Carmo Afonso | Expresso | opinião
Se a decisão do Tribunal
Constitucional for a extinção do Chega justiça será feita, sobretudo a todos os
que lutaram contra o fascismo e contra a ditadura, aos que estiveram presentes
na Assembleia Constituinte e que por unanimidade fizeram constar uma intenção
clara. O nº 4 do artº 46º da Constituição da República Portuguesa poderia
chamar-se “Não passará”
Portugal, março de 2007, RTP,
programa “Os grandes Portugueses”; António de Oliveira Salazar é escolhido
pelos portugueses, os que decidiram participar na votação, como “o melhor
português de sempre” com 41% dos votos. A sua defesa foi feita por Jaime
Nogueira Pinto (nazi-fascista)1. Acabei de rever o documentário que fez em sua homenagem. É ali
que está a visão de alguns para Portugal, o culto da nação e o do grande líder
discreto. A apresentação do homem honesto e íntegro: a negação de casos de
corrupção no Estado Novo.
Termina o documentário junto à
campa de Salazar no cemitério do Vimieiro com mais uma homenagem à sua
singeleza: “sepultado numa campa rasa” e, por último, um vídeo do seu suave
contentamento perante uma multidão que o enaltecia.
Ficou exposta a ferida.
Sim, existem portugueses que
simpatizam com a figura de Salazar e ainda existem outros que o veneram.
Jaime Nogueira Pinto não terá
abdicado do seu sonho para Portugal e terá passado a dar o seu apoio de forma
oculta, ou pelo menos discreta, ao Chega e ao que o antecedeu. Aqui pode
pensar-se: como pode o partido de André Ventura ser defendido por quem amava
Salazar? Apesar do muito que os une, têm aspetos distintos: Salazar não
apoiaria o tipo de criminalidade que o Chega acolheu, o populismo vaidoso de
André Ventura e as suas flagrantes incoerências e incorreções.
Porque apoia então Jaime Nogueira
Pinto este partido? O que o fará engolir um sapo como André Ventura, um homem
que gosta de aparecer e que defende uma coisa e o seu contrário?
Talvez a mesma razão que o faz
apoiar Trump; a oportunidade de normalizar e legitimar e unir ideologias
extremistas de direita. O Chega não será, para parte de defensores do
nacionalismo de extrema-direita, um objetivo mas sim um meio. Talvez seja essa
a explicação para André Ventura ter apagado a fotografia do seu almoço com
Jaime Nogueira Pinto, supostamente a pedido deste. Lutar pelo sonho de Salazar
não é bem a mesma coisa que entrar nas redes sociais ao lado de André Ventura e
ser exposto a tudo o que isso implica. É que as redes sociais foram um belo
trampolim para a extrema-direita portuguesa mas pode acontecer que a coisa
descambe e que dê demasiado nas vistas e, se o líder do Chega perdeu a
vergonha, Jaime Nogueira Pinto não.
Enquanto estes planos se vão
concretizando – o Chega é um partido com assento parlamentar e acabou de chegar
a um entendimento com o principal partido português de direita – é importante
fazer uma nova reflexão sobre as limitações constitucionais à liberdade de
associação, ideologias fascistas e o papel do Tribunal Constitucional junto dos
partidos políticos. É que o problema tem efetivamente expressão - e não se pode
continuar a dizer que “em Portugal não temos isso”. Agora temos.
A Constituição deixou fora do
direito de liberdade de associação “as organizações racistas ou que perfilhem
ideologia fascista”. Diga-se que foi uma decisão unânime do legislador
constituinte. Esta limitação não se reporta à liberdade de expressão, sendo os
cidadãos livres de exprimirem e divulgarem livremente o respetivo pensamento e
a sua adesão individual à ideologia fascista, mas impede a existência de
partidos políticos dessa índole.
Aqui coloca-se a questão: o Chega
é ou não um partido que perfilha a ideologia fascista?
