólio privado nos transportes inter-ilhas. Os transportes inter-ilhas e regionais são estratégicos para o futuro de Cabo Verde. Considero que o maior erro do actual Governo foi ter desmantelado a TACV inter-ilhas e ter permitido o monopólio [privado] nos transportes aéreos inter-ilhas. Se analisarmos toda a situação dos transportes, podemos considerar que vivemos piores momentos do que antes. A TACV era um dossier complexo, mas acho que deveria haver maior ponderação e maior consistência nas políticas públicas.

A questão das evacuações médicas. O actual Governo deveria ter negociado melhor com a Binter?

Claro. Havia um sistema de evacuação montado. A TACV era obrigada a fazer as evacuações. Não havendo o avião da Guarda Costeira, assumia imediatamente a evacuação. Em caso de falha da TACV e da Guarda Costeira, a Cabo Verde Express entrava imediatamente. Havia um sistema mínimo. Tentámos outras soluções, designadamente helicópteros, mas não conseguimos por causa dos custos iniciais e da manutenção.

Porque é que os helicópteros nunca chegaram?

Eu nunca disse que os helicópteros estavam prestes a chegar. Eu disse que estávamos a negociar e que poderíamos ter os helicópteros. Elaborámos o projecto e pedimos um programa à China. Quando recebemos o programa para dois helicópteros, eram muito custosos e constatámos que não tínhamos condições. Depois negociámos com Angola a possibilidade de Angola pôr um destacamento em Cabo Verde, com dois helicópteros. Um destacamento militar para garantir apoio, não só à Guarda Costeira, mas também à evacuação de doentes. Não foi possível viabilizar, pois teríamos que ter um acordo militar, autorização do parlamento angolano. Foi um processo complexo, apesar da vontade inicial do então presidente José Eduardo dos Santos. Em 2013, apresentámos esse dossier aos Estados Unidos, um dossier muito mais amplo, de modernização da Guarda Costeira, que implicava formação de engenheiros nas diferentes especialidades, de pilotos, de comandantes de meios aéreos e navais, incluindo três helicópteros. Houve uma grande abertura dos Estados Unidos mas entendemos que teríamos que ter um SOFA para desenvolver este processo.

Já lá vamos ao SOFA. O governo apresentou há duas semanas uma solução, em parceria com uma empresa portuguesa, com dois Aviocar e um avião transitório. O que lhe parece?
Há uma grande assimetria de informações. Todos os dados, todas as informações não são colocadas em cima da mesa. Não tenho neste momento todos os dados para fazer esta avaliação mas estranho, porque Cabo Verde tem no hangar do aeroporto da Praia um Dornier que vai fornecer para ter os dois aviões CASA [Aviocar], que são aviões da década de 70, descontinuados, que são vendidos como sucata.

Por aquilo que conhece é uma opção que não subscreveria?

Não. Neste momento, eu avançaria para a manutenção do Dornier, criaria as condições para que garantisse a evacuação em casos especiais, estabelecia um contrato com a Binter para garantir as evacuações em situação de complementaridade e desenvolveria um programa de modernização da Guarda Costeira, incluindo a aquisição de helicópteros para as evacuações e para todo o sistema de controlo e vigilância das nossas águas.

Corre o risco de ser questionado pelo partido no poder sobre a razão de ter não ter feito em 15 anos aquilo que agora propõe.

Seria uma perspectiva muito reducionista das políticas públicas. Eu perguntaria ao Governo anterior, do MpD, que esteve 10 anos no poder, o motivo pelo qual não criou universidades. Ou então ao primeiro Governo da República o motivo pelo qual não construiu liceus. O primeiro Governo teve que garantir o acesso ao ensino básico. Depois, o governo do MpD encontrou ensino básico democratizado, com acesso a todos, mas havia uma explosão do ensino secundário e desenvolveu os liceus. Quando assumimos, havia uma grande explosão do ensino secundário, que era preciso consolidar, mas tínhamos que desenvolver a universidade. As políticas públicas são assim, um processo. Neste momento, o actual governo está a financiar o desenvolvimento das estradas de penetração, mas porquê? Porque encontrou as grandes vias construídas. O que devemos perguntar, num balanço global, é: em 2016, Cabo Verde estava ou não muito melhor, em termos de desenvolvimento, do que em 2000?

