A existência de
etno-nacionalismos em Angola é praticamente tão antiga quanto a iniciativa
colonial da “africanização da guerra”, uma ambígua subversão de conceitos
e de práticas da barbárie que nos transporta aos tempos das lutas contra as
resistências que as forças portuguesas de ocupação encontraram pelo caminho,
visando o domínio de todo o território, antes mesmo do “Estado Novo” fascista
e colonial.
Para vencer as resistências o
colonialismo recorria a recrutamentos locais, pois era impossível realizar as
prolongadas campanhas apenas em função do contingente “metropolitano”, uma
vez que o ambiente tropical não era favorável a ele e os “cabos de guerra” conseguiam
melhores resultados com efectivos africanos, adaptados ao terreno, com
exigência de pouca logística, mentalmente vulneráveis à doutrinação colonial e
muitas vezes envolvidos em disputas de poder entre as elites africanas em torno
dum reinado, dum sobado, dum “dembo”, ou dum “régulo”…
Essa “zona cinzenta” de
contínua acção psicológica e de práticas a condizer, propiciou-se às
ingerências e às manipulações e era a partir desse jogo inteligente, parido
pelos “experts” que produziam o domínio sob a bandeira colonial, que
se tornava mais eficaz o recrutamento e o rótulo que as autoridades coloniais
obrigatoriamente tinham de criar para cada caso étnico, inclusive os
expedientes etno-nacionalistas de feição.
O historiador René Pélissier
detalha em pormenor essa “sapiência” colonial fundamentada com muitos
dados que recolheu e é dele que fomos buscar o conceito original de
etno-nacionalismo, que se misturava a preceito com o conceito de “africanização
da guerra”.
Esses conceitos têm feito
percurso para além do período colonial propriamente dito, por que o
neocolonialismo rampante em África, tendo em conta os recursos financeiros, as
linhas de inteligência de que se nutre e os objectivos de exploração das
riquezas naturais, continuam a fazer esse tipo de “aproveitamentos”.
A “FrançAfrique” desenvolveu
sublimando a superestrutura ideológica do poder e os seus instrumentos, a
partir do tempo das “redes Foccart” (década de 60) e do conde
Alexandre de Marenches (década de 70), recrutando a partir das elites africanas
a fim de colocar no poder o títere de feição e com isso garantir os interesses
da França em África até á exaustão por via das conexões das redes de
inteligência (SDECE/DGSE)…
Os “produtos refinados” da
contemporânea FrançAfrique persistem desde suas linhas tradicionais e em
Angola, os etno-nacionalismos foram sempre filtrados também por esse tipo de
condensação de interesses, conforme ao caso de Cabinda, por exemplo.
É de supor que a presença da
Total nos interesses do gás em Cabo delgado possua este tipo de “filtragens”,
algo que é “genético” á exploração de riquezas (matérias-primas) por
parte da FrançAfrique!
A FLEC foi sempre filtrada pela
persistência neocolonial desse tipo de redes (por isso o território do Bas
Congo na República Democrática do Congo é de seu crucial interesse) e hoje, com
o capitalismo neoliberal, só precisa de núcleos duros para persistir na fluidez
etno-nacionalista que também, graças ao multipartidarismo angolano parido por via
de Bicesse a 31 de Maio de 1991, se distende para dentro de alguns partidos de
oposição cuja raiz é, na sua essência, a mesma.
No caso angolano, é por isso que
qualquer manifestação etno-nacionalista, possui ramificações para dentro
do “caudal” da Unita, o que tem sido evidente quer quando há a
expressão da Frente de Libertação do Enclave de Cabinda, FLEC, quer quando há a
expressão Movimento do Protectorado Português Lunda Tchokwe, MPPLT.
Eventualmente, para além do
registo de etnicidades implícito no etno-nacionalismo, o impacto de
radicalização poderá ser também feito através do âmbito religioso, algo fluente
em África por via do radicalismo fundamentalismo islâmico sunita/wahabita de
que a África Central e Austral, com a RDC, Tanzânia e Moçambique na primeira
linha, estão já a sentir efeitos, apesar de haverem também seitas ditas cristãs
que o podem também concretizar (em Angola é o caso por exemplo da Teologia da
Prosperidade, injectada a partir do Brasil com a Igreja Universal do Reino de
Deus e sue “apóstolos” e “pastores” brasileiros)…
Na África Central e Austral, os
etno-nacionalismos são de tal modo intensos que persistem década a década,
fomentam rebeliões armadas, podem fazer junção aos radicalismos islâmicos e,
nos parlamentos das frágeis democracias africanas, espelham a sua
representação, inibindo as potencialidades de participação popular e do
protagonismo consciente próprio da sabedoria.
As “transversalidades” sociais
do radicalismo existem, ainda que em contradição de quem anda “nas matas” com
as armas da rebelião na mão e persistem por que por essas “transversalidades” é
por onde flui o dinheiro que garante a continuidade do etno-nacionalismo e do
seu pendor para a subversão e a interpretação exclusivista (e etnocentrista) da
história!
O colonial-fascismo português
esmerou-se ao utilizar o rótulo FLEC para “pseudo terrorismo” na
direcção dos dois Congo, com o objectivo de atacar o MPLA durante a Luta Armada
de Libertação Nacional e o neoliberalismo injectado no “arco de governação” desde
0 golpe do 25 de Novembro de 1975 em Lisboa, garante apoio à clandestinidade a
entidades da FLEC na Europa, em estreita consonância com a inteligência
francesa filtrada pelos interesses da Total no petróleo!
Parlamentos como o angolano, não
conseguem sair desse pântano apto às “transversalidades” sob o rótulo
da “representatividade multipartidária” e ainda que seja
maioritariamente preenchido pelo MPLA, a fluidez social faz a sua quota-parte
de trabalho de sapa por via das linhas de inteligência de sustentação, forjando
a mentalidade adequada e inibindo a consciência patriótica fiel às raízes do
movimento de libertação em África!
O jornalista Artur Queiroz tem
feito várias radiografias desse tipo de organizações, através de entrevistas de
alguns dos seus autores em dissidência ou não e através delas é possível melhor
entender os conteúdos internos desse tipo de barbárie ao dispor do manancial
de “programas” da barbárie maior do “hegemon”!
Numa das entrevistas abaixo
reproduzidas, realce-se o velado papel do governo português do “arco de
governação” em relação a entidades da FLEC em Lisboa, em consonância com a
sua tradicional vassalagem ao “hegemon”, também por via da NATO e do
Africom!...
Martinho Júnior -- Luanda, 19 de Maio de 2021