terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Capitalismo, reconversão, e continuidade da barbárie


Martinho Júnior, Luanda 

1- Como um grande camaleão, na viragem de 2018 para 2019 o capitalismo globalizante assume “dramaticamente” a reconversão para um novo formato geoestratégico com muitos conteúdos e contornos ainda por definir, em função da perspectiva de suas tensões internas e contradições internacionais, sem renunciar ao carácter bárbaro que lhe é intrínseco na persistência da esteira feudal que nutre sua própria essência expansionista e imperialista.

A administração republicana de Donald Trump toca a rebate em relação à hegemonia unipolar nos termos em que ela foi parida e estimulada pelo capitalismo financeiro transnacional, reflectindo decisões que ao arrepiarem no caminho global do caos, do terrorismo e da desagregação, impõem-se por via de medidas proteccionstas que mechem com a profundidade das placas tectónicas socioculturais da complexa sociedade estado-unidense, assim como em relação aos relacionamentos internacionais, num momento em que a IIIª Guerra Mundial “de baixa intensidade” se dilui num plasma de imprevisibilidade.

O presidente Trump iniciou um processo de tensas transformações, ao colocar em primeiro lugar a necessidade de se adoptarem nos Estados Unidos as práticas protecionistas agora já em curso, sem as quais e segundo a sua interpretação, estariam destinados a esvaírem-se nos desgastes implicados quer nas iniciativas do capitalismo neoliberal transnacional que foi semeado desde o final do que tem sido considerado de período da Guerra Fria, quer em função do carácter privado da Reserva Federal que desde a 1ª metade do século XX começou a corresponder às estratégias dominantes e hegemónicas da aristocracia financeira mundial.

O Presidente Donald Trump e a máquina que o apoia, não pretendem ser mais reféns desse capitalismo financeiro transnacional irresponsável perante a humanidade e também perante o próprio eleitorado estado-unidense, mas refugia-se num ciclo conservador de difícil compatibilidade com outras sensibilidades internas e externas, em especial em relação ao espaço das Américas, onde os cânones da Doutrina Monroe ressurgem envoltos nas roupagens contemporâneas de lesa-democracia.

A nível interno, o regresso a casa das capacidades e do poder financeiro das transnacionais que ocuparam o espaço da hegemonia unipolar e agora estão, forçosamente ou não, à procura de reconversão nos próprios Estados Unidos, está a activar o vulcão sociocultural e sociopolítico meio adormecido, herdado ao longo dum processo histórico expansionista e sangrento, substancialmente desde a IIª Guerra Mundial (os Estados Unidos, que se lembre sempre, foram os únicos a, até hoje, fazerem uso de armas atómicas sobre as cidades, no caso de Hiroshima e Nagasaki, no Japão).

Desde a sua origem que os Estados Unidos se vocacionaram nos processos de expansão, acabando por se tornar assim num império hegemónico unipolar, arrogante, sangrento e despótico no dobrar do século XX para o século XXI, mas agora os Estados Unidos começaram a ser obrigados ao movimento inverso, no sentido do recuo e da regressão, algo a que nunca se haviam antes habituado nos termos dos interesses da aristocracia financeira mundial, assim como das suas oligarquias e elites vassalas espalhadas pelo mundo e sobretudo pela Europa, América Latina e África...


2- O Partido Republicano apresenta tensões internas resultantes dessa deriva “contra natura”, mas as contradições sociopolíticas principais (entre a corrente que se propõe ao proteccionismo e os vícios do capitalismo neoliberal globalizante) resultam da confrontação com o criminoso papel servil que os Democratas desempenharam (e em muitos aspectos continuam a desempenhar) ao serviço do capitalismo financeiro transnacional, ele próprio corresponsável pelo contraditório crescimento meteórico da emergência chinesa, (tida agora como estando a trilhar já o caminho destinado à primeira potência económica global), como corresponsável pela tendência em direcção à exaustão financeira do papel-moeda correspondente ao petrodólar, esgotado nos labirintos de caos, de terrorismo e de desagregação semeados a partir dos enlaces derivados com e a partir do 11 de Setembro de 2001, enlaces que tiveram antecedente na formulação do Tratado de Quincy a 14 de Fevereiro de 1945, no imediato seguimento do encontro entre os aliados vencedores da IIª Guerra Mundial, em Ialta.