Este exercício a que agora é sujeito é um exercício que também fez quando estava no Governo…

Eventualmente. Mas veja que nós evoluímos. Cabo Verde hoje é um outro país, consolidou a sua democracia, é um país mais policêntrico. A grande riqueza da democracia é a possibilidade de dissenso, de haver um pensamento divergente, mas neste momento este discurso é um discurso que acaba por tentar cercear esse pensamento divergente. Sempre que você critica ou coloca uma ideia diferente é como se não tivesse direito a fazê-lo porque esteve no Governo. A democracia tem o seu lado subversivo e é preciso entender essa dimensão subversiva da democracia. Não podemos ser democratas com um pensamento totalitário.

A Binter não começou a operar mais cedo por vontade própria ou por decisão do Governo?
Por decisão da própria Binter, que já tinha o certificado transitório de operador aéreo. Portanto, já tinha as condições para iniciar as suas operações provisoriamente, até que tudo estivesse cumprido, para ter certificado definitivo. Estávamos nessa situação, mas várias mensagens me chegaram no sentido de que a Binter quereria estar numa situação de monopólio.

A Binter propôs-lhe isso?

Não directamente, mas deu a entender e eu sempre disse que não. Cheguei a propor à Binter uma parceria no quadro dos TACV e disseram-me que a cultura dos TACV era uma cultura muito deficitária, que não levava à eficiência.

Então acha que quando a Binter começou a operar, no final de 2016, já teria a garantia de que a TACV se retiraria da operação?

A Binter só começou a operar com a garantia da retirada dos TACV.

Muito se tem falado sobre o acordo militar com os Estados Unidos e a mim parece-me que algumas das críticas resultam de algum desconhecimento do âmbito do acordo. A si, o que lhe parece?

Acho que devíamos avançar com um acordo SOFA com os Estados Unidos. Nós estávamos a fazer esta negociação, que já vinha desde há oito anos, sensivelmente. Formalmente, a proposta do acordo foi feita em 2008. Depois da apresentação dessa proposta, criámos uma comissão interministerial e houve um conjunto de pareceres, das Alfândegas, da Direcção-Geral de Contribuições e Impostos, da ANAC [Agência Nacional de Comunicações], de juristas e de todos os outros sectores envolvidos, porque o acordo tem várias valências. Alguns juristas apresentaram inconstitucionalidades em algumas disposições e outros propuseram adaptações. Estávamos no final de 2015, início de 2016. Acontece que chega o actual Governo, praticamente põe de lado estas questões, assume o draft tal e qual foi apresentado pelo Governo dos Estados Unidos e assina o acordo.

O Governo reagiu a essa notícia e disse que não.

Só que não há alterações, praticamente. Pode dizer que não, mas praticamente assume o draft. Era preciso, eventualmente, um esforço maior para, aproveitando todo o trabalho feito, garantir maior conformidade. Do meu ponto de vista, a questão não tem a ver com as cláusulas, tem a ver com a liderança do processo. Essas questões deveriam ser discutidas com as comissões especializadas do Parlamento. Discutidas e consensualizadas com os dois principais partidos e também com personalidades importantes da vida política nacional, além de um forte envolvimento do Presidente da República.

No seu entender, o que está em causa é a falta de diálogo?

Há falta de diálogo. A política ainda é matéria bruta em Cabo Verde. A política ainda é feita não só de forma muito partidarizada, mas numa relação de amigo/inimigo.

Gostava de ver o actual Primeiro-Ministro mais vezes no Parlamento?

É uma opção dele. Eu, se fosse Primeiro-Ministro, iria mais vezes ao Parlamento. Aliás, todos os meses ia ao Parlamento. A minha agenda era feita considerando a semana das sessões parlamentares.

