terça-feira, 29 de novembro de 2022

DA COP À COPA

Na COP mais participada de sempre pelo lóbi do fóssil, também não espanta que tenham ficado para trás todas as ambições sobre a descarbonização e desfossilização da economia.

Joana Mortágua* | opinião

A decisão de realizar a COP 27 no Egito causou polémica. É saudável que assim seja quando um país não cumpre os patamares mínimos de democracia e respeito pelos direitos humanos. Abdel Fattah, ativista pela democracia preso e em greve de fome durante a COP tornou-se símbolo da repressão do regime egípcio, sobretudo quando, durante a COP, a sua irmã afirmou que a família não sabia sequer se o ativista estava vivo. Ajit Rajagopal foi detido pela polícia egípcia no começo do mês quando decidiu caminhar do Cairo até Sharm el-Sheikh empunhando um cartaz sobre justiça climática. O advogado do ativista, ao procurá-lo na polícia, também foi preso.

Quem usou de legítima boa vontade para argumentar que a realização de uma Conferência do Clima no Egito seria um empurrão para grandes mudanças, só pode ter ficado desiludido. Até se chegou a um acordo sobre a criação de um mecanismo de financiamento para compensar as nações vulneráveis por ‘perdas e danos’ causados pelo clima, como desastres climáticos ou até o desaparecimento de ilhas inteiras em países que não tiveram contributo histórico para a poluição. No entanto, a operacionalização desse fundo – incluindo a decisão sobre quem paga e quanto – ficou para depois. Na melhor das hipóteses, fará o mesmo caminho que a promessa de 100 mil milhões de dólares por ano para a transição e adaptação dos países mais vulneráveis. Na COP mais participada de sempre pelo lóbi do fóssil, também não espanta que tenham ficado para trás todas as ambições sobre a descarbonização e desfossilização da economia.

Perante a fragilidade do acordo alcançado, qualquer uma poderá usar de igual legitimidade para apontar o dedo à ONU por estar a ceder ao greenwashing de países autoritários e sem particular papel no combate às alterações climáticas. Enfim, esqueçamos isso, diria Marcelo. Só que quando o mundo se preparava para pôr este fracasso para trás das costas, o nervosismo pelo futebol levou os principais responsáveis políticos do país a participar noutra operação de maquilhagem. Desta feita, na legitimação de um regime onde os direitos humanos são uma miragem ainda mais enganadora do que a de um oásis para um morto de sede no deserto.

Porquê escolher o Catar em vez de, por exemplo, os Estados Unidos da América, onde se tinha pensado realizar o Campeonato do Mundo de Futebol de 2022? Em 2010, Nicolas Sarkozy (presidente francês), Hamad al-Thani (então príncipe herdeiro e atual emir do Qatar) e Michel Platini (que liderava a UEFA e era vice-presidente da FIFA) tomaram um pequeno almoço. Platini passou a defender o Catar, o Paris Saint-Germain embolsou 1.800 milhões de euros e passou a ser propriedade de um fundo de investimento detido pelo Estado catari, o “Qatar Sports Investment”. Em 2011, o fundo contratou o filho de Platini.

Para o regime autoritário do Catar era um pequeno preço a pagar por uma mega operação de propaganda. O verdadeiro custo do Mundial estaria por vir: dois milhões de trabalhadores estrangeiros recrutados para construir os sete estádios e a rede de metro sofreram em condições de verdadeira servilidade debaixo de um sol de 40º C. Segundo contas do “The Guardian”, pelo menos seis mil trabalhadores morreram, sangue e suor sobre o qual se ergueu a “festa do futebol”. Discriminação violenta de mulheres e comunidade LGBTI+, censura, perseguição, pena de morte, castigos físicos… “you name it”.

Diferente da COP, desta vez já não foi a esperança de mudança mas um “acidente” que levou à escolha de uma “petrotirania” para localizar um grande evento internacional. Apenas coincidência? Olhemos para o perfil do país que vai acolher a próxima COP, em novembro de 2023: são classificados como “não livres” no relatório anual Freedom in the World da Freedom House. Recebem muitos trabalhadores estrangeiros, em sua maioria de origem asiática, que são transformados em servos através de dívidas; a confiscação dos passaportes, embora seja ilegal, ocorre em grande escala; os operários trabalham muitas vezes sob calor intenso, com temperaturas que chegam a atingir entre 40 °C e 50º C. As temperaturas oficiais são censuradas durante os meses de verão. As mulheres sofrem de violenta discriminação. Soa familiar?

Do Egito aos Emirados Árabes Unidos (Dubai), com escala no Qatar: não é difícil perceber o que move o mundo.

*Esquerda.net

*Artigo publicado no jornal “I” a 24 de novembro de 2022

*Joana Mortágua - Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.

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