Há analistas que alertam para o risco duma convulsão interna nos Estados Unidos e em termos de relacionamentos internacionais, os sinais vão evidenciando a insustentabilidade da manutenção das geoestratégias erráticas das transnacionais da hegemonia unipolar no imenso continente euroasiático, apesar das crispações em torno da Rússia e da China, assim como nos oceanos e mares que lhes são próximos.

Nos subterrâneos dos relacionamentos, há cada vez mais países que vão abandonando o petrodólar nos seus negócios bilaterais e até multilaterais, deixando com isso de alimentar o monstro, apesar das sanções a que se sujeitam.

Esses países adoptaram o crescimento de suas reservas indexadas ao padrão ouro, que lhes permite também a, em função de suas riquezas naturais, criar cripto-moedas a fim de melhor salvaguardar a precária independência e soberania (como o caso da Venezuela socialista e Bolivariana).  

Abandonando o Tratado Trans Pacífico, saindo militarmente da Síria, ou reduzindo o seu contingente militar no Afeganistão, os Estados Unidos pela voz do Presidente Donald Trump renunciam em ser “os polícias do mundo”, apesar de ainda manterem mais de 800 bases espalhadas pelo planeta, apesar de suas naves de guerra sulcarem todos os oceanos e mares, apesar das ameaças ao Irão, ou à Venezuela Socialista e Bolivariana, apesar de continuarem a ser o maior vendedor de armas à escala global.

As capacidades geoestratégicas dos Estados Unidos na Eurásia estão todavia obsoletas e impotentes, face à pujança por um lado do “Belt and Road” da iniciativa chinesa, ligando Vladivostock a Londres, por outro face ao surgimento das armas hipersónicas russas e da panóplia de meios militares aparentemente vetustos, a que se adaptaram as mais avançadas tecnologias militares que se possam imaginar, do lado da Rússia e, pouco a pouco, também da China.

A Rússia ludibriou a capacidade de inteligência dos Estados Unidos e dos seus vassalos, ao reutilizar equipamentos navais, aéreos e terrestres da segunda metade do seculos XX, transformados em armas de vanguarda com as novas tecnologias desenvolvidas pelos engenheiros de suas Academias forjadas a partir do imenso mérito soviético.

Com inteligência e um “know how” incomparável, a Rússia é desde logo eficiente nas economias que faz ao vocacionar-se para o reaproveitamento de armas com aparência de obsoletas, mas que agora garantem uma superioridade geoestratégica abissal.

O presidente Putin, apesar de jogar em tantos tabuleiros à volta das imensas fronteiras terrestres e marítimas da Rússia, com mestria e subtileza diplomática responde com nervos de aço e contenção, tirando partido da superioridade tão dificilmente alcançada desde os tempos de traição, desde Gorbatchov e Ieltsin.

Na Síria não houve apenas uma vitória, houve a afirmação de sua capacidade dissuasora, sempre acima da fasquia que as potências retrógradas foram apresentando “no terreno”, por mais manipulados e contraditórios que se apresentassem os seus “jogos”, mantendo sempre aberta a janela no caminho da paz.

Na Síria houve também a previsão do assalto ao Mar Negro, cuja batalha se desenvolve à volta da tensão ucraniana tornada neofascista e neonazi após o “colorido” golpe de estado da praça Maidan.

Os vassalos dos Estados Unidos com rótulo de aliados na NATO, estão confundidos apesar dos tambores de guerra na Ucrânia, mais confundidos ainda quando uma das maiores forças armadas europeias componentes, a da Turquia,“dança com os ursos”, eternos alvos de sua propaganda irresponsável e agora apanhada em contra pé!