Como é que acha que o PAICV se tem saído na oposição?

Eu estive 15 anos à frente do PAICV e do Governo. Não gostaria de fazer uma avaliação, até para não ser mal-entendido.

Mal-entendido por quem, pelo PAICV?

Pelo PAICV e pelos seus principais líderes. Eu diria que a liderança está a procura do seu caminho, da sua afirmação e tem procurado fazer o seu trabalho.

Este ainda é o tempo para a liderança do PAICV procurar o seu caminho?

O PAICV perdeu como perdeu as legislativas, logo de seguida, perdeu como perdeu as autárquicas. Portanto, está numa situação difícil. Há um desgaste de 15 anos de Governo, o facto de termos experimentado uma solução de transição, com um Primeiro-Ministro que não era presidente do partido, etc. É natural que, depois deste processo, ainda esteja à procura de uma forte afirmação da nova liderança.

A solução transitória funcionou mal?

Era uma experiência nova.

E se fosse hoje?

Se fosse hoje, procuraria outros cenários.

Teria, por exemplo, saído mais cedo do Governo, deixando a líder como Primeira-Ministra?
Não sei qual seria o resultado, porque estaremos sempre a falar de especulações. Na altura, a situação era muito complexa. Tínhamos saído das eleições presidenciais [de 2011] numa situação de forte divisão, era necessário juntar as diferentes partes para garantir estabilidade governativa e garantir que chegávamos ao fim da legislatura. Aquela disputa em 2014 [pela liderança do partido] veio acicatar os ânimos e reabrir algumas feridas. Com a experiencia e com os dados que tenho hoje, optaria por um cenário diferente.

Acha que quem perdeu as eleições legislativas em 2016, perdeu as autárquicas, num partido que se afastou das presidenciais, tem condições para voltar a disputar as mesmas eleições em 2020 e 2021?

Se fosse eu, não faria esse percurso.

Ter-se-ia demitido depois de perder as eleições?

Teria tomado outras medidas. Mas não posso colocar-me na posição da actual líder. Ela faz a sua avaliação, analisa e toma as melhores decisões conforme entender.

E acha que a actual liderança vai chegar à disputa eleitoral de 2021?

Acho que essa é a perspectiva da actual liderança e deve estar a trabalhar nesse sentido.
Com condições reais para vencer as eleições?

Eu não tenho os dados concretos neste momento. Talvez seja ainda cedo. As eleições dependerão da situação política na altura…

Não é assim tão cedo, já estamos a meio da legislatura…

O próximo ano é o ano pré-eleitoral, teremos as eleições autárquicas em 2020 e o processo político é extremamente dinâmico. Vai depender do que acontecer no próximo ano e nas autárquicas.

Como é que decorre a preparação da sua candidatura presidencial?

(risos) Muito sinceramente, ainda não tomei nenhuma decisão sobre se serei ou não candidato.

Não tomou uma decisão ou não nos quer dizer que já tomou a decisão?

Ainda não tomei uma decisão sobre as eleições presidenciais. Eventualmente, em 2019, inícios de 2020, ainda antes das eleições autárquicas. Eu não tenho obsessão em ser Presidente da República.

Mas apetece-lhe ser Presidente da República?

Eu gostaria imenso de continuar a contribuir politicamente para o desenvolvimento do meu país. A avaliação que faço é que posso contribuir - e muito - para o desenvolvimento político, económico e social do país.

Como Presidente da República, por exemplo?

Como Presidente da República, por exemplo. Mas isso não depende só de mim, depende das circunstâncias políticas.

Depende da sua vontade de ser candidato…

Claro. Eu acho que, na política, uma candidatura deve ser uma questão de vontade. Eu desconfio daqueles políticos que dizem que não têm ambição ou que estão na política por sacrifício. A política tem que ser feita com muita alegria, com grande satisfação e tem que haver uma vontade de servir o bem comum.