Temos alguns indícios, como a
proposta anunciada por André Ventura de confinar ciganos durante a pandemia, a
insistência nos castigos físicos como penas para a prática de certos delitos (a
castração química de pedófilos é bom exemplo); o discurso de conteúdo bélico do
próprio André Ventura, que afirmou contar “com o apoio" dos seus
"guerrilheiros e generais” no congresso do partido em Évora. Mais, na
única moção por si apresentada apontou para o combate à imigração ilegal, o
aprofundar os laços institucionais e políticos com os ditos parceiros do ID – o
Identidade e Democracia, grupo partidário da extrema-direita no Parlamento
Europeu e identificou como problemas nacionais, "a progressiva islamização
das nossas grandes cidades, o marxismo cultural, a ideologia de género" e
"a destruição da nossa base de valores civilizacionais".
De registar ainda a
apresentação de uma proposta de nome "Moção Estratégica Global para
Portugal", que defendia a remoção dos ovários das mulheres que recorram ao
Serviço Nacional de Saúde para o aborto. Foi chumbada, mas foi a votação e
obteve umas dezenas de votos favoráveis. Existe também a ligação do Chega a
dirigentes e ex-dirigentes de grupos de extrema-direita violentos e racistas e
a convocação para uma manifestação que negava a existência de racismo na
sequência do homicídio de Bruno Candé; existe a xenofobia e a adesão a um
líder que se apresenta como forte e capaz de restaurar a ordem (quem for capaz
que diga mais três nomes de figuras de destaque ligadas ao Chega), a defesa da
repressão, a desculpabilização da violência policial e a obsessão com a
corrupção. Enfim. Nada de novo. Encontra-se disto em França, no Brasil e pelo
mundo fora. Acabámos de assistir a algo parecido nos Estados Unidos. Fascismo.
Não se pode continuar nestas
águas turvas que legitimam o primeiro-ministro a destratar (e muito bem) o
deputado André Ventura na Assembleia da República ou como fez o líder do PCP
(“Está-se a rir? Eu não lhe acho graça nenhuma.”) mas que admitem como normal a
sua presença.
Existe uma outra estratégia, que
tem sido seguida sobretudo pelo Bloco de Esquerda, mais trabalhosa, que passa
por desconstruir e desmascarar cada trafulhice e cada incongruência atribuídas
a André Ventura. É um processo meticuloso e que exige atenção. Deverá tê-la.
Pode não resolver.
Há aqui uma certeza: o partido
Chega é de extrema-direita e perfilha a ideologia fascista no que essa
ideologia tem de mais característico.
E existem também várias dúvidas:
a primeira é se o Tribunal Constitucional terá esse entendimento nos termos em
que a ideologia fascista está definida na Lei nº64/78, de 6 de outubro, ou seja
uma ideologia que defende os valores, os princípios, os expoentes, as
instituições e os métodos característicos dos regimes fascistas que a História
regista, nomeadamente o belicismo, a violência como forma de luta política, o
colonialismo, o racismo, o corporativismo ou a exaltação das personalidades
mais representativas daqueles regimes.
A única vez que o Tribunal
Constitucional foi chamado a apreciar um requerimento que peticionava a
extinção de uma organização por perfilhar a ideologia fascista foi a propósito
do MAN (constituído em 1985), uma organização que pretendia instaurar o
Estado Nacionalista, que utilizava a saudação de braço ao alto, cruzes céltica
e suástica e que defendia o “racialismo”, apelando à violência e com fortes
ligações ao movimento Skinhead. Foi o Procurador-Geral da República que teve a
iniciativa e o TC não chegou a concluir se o MAN “perfilhava a ideologia fascista”,
uma vez que a organização se dissolveu antes da prolação do acórdão 17/94 de 18
de janeiro.
A segunda dúvida é se será esta a
forma de derrotar o Chega e refiro-me ao recurso ao TC quando se trata de um
problema que já tem uma expressão política tão relevante.
Não será o fascismo a ser
derrotado. O fascismo não se resolve com um processo judicial. Antes
resolvesse. As pessoas têm a liberdade de ser fascistas e de exprimirem
opiniões que apoiem essa ideologia. A questão é se o TC admite ou não um partido
como o Chega. E interessa a todos que se pronuncie sobre isso.