3- Até onde irá a retracção dos Estados Unidos, quando agora as suas esquadras navais se tornaram ridículas latas à mercê das enormes vantagens geoestratégicas russas, quando o carnaval de suas iniciativas sangrentas, motivadas pelas mais insaciáveis transnacionais, é posto a nu com a acumulação de derrotas, quando seu poder financeiro com base no petrodólar fica impotente e inútil, quando as bolsas começam a tremer esbatendo-se na orgia dos seus esgotados horizontes?

Até que ponto o investimento anunciado às pressas no sentido de se criarem armas hipersónicas, vai colmatar o deficit geoestratégico face à Rússia nos próximos dez anos?

Julgam que nos próximos dez anos a Rússia que demonstrou tanta clarividência e pujança em relação ao seu armamento, vai ficar estática, à espera que os Estados Unidos se recomponham?

Alguns candidatam-se ainda a serem artífices de “bons ofícios” na miragem do império anglo-saxónico, como a Grã-Bretanha que quer aumentar o número de suas bases “além-mar” a começar nas Caraíbas, juntando-se aos arsenais da ocasião que procuram cercar a Venezuela, Cuba e a Nicarágua.

Com a eclosão do exercício do novo presidente Obrador no México, que contramedidas se poderão equacionar bem na fronteira sul dos Estados Unidos?

Em época de retracção os Estados Unidos pretendem veladamente que outros preencham papeis que antes a si se reservava, o que aumenta a imprevisibilidade, os riscos e os movimentos erráticos também propiciados pelo disseminado arsenal “informal” de novas tecnologias.

O complexo enredo da guerra psicológica confunde-se com o emprego de operações que vão desde as de falsa bandeira com emprego de armas químicas, ou de drones, aos assassinatos selectivos, provocando caos, terrorismo e desagregação, aumentando a vulnerabilidade dos estados mais subdesenvolvidos da Terra.

O mundo bárbaro distende-se evocando ainda a “civilização judaico-cristã ocidental” ancorada nos fundamentalismos cristãos de ordem feudal, conforme às últimas eleições no Brasil, ou em nacionalismos rampantes tisnados de neofascismo e neonazismo, como na Ucrânia.

Entre os islâmicos, a Arábia Saudita atiça a espiral fundamentalista sunita-wahabita dos irmãos muçulmanos, conjugando veladamente esforços nesse sentido com os falcões de Israel.

África tem sido uma das diletas vítimas dessa espiral, que aproveita os enredos contraditórios da dialética entre as populações dos maiores desertos quentes do globo e as das ricas regiões tropicais, para melhor disseminar caos, terrorismo e desagregação, abrindo espaço ao neocolonialismo.

Chegou o ano de 2019 e muitas surpresas estão por surgir a curto e médio prazos, com uma NATO obsoleta, confundida e minada pelos nacionalismos alienados da Europa, com um comando cada vez mais ciente que a hegemonia unipolar está em estado malparado, em vias duma doença crónica irreversível.

Um mundo multipolar se vai desenhando a partir das convulsões que compõem a IIIª Guerra Mundial não declarada mas evidente, abrindo-se o caminho em terrenos quantas vezes fumegantes às integrações e articulações ainda que sem vislumbre consolidado duma paz duradoura, sem vislumbre da afirmação peremptória de civilização que a humanidade e o planeta tanto precisam!

O pré-aviso sobre uma hecatombe nuclear nunca foi tão sério como agora, no âmbito dessa IIIª Guerra Mundial que fermenta em relativamente “baixa intensidade” e em distendida “geometria variável” multiplicando os escombros, o vazio e as migrações forçadas… até quando?

Martinho Júnior - Luanda, 1 de Janeiro de 2019.

Imagens – três quadros de salvador Dali:
Metamorfose de Narciso;
O grande masturbador;
A face da guerra.

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