Posso concluir que quer ser candidato e só não me diz que sim porque quer esperar para ver se as circunstâncias, de facto, tornam isso possível?

Não, o que eu estou a dizer é que posso ser candidato a Presidente da República. É uma possibilidade.

É uma possibilidade com alto nível de probabilidade?

Com alto nível de probabilidade. Mas ainda não tomei essa decisão. Vai depender de um conjunto de circunstâncias, como já lhe disse.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 871 de 07 de Agosto de 2018.

Nuno Andrade Ferreira em entrevista ao ex-primeiro-ministro de Cabo Verde | em Expresso das Ilhas

Protesto em tom de rap contra o franco CFA


"7 minutes contre le CFA" (7 minutos contra o franco CFA) é o título de um novo tema rap muito popular, recentemente apresentado em Dakar, no Senegal. Os músicos protestam contra a moeda que consideram "neo-colonial".

Dez artistas, oriundos de sete diferentes países, manifestam-se assim contra a moeda que circula em 14 países da África Central e Ocidental: o franco CFA. "Acabe-se com o bla-bla, queremos o fim do CFA, a história avança, um grito agudo nas nossas ruas!" - é esta a mensagem deste rap.

O franco CFA contraria a soberania dos estados africanos, é um reflexo neo-colonial, dizem os músicos, todos eles bastante conhecidos nos seus países de origem. É o caso do rapper Elom Vince (melhor conhecido por "Elom 20ce"), do Togo: "Resolvemos lançar este tema contra o franco CFA porque achamos que esta é a melhor maneira de espalhar uma mensagem que deve ser ouvida por um público mais vasto. Até agora o tema do franco CFA era discutido apenas entre jovens intelectuais em zonas urbanas. Ora isso está a mudar radicalmente. A mensagem é simples e está a passar: O franco CFA vai morrer e nós vamos festejar durante o funeral dessa hedionda moeda." 

Dois francos CFA formalmente diferentes 

Na realidade existem dois francos CFA diferentes: na África Ocidental aderiram, ao todo, oito países à zona CFA: Benim, Burkina Faso, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, Mali, Níger, Senegal e Togo. A sede do Banco Central da África Ocidental é Dakar, capital do Senegal. O Franco CFA dos Países da África Central foi adotado por mais seis países: Guiné Equatorial, Gabão, Camarões, Congo Brazzaville, Chade e República Centro-Africana. A sede do banco da África Central é Yaoundé, capital dos Camarões. 

Ambas as moedas foram criadas em 1945 e desde o início mantiveram um valor de câmbio fixo, relativamente ao franco francês. Quando a França adotou o euro, o CFA passou a ter um valor fixo em relação à moeda europeia. Um euro equivale, nomeadamente, a 655,957 Francos CFA, aplicando-se o mesmo câmbio para ambos os francos CFA. 

50% das reservas CFA em Paris

O banco central de França continua a garantir o valor das duas moedas africanas. Em contrapartida os países africanos comprometeram-se a depositar pelo menos 50 por cento das suas reservas em Paris. Armin Osmanovic, chefe da sucursal da  Fundação Rosa Luxemburg, ligada ao partido alemão de esquerda "Die Linke", em Dakar, em entrevista à DW África, confirma: "O franco CFA é, de facto, uma moeda idealizada nos tempos coloniais, pela França colonial, para as suas ex-colónias. Mais de 50 anos depois das independências das ex-colónias francesas, o CFA constitui, por assim dizer, um anacronismo. Ou seja: continua a ser um instrumento da tradicional política de influência contínua de França sobre as suas ex-colónias, uma política que se convencionou apelidar de 'françafrique'."

Para além de argumentos políticos também há argumentos económicos que poderiam ser utilizados contra o CFA. "A moeda nao confere flexibilidade à política financeira dos países aderentes ao franco CFA. A moeda está crónicamente sobre-valorizada devido ao câmbio fixo em relação ao euro. Isso encarece as exportações e também desencoraja o investimento estrangeiro na zona do CFA."

Franco CFA: fator de estabilidade? 