Porquê?
Porque se a decisão do TC for a
extinção do Chega, justiça será feita, sobretudo a todos os que lutaram contra
o fascismo e contra a ditadura, aos que estiveram presentes na Assembleia
Constituinte e que por unanimidade fizeram constar uma intenção clara. O nº 4
do artº 46º da Constituição da República Portuguesa poderia chamar-se “Não
passará”.
E se o TC decidir em sentido
contrário e confirmar a regularidade do Chega face à legislação portuguesa? Aí
poderá acontecer um fenómeno importante: o da responsabilização política dos
portugueses. Não votam? Pois, é isto que acontece. Não se manifestam, ficam no
passeio? Camaradas, isso nunca correu bem. Acham que os extremos são parecidos?
Não são. Foi graças ao PCP e ao Bloco, algumas vezes em sintonia com a direita,
que se construiu a democracia. O PCP e a UDP estiveram presentes na Assembleia
Constituinte. Não acreditam na luta antifascista? Foi ela que nos deu a
liberdade e está tudo em causa outra vez. Aceitam tamanhas desigualdades
sociais e um capitalismo sem regulação? É deles que nasce o fascismo.
Já agora: o Presidente da
República, a Assembleia da República, o Governo, o Provedor de Justiça e o
Procurador-Geral da República têm legitimidade para requerer a extinção de
partidos políticos. Só que a terceira dúvida é se alguém o virá a fazer.
Se metermos uma rã numa panela de
água a ferver a rã seguirá o seu instinto de sobrevivência e em segundos
saltará da panela escapando em princípio com vida. Se metermos uma rã numa
panela, com água fria ou morna, ao lume, a rã habituar-se-á à subida da
temperatura e não detetará aquela que já é perigosa e que a matará. É uma
maneira de morrer.
Não seremos muito diferentes das
rãs nisto.
Estamos há demasiado tempo a
conviver de forma polida com este monstro e vamo-nos habituando a ele. Por
alguma razão Rui Rio achou que não seria grave, no sentido em que não perderia
eleitorado, um entendimento com o Chega. Ou seja; a temperatura já queima mas Rui
Rio tem fé na inércia e na apatia dos portugueses.
A escalada da extrema-direita
populista e do fascismo não desacelerou com a pandemia. É mais uma chama a
aquecer a panela em que cozemos. Aceitamos restrições em nome do coletivo e em
especial dos grupos de risco, mas é importante que esta aceitação não seja
mansa, mas uma escolha consciente. Que não a confundam com obediência cega e
que não a encaremos assim.
Quando apanho um táxi não tenho o
costume de perguntar ao motorista se tem carta de condução, licença para o
exercício da atividade ou se ingeriu substâncias que alterem a sua capacidade
de nos levar em segurança ao destino que indico. Este princípio de confiança
não deve ser estendido à vida política em nenhum dos seus aspetos.
É obrigatório perguntar se um dos
partidos com assento na Assembleia da República é fascista, é obrigatório
verificar se nos sentimos representados por quem está no poder, é obrigatório
questionar um mega sistema que afinal se condensa numa pequena oficina de
milionários.
E é absolutamente obrigatório
apontar para que fiquem na memória os nomes de quem trouxe à cena política este
partido e o de quem lhe dá força: Jaime Nogueira Pinto - o intelectual que
legitima - e Rui Rio - o dirigente partidário que abriu as portas da governação
ao Chega mas que, ao mesmo tempo, se congratula com a derrota de Trump - são
bons exemplos.
E não apontem o nome do cabeça de
cartaz.
Peçam essa cabeça, vão para a rua
gritar.
Nota: escrever várias vezes sobre
o mesmo tema seca a poesia. A extrema-direita e o fascismo também. Ficam então
as metáforas. Fazem-se sozinhas.
Nota PG: 1 - Esclarecimento no texto de Carmo Afonso sobre Jaime Nogueira Pinto (nazi-fascista), em bold e sublinhado, por PG.