quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

A fase predatória do capitalismo


Jorge Figueiredo

Já houve tempo em que o capitalismo era uma força progressista, na medida em que avançava o nível de desenvolvimento das forças produtivas. As empresas então produziam novos bens e serviços que acrescentavam riqueza às sociedades, desenvolvendo-as. Era a fase da ascensão do capitalismo, uma outra era, antes de a queda inexorável das taxas de lucros começar a manifestar-se. 

Hoje isso não é mais assim. Actualmente estamos na fase predatória do capitalismo, que é comandada pelo capital financeiro. O objectivo agora é a apropriação da riqueza existente, criada por outros. Daí a catadupa de fusões e aquisições, OPAs amistosas ou hostis, leverage buy-outs(LBOs) [1] , engenharias financeiras, etc. Nada disso pode aumentar a riqueza de um país. Tais operações significam apenas transferências de riquezas de uns (geralmente muitos) para outros (poucos). É assim que hoje mais de 80% da riqueza mundial é apropriada por 1% da população do planeta. Essa realidade é reconhecida mesmo por entidades que não põem em causa o capitalismo, como a Oxfam [2] . Assim, estamos em meio a um processo de pauperização numa escala quase universal. Pode-se dizer que se trata da fase autofágica do capitalismo pois ele já pouco desenvolve as forças produtivas e começa a predar as existentes. Será isto um modo de produção? Ou um modo de destruição?

Como se processa este processo de expropriação de riquezas? Há poucos estudos empíricos acerca dos mecanismos actuais e reais de concentração [3] e centralização do capital [4] (tudo indica que na fase actual do capitalismo a última tende a predominar sobre a primeira). Uma das razões para esta ausência é a opacidade com que tais processos se realizam, o que é compreensível pois geralmente estão associados à corrupção em larga escala com conluios encobertos entre vendedores e compradores. Por isso, torna-se extremamente difícil detectar os processos reais pelos quais se verifica este autêntico roubo legal (pois sacramentado pelos poderes públicos e batalhões de juristas e contabilistas ao serviço do capital).

Este é o grande o mérito do livro recente de Catherine Le Gall e Denis Robert, Les prédateurs: Des milliardaires contre les États [5] – trata-se de uma investigação empírica. Para fazê-la eles examinaram três casos de vigarices: a venda da Quick, cadeia belga de hamburguers, ao banco estatal francês; a venda da refinaria de Pasadena à Petrobrás; e a venda de uma obscura empresa mineira à Areva, poderosa empresa francesa da energia nuclear. Para isso os autores deram-se ao trabalho de examinar milhares de relatórios, balanços, demonstrações de resultados, artigos em publicações e efectuar inúmeras entrevistas com intervenientes nas referidas operações.



Uma característica comum a todos os três casos é que foram lesadas empresas estatais através de maquinações cuidadosamente conduzidas. No primeiro deles, o da cadeia Quick, o lesado foi a Caisse, o banco do Estado francês. O preço de venda que os donos haviam proposto em 2004 fora de 300 milhões de euros e não encontrara comprador. Mas em 2006 a Caisse comprou-a pela quantia de 760 milhões de euros (p.156). Também caberia perguntar porque é que o maior banco estatal da França precisaria de uma cadeia de fast-food, mas ninguém respondeu a essa pergunta. O livro contém uma insinuação clara de que a operação serviu para ajudar a financiar a campanha eleitoral de Nicolas Sarkozy (p.119).

O segundo caso, muito maior, foi o da refinaria de Pasadena, na Califórnia, vendida à Petrobrás em 2012 (com aprovação de Dilma Rousseff). A refinaria era uma verdadeira sucata que o seu proprietário, a Astra Oil, vendera a um grupo belga por 42,5 milhões de dólares. Mas o montante que a Petrobrás acabou por pagar foram uns incríveis 1,18 mil milhões de dólares, ou seja, um salto mortal de 1600%. A operação contou com conivências internas dentro da Petrobrás (um tal Nestor Cervero) e com pelo menos um ex alto funcionário da Petrobrás (Alberto Feilhaber) que passou a trabalhar para o outro lado. O contrato foi feito com tal habilidade e cláusulas tão diabólicas que a Petrobrás acabou por ficar presa, sem qualquer saída razoável. Para poupar pormenores, bem descritos no livro, os autores resumem assim a situação:

"A Petrobrás está de pés e mãos amarrados com um parceiro de que ela não pode se livrar a menos que pague um preço delirante. A refinaria está obsoleta, os trabalhos estão em ponto morto, as discussões com a Astra Oil são tensas. Os dirigentes da Petrobrás (enfim, aqueles que não são corrompidos) descobrem a amplitude do desastre e acreditam que ainda é tempo de encontrar uma porta de saída. Mas todas as soluções são piores umas que as outras: manter a refinaria no estado em que está provocar perdas colossais, começar trabalhos para produzir 100 mil barris por dia como previsto relançaria o conflito com a Astra, subir para 200 mil barris equivaleria a conceder uma enorme prenda à Astra. Finalmente, comprar a parte da Astra para se desembaraçar do parceiro recalcitrante custaria uma fortuna. A armadilha imaginada pela equipe belga – e por Albert [Frère]? – se fecha sobre o dinossauro Petrobrás. Não há meio de escapar. Em frente, a equipe dos belgas vê a sua presa entrar em pânico. É tempo de apresentar o grande jogo para aterrorizá-la totalmente". (p.236)

É então que a Petrobrás vai ser depenada. Num golpe de poker, a parte belga propõe-se a comprar a parte da Petrobrás na refinaria cuja gestão está paralisada devido aos diferendos entre os sócios – o que impede a empresa de se por de pé. O contrato continha uma cláusula insidiosa, aparentemente anódina. Dela se concluía que não era tanto a casa que valia caro e sim quem possuía a chave: o contrato de comercialização. A Petrobrás acaba por levar o caso à justiça americana, a qual vem a condená-la a pagar uma soma vertiginosa. Fecha-se a armadilha. As maravilhas do capitalismo actual permitem este género de operações.

O terceiro caso é o da Uramin, uma empresa constituída em paraísos fiscais que na verdade é uma concha vazia. As três jazidas de urânio que ela afirma ter em África pouco ou nada valem pois não são economicamente exploráveis. A Areva, uma importante empresa estatal francesa dedicada ao nuclear, possui uma base de dados com dados de minas de todo o mundo – mas os seus geólogos e peritos não foram achados nem ouvidos acerca da aquisição desta Uramin. Mas o dossier desta casca vazia foi cuidadosamente manipulado pelos seu proprietários, através de pareceres da consultora SRK e por outros meios, a fim de dar a entender que valia muito. A presidente da Areva, Anne Lauvergeon, fora reconduzida à testa da empresa após a eleição de Nicolas Sarkozy à presidência da República. A ligeireza com que ela procedeu a operação de compra da Uramin foi estarrecedora. E mais estarrecedor ainda foi o preço estratosférico que foi pago: 2,49 mil milhões de dólares, sempre com a assistência do banco Rothschild, muito ligado a Sarkozy. Uma consultora de negócios explica a regras do jogo nos negócios de petróleo, gás e urânio: "Se eu vendo caro, muito caro, demasiado caro, eu agradeço o comprador. Sempre" (p. 263).

O que estes três casos recentes têm em comum é a acção predatória do capital financeiro privado sobre empresas públicas e estatais. Isto parece confirmar uma lei geral e certamente é uma consequência da queda da taxa de lucro nas actividades produtivas da economia capitalista. O capital já não pode arrecadar os lucros "normais" a que estava habituado com a produção de mercadorias. Assim, passou a nova fase e agora dedica-se à actividade predatória de empresas produtivas – sobretudo daquelas no âmbito estatal.

Os autores afloram também o caso escandaloso da fusão da empresa Gaz de France (GDF) com a privada Suez. A GDF, uma empresa pública exemplar criada após a II Guerra Mundial, foi atacada pelos predadores da Suez e acabou por fundir-se com ela. Nem a GDF nem o povo francês foram beneficiados com tal fusão, bem pelo contrário. Agora a lógica de funcionamento da empresa está voltada para o máximo lucro e não mais para prestar um serviço público e servir a população do país. É outro caso exemplar que merece ser examinado.

Seria desejável que em Portugal houvesse estudos empíricos como esse para as rapinas sofridas pelo Sector Empresarial do Estado. Exemplo recente é a escandalosa privatização dos correios, a seguir transformado também no Banco CTT, com a drástica perda de qualidade de um serviço em que no passado Portugal já foi exemplar. Esta privatização, feita quando o governo Passos Coelho estava moribundo, não foi revertida pelo governo PS. As palavras privatização e corrupção constituem rimas perfeitas. 

[1] LBO: Aquisição de uma empresa essencialmente através do recurso a fundos alheios, normalmente por parte de um grupo em que se incluem alguns dos gestores da empresa-alvo.
[2] Oxfam: oxfamilibrary.openrepository.com/...
[3] Concentração de capital: Acréscimo interno do capital por acumulação e concentração da mais-valia.
[4] Centralização de capital: Um dos meios de acumulação do capital representando um processo de acréscimo do capital pelo agrupamento de vários capitais num só, pela absorção de outros capitais já existentes.
[5] Les prédateurs: Des milliardaires contre les Étas, leur rapacité face à nos lâchetés , ed. Le Cherche-Midi, 2018, 300 p., ISBN 978-2-7491-5593-7

Esta resenha encontra-se em http://resistir.info/

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