sábado, 26 de janeiro de 2019

Portugal | Tancos: quando se investigam os crimes cometidos?


Gil Prata | Jornal de Notícias | opinião

Diz o Ministério Público (MP) que em causa estão factos suscetíveis de integrarem crimes de associação criminosa, furto, detenção e tráfico de armas, terrorismo internacional e tráfico de estupefacientes.

Porém, agora já se diz ter sido desvalorizado, desde o início, o eventual crime de terrorismo internacional, apesar de esta informação contrariar tudo o que desde há 18 meses tem sido publicado. Certo é que, desde então, estão por investigar os crimes que efetivamente ocorreram com o desaparecimento do material de guerra nos paióis nacionais de Tancos, em 27 de junho de 2017, ou em consequência desse furto.

A investigação deste facto, que determinou a atualidade política, judiciária e militar, parece ter desdenhado do ordenamento jurídico nacional aprovado pelo órgão de soberania competente.

Já dissemos antes que havia grande probabilidade deste furto ter sido evitado, não obstante as deficiências de segurança militar existentes na altura. Falhou a comunicação neste caso concreto, apesar da relevância da matéria, e impediu-se assim o incremento de medidas de segurança militar ativas e passivas.

Falhada a prevenção, havia que investir na investigação em obediência ao normativo legal. Mas, também este não foi respeitado por quem tem de garantir o respeito pela legalidade. Crimes tipificados com natureza especial foram travestidos de crimes comuns para, destra forma, afastar o órgão de polícia criminal (OPC) primariamente competente para a sua investigação - a Polícia Judiciária Militar (PJM) - deferindo-a a outro órgão de polícia criminal, quando essa investigação deveria ter sido efetuada em cooperação institucional de ambas as polícias judiciárias e sob a dependência funcional do MP, tal como a lei de organização da investigação criminal (LOIC) estabelece.

O direito penal militar constitui, desde 2004, um direito penal especial em razão dos bens jurídicos tutelados. Conforme consagra o próprio Código Penal no seu artigo 40.º, a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos. A especialidade do direito penal militar, codificado no código de justiça militar (CJM), é-lhe concedida precisamente pelos tipos de bens jurídicos que visa proteger.

Assim, o CJM consagra que constitui crime estritamente militar o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas. A LOIC e o CJM atribuem competência específica à Polícia Judiciária Militar para a investigação dos crimes estritamente militares, não prevendo a possibilidade desta investigação ser deferida a qualquer outro OPC.

Mas parece haver autoridades judiciárias que ignoram ou não estão motivadas para proteger os interesses militares da defesa nacional. Aliás, até parece denotar-se algum complexo em relação ao universo do que é militar.

Em 27 de junho de 2017 foram cometidos crimes que são indesmentivelmente de natureza militar. Por determinação do MP, ficou a PJM impedida de proceder a diligências de investigação e não foram investigados por qualquer outro OPC, talvez porque a lei também os impede.

Então, eventuais crimes de furto de material de guerra, comércio ilícito de material de guerra, entrada ou permanência ilegítimas em instalação militar, dano em bens militares, extravio de material de guerra, abandono de posto, violação de segredo de Estado ou de corrupção ativa e passiva para a prática de ato ilícito deixaram desde há 18 meses de ser investigados em consequência do despacho da PGR que determinou a apensação do processo inicialmente investigado pela PJM no processo investigado pela PJ, OPC incompetente em razão do tipo de crimes.

Pensamos que não será necessário fazer-se mais referências ao resultado nefasto de tal decisão.

Salvo melhor opinião, continua a constatar-se nesta investigação a violação de ordenamento jurídico estruturante da justiça penal militar aprovado pelo órgão legislativo por excelência, a Assembleia da República. Consideramos que a tramitação irregular do processo e a indevida qualificação dos crimes poderá ter consequências no mesmo, invocáveis em qualquer fase do processo.

*Coronel paraquedista, ex-juiz militar, ex-subdiretor da PJM e docente da Academia Militar

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