Por sua vez, o economista Thomas Koumou, do Togo, sublinha os aspetos positivos de uma moeda acoplada ao euro: "O facto do franco CFA estar 'acoplado' ao euro confere uma estabilidade muito importante à moeda e constitui por isso um bom travão contra uma inflação indesejável. O Franco CFA é, por assim dizer, uma boa defesa contra possíveis choques conjunturais, e isso é muito importante num sistema comercial cada vez mais interdependente e globalizado". 

Entretanto os rappers africanos que se uniram para fazer campanha contra o franco CFA, prometem intensificar a sua luta contra uma moeda que - na sua opinião - "cimenta o colonialismo". Palavras do músico Jah Moko, do Mali: "Nós somos a voz da juventude. Com este projeto vamos despertar a consciência de muita gente, que até agora não estava a par do assunto. Vamos fazer a diferença. Chegou a hora de África assumir as suas responsabilidades e pegar as rédeas do seu destino, adotando moedas que sirvam os interesses dos africanos e não os interesses dos europeus."

Kathrin Gänsler, António Cascais | Deutsche Welle

Intentona VERSUS Inventona: Duas faces de uma mesma moeda?

Victor Ceita* | Téla Nón | opinião

A dois meses das eleições, S. Tomé e Príncipe tem vindo a ser foco de notícias relacionadas com alegadas intentonas, alegadamente perpetradas por indivíduos que, segundo o Governo, pretendem eliminar fisicamente o Primeiro Ministro e alterar a ordem constitucional do país. Com efeito, em pouco mais de 30 dias foram alegadamente desmanteladas duas operações com o sinistro propósito atrás referido. A situação é extremamente grave e séria, devendo merecer de todos uma reflexão profunda sobre o caminho que se começou a traçar para o país, essencialmente, nos últimos quatro anos.

Num quadro democrático, independentemente da sensibilidade política de cada um, ninguém pode ficar indiferente perante as notícias das últimas semanas, pois o cenário agora criado faz ensombrar os resultados das próximas eleições, quer na fase específica das campanhas quer no acto da votação, e, quiçá, depois da publicação dos resultados. De qualquer das formas, é preciso chamar aqui atenção para algumas reflexões sobre a(s) alegada(s) intentona(s) das últimas semanas em S. Tomé e Príncipe.

Numa breve pesquisa nos lugares comuns da internet pode encontrar-se diversas qualificações para o termo intentona, mormente, definindo-o como um intento louco, um projeto insensato, um ataque imprevisto ou mesmo conluio de motim ou revolta.

Estes adjectivos, acompanhados da intenção de tomada do poder instituído, pode qualificar e ajudar a definir aquilo que se vive em S. Tomé e Príncipe na actualidade. Isto é, alegadamente, os indivíduos que têm sido apresentados como protagonistas dos actos invocados pelo Governo, por intento louco, munidos de projecto insensato, em conluio, tentaram preparar um ataque imprevisto, com o objectivo de eliminar fisicamente o Primeiro Ministro e tomar o poder à margem do quadro democrático.

Isto é preocupante, senão tenebroso. A questão que se coloca é que nestas situações, como em quaisquer outras de semelhante configuração, não basta alegar, sendo imprescindível que se determine com precisão e objectividade se o alegado pelo Governo tem correspondência com a realidade, com a verdade. Esta é a regra de ouro numa qualquer sociedade dita civilizada e num estado tomado por democrático.

E esta necessidade, que acarreta e pressupõe séria investigação e prova, visa não apenas fazer justiça e apaziguar a sociedade, mas também, quiçá principalmente, verificar a credibilidade de quem anunciou a existência da(s) intentona(s), de quem despoletou o alarme social com a divulgação quase propagandista deste fenómeno. Aqui entra o papel de outras instituições, diferentes do Governo, instituições incumbidas pela Constituição e por lei de investigar, acusar (se for o caso) e julgar os factos alegados pelo Governo.

