Tal como no rescaldo do furacão
Katrina em 2005, a
epidemia Covid-19 põe a nu, de forma brutal, a realidade social da
superpotência imperialista e o total desprezo das classes dominantes para com
os trabalhadores e o povo dos EUA. Nem a comunicação social de regime consegue
esconder essa realidade dramática.
As consequências desta Primavera
(no Hemisfério Norte) de 2020 vão ser tremendas, e a História está ainda por
escrever. Ainda é cedo para avaliar todo o impacto da pandemia Covid-19, mas as
suas consequências serão múltiplas e profundas. Em muitos países, e
nomeadamente nos centros imperialistas que são hoje o epicentro da epidemia,
uma crise de saúde pública está a transformar-se numa catástrofe social. Mas as
classes dominantes ao serviço do grande capital estão já a procurar usar a
crise provocada pelo coronavirus SARS-CoV-2 como pretexto para justificar mais
prebendas para o grande capital e mais sacrifícios para quem trabalha. Tal
facto, que marca todo o mundo capitalista, é particularmente evidente nos
Estados Unidos da América.
Os EUA: uma tragédia com marca de
classe
Tal como no rescaldo do furacão
Katrina em 2005, a
epidemia Covid-19 põe a nu, de forma brutal, a realidade social da
superpotência imperialista e o total desprezo das classes dominantes para com
os trabalhadores e o povo dos EUA. Nem a comunicação social de regime consegue
esconder essa realidade dramática.
Escrevendo ainda antes de os
Estados Unidos se tornarem o país com (de longe) o maior número de casos de
Covid-19, o Financial Times (6.3.20) antevia a vulnerabilidade da superpotência
imperialista. As causas referidas reflectem uma brutal e desenfreada
exploração: «Responsáveis de saúde pública e académicos estão preocupados por a
conjugação de um elevado número de pessoas sem seguros [de saúde], a
inexistência de baixas médicas pagas e uma classe política que minimizou a
ameaça poderem vir a significar que [o vírus] venha a alastrar de forma mais
rápida do que noutros países […] alguns consideram que o país poderá vir a ser
um dos mais afectados pela pandemia global. […] O alastramento do coronavirus
pode ser alimentado pelo facto de pacientes recearem procurar cuidados
[médicos], devido aos elevados custos do sistema de saúde nos EUA. Quase 18
milhões de americanos não tinham seguro [de saúde] em 2018 […]. Mesmo pacientes
com seguros podem ver-se em dificuldades para pagar as contribuições que
asseguram esses cuidados. […] Embora 11 Estados e 25 cidades tenham aprovado
leis que obrigam as empresas a pagar baixas médicas, continua a não existir a
exigência a nível Federal de o fazer, e activistas afirmam que cerca de 30% dos
trabalhadores dos EUA ainda não têm esse direito. Peritos afirmam que isso pode
aumentar o alastramento do coronavirus se trabalhadores doentes, com receio de
perder a sua paga, acabam por ir trabalhar e infectar outros. De acordo com um
estudo académico publicado em 2012,
a falta de políticas laborais tais como baixas médicas
pagas levou a um excesso de 5 milhões de doenças de tipo gripal durante a
eclosão da gripe porcina H1N1 em 2009».
Também no princípio de Março, o
New York Times (9.3.20) explicava porque é que «o encerramento das escolas
públicas será um último recurso»: «a cidade de Nova Iorque tem a maior rede de
escolas públicas dos Estados Unidos […] com cerca de 750 000 crianças pobres,
incluindo cerca de 144 000 sem abrigo [!]. Para estes estudantes, a escola pode
ser o único lugar onde conseguem ter três refeições quentes por dia e cuidados
médicos, ou até lavar a sua roupa suja. É por isso que as escolas públicas da
cidade deverão permanecer abertas mesmo que o novo coronavirus se torne mais
prevalente em Nova Iorque».
Acrescenta que «mesmo um único dia de neve pode perturbar seriamente as vidas
das crianças mais vulneráveis de Nova Iorque e os seus pais e outros parentes,
cujos empregos muitas vezes não asseguram o pagamento de baixas». O artigo do
NYT transmite um testemunho sobre a realidade da maior cidade dos EUA, nesta
‘era digital’: «Nicole Manning, uma professora de matemática do 9.º ano no
liceu Herbert H. Lehman, no Bronx, calcula que quase metade dos seus alunos não
têm acesso à internet em casa. ‘Não podemos fazer ensino à distância’, afirma.
‘Não seria justo’».
Ainda o NYT informava (20.3.20)
que «pode afirmar-se que os EUA não estão apenas a seguir o curso de Itália,
mas estão pior preparados, pois a América tem menos médicos e camas
hospitalares per capita do que Itália – e uma esperança de vida menor, mesmo em
tempos melhores». E isto apesar de em Itália o número de camas hospitalares por
mil habitantes ter descido cerca de 25% nas últimas duas décadas de
‘euro-austeridade’ (Estatística de Saúde da OCDE).
Um artigo da CNN online (23.3.20)
estima em 320 mil o número dos sem-abrigo no Reino Unido, para quem as
instruções para «ficar em casa» têm um sabor particularmente amargo. Dá conta
que «os bancos alimentares que garantem apoio vital a alguns dos 14 milhões de
pobres estimados estão com falta de voluntários, muitos dos quais se viram
forçados a auto-isolar-se, bem como da própria comida, no seguimento do pânico
de compras nos supermercados». E acrescenta que a situação social agravou-se
«após a crise financeira global de 2007-8» quando «milhares de milhões de
libras foram retiradas do sistema de segurança social» a fim de efectuar
«cortes radicais nas despesas estatais». Se nos lembrarmos dos milhões de
milhões que têm sido entregues à banca neste mesmo período, para manter à tona
um sistema financeiro falido, torna-se evidente que o capitalismo, mesmo nos
seus principais centros, é uma criminosa máquina de gerar riquezas imensas à
custa duma enorme pobreza.
A situação social agravou-se
abruptamente com a eclosão da epidemia. Em apenas três semanas do final de
Março a início de Abril, o número oficial de novos desempregados nos Estados
Unidos cresceu quase 17 milhões, «um número que os economistas dizem que pode
elevar a taxa de desemprego para 14%, superior ao pico da última crise
financeira» (Financial Times, 9.4.20). Economistas do Banco da Reserva Federal
de St. Louis estimam que o número de novos desempregados possa mesmo chegar aos
47 milhões, com uma taxa de desemprego de 32% (CNBC, 30.3.20). Esta realidade
dramática levou à quebra de alguns sistemas informáticos para pedidos de
subsídio, com a formação de longas filas de recém-desempregados (Newsweek,
8.4.20), que arriscaram o contágio para não ficarem sem o jantar. Nos EUA, a
perda de emprego é também, muitas vezes, a perda a prazo da casa ou (se
existir) do seguro de saúde.
Mesmo no plano estritamente
médico, o impacto da epidemia tem a marca de classe. A ABC (3.4.20) relata que,
«o vírus não poupou nenhuma parte da Cidade de Nova Iorque, mas novos dados
mostram que os bairros mais pobres de Queens, Bronx e Brooklyn estão a ser
particularmente atingidos». Uma fonte noticiosa de Chicago (WBEZ, 5.4.20)
relata que «em Chicago, 70% dos mortos de Covid-19 são negros», uma percentagem
muito superior aos 29% na população. E explica: «Historicamente, as comunidades
negras de Chicago têm sido atingidas de forma desproporcionada por problemas de
saúde, dadas a pobreza, a poluição ambiental, a segregação e o acesso limitado
a cuidados médicos».