São estas instituições que, exercendo as funções que lhes estão acometidas, irão dissipar as dúvidas sobre estes casos, lançando para a sociedade a verdade dos factos e as possíveis reais intenções e/ou motivações por detrás deste fenómeno. E parece ser aqui que o Governo encontrará enorme dificuldade na gestão deste assunto, fruto dos actos ultimamente protagonizados pelo próprio Governo e o Partido que o sustenta.

Na verdade, o que aconteceu ao sector da Justiça em S. Tomé e Príncipe nos tempos recentes é algo digno de estudo académico quer na vertente sociológica quer na vertente psiquiátrica de alguns dos seus protagonistas. A questão é que, ao contrário do que se possa pensar, a subversão da ordem política e social do Estado não é um fenómeno exclusivamente derivado da acção militar ou outra forma violenta de tomada do poder.

A subversão da ordem política de um Estado pode igualmente ser perpetrada de forma institucional, pelo poder instituído, que, por acções à margem do quadro legal e constitucional do país, e disfarçando uma actuação regular, passa a controlar o parelho do Estado nas suas mais variadas vertentes, com destaque para a Justiça, a Comunicação Social, a Economia, etc.

No caso concreto de S. Tomé e Príncipe, a avaliar pelos últimos actos praticados pelo Partido que sustenta o Governo, não estamos longe de uma verdadeira subversão da ordem democrática. Com efeito, o ADI, que não governa com maioria qualificada, (i) ao impor ao país um Tribunal Constitucional, o qual veio à luz por meio de actos violentes contra os deputados da oposição na Casa da Democracia, (ii) ao eleger sozinho os seus juízes para o seu Tribunal Constitucional, (iii) ao exonerar Juízes do Tribunal Supremo de forma sumária e por mera resolução da Assembleia Nacional, (iv) ao eleger sozinho e por resolução da Assembleia Nacional os seus juízes para o “novo” Tribunal Supremo, se não matou a Justiça do país, feriu de morte a ténue credibilidade que essa Justiça ainda desfruía. Ora, se assim é, como espera o Governo e o seu Partido que a sociedade acredite no que há-de vir em relação ao esclarecimento da(s) intentona(s) denunciadas? Poderá o normal e pacato cidadão santomense esperar que a investigação, a acusação (se houver) e o julgamento do caso da(s) intentona(s) publicitadas pelo Governo conhecerá seriedade e justiça que situações dessas reclamam? Fica tudo muito nublado, pois o ADI e o seu Governo criaram todo um quadro descredibilizante do sistema de Justiça ao ponto de ser legítimo questionar a sua imparcialidade, a sua independência, a sua credibilidade, segundo as regras democráticas.

Não é em vão que os últimos suspeitos da alegada mais recente intentona viram prejudicado o elementar direito de serem ouvidos por um juiz no mais curto período de tempo possível. Ao que se lê nas notícias, muitos juízes declinaram o trabalho, recusando associar-se ao assunto.

A solução teve de vir do Distrito de Lembá, cujo tribunal é titulado pelo juiz, o mesmo que resolveu(?) o assunto Rosema a favor dos seus interessados e não a favor da Justiça, que foi escolhido para a empreitada, numa espécie de juiz de serviço.

Será muito difícil, pelo menos para a opinião pública, aceitar sem desconfiança que a actual Justiça estará em condições de exercer a sua verdadeira função, com imparcialidade, independência e credibilidade, lançando a verdade dos factos que neste momento é essencial para a própria credibilidade do Governo e do seu Partido. Estes, fruto do vendaval que semearam no sistema constitucional e legal da sociedade santomense, arriscam-se a beber do próprio cálice cujo conteúdo, por ser perigoso, teria sido preparado para servir a outrem.

No quadro acima exposto, espero que um assunto tão sério como é o fenómeno da(s) intentonas(s) que surgiram no país, nas vésperas das anunciadas eleições, não venha a ser encarado como uma simples e instrumental inventona.

Pode ler o artigo em formato PDF – INTENTONA VERSUS INVENTONA

*Victor Ceita, advogado

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