Eu sou a veia e você é a agulha /
Eu sou o gás e você é a fagulha / Eu sou o fogo e você é a gasolina / Eu sou a
pólvora e você a mina". A música de Roberta Sá e de Lenine não foi
apropriada pela base bolsonarista, mas é a descrição perfeita para o momento
atual do país: um presidente que não reconhece a derrota eleitoral num
minidiscurso ao Brasil e apoiantes na rua favoráveis a um golpe militar.
Jair Bolsonaro, perdedor nas
urnas na eleição de domingo passado, demorou dois dias para quebrar o silêncio
num país que começa a sofrer com os protestos, nomeadamente, os bloqueios dos
camionistas. Sobre os constrangimentos causados, até em infraestruturas
críticas como aeroportos, houve nota de que "as manifestações pacíficas
sempre serão bem-vindas", mas que "os métodos não podem ser os da
esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedades,
destruição de património e cerceamento do direito de ir e vir".
No entanto, "os atuais
movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como
se deu o processo eleitoral". Ou seja, música para os ouvidos da base que,
junto a colunas de som, em frente ao Comando Militar do Sudeste, em São Paulo, festejaram as
palavras do presidente com direito a foguetes.
Se a base já estava inflamada,
agora está ainda mais. "Achei que ele foi contundente com aquilo que a
gente esperava já, a gente, que está aqui, esperava que se pronunciasse deste
jeito, não se prejudicando, mas ele está do nosso lado. Estamos cientes de que
o sistema inteiro jogou contra ele e ele não se pode prejudicar, então ele foi
neutro", nota um dos apoiantes à TSF.
Outro qualifica o discurso como
"muito bom" para, em seguida, dizer que "ele simplesmente não
admitiu". "Ele não reconheceu uma eleição limpa, não foi limpa na
verdade", diz Cláudio que mostrou alguma reserva em divulgar o apelido.
Já nas mensagens nos grupos
bolsonaristas, circula uma cábula com o "recado do presidente no
discurso". Das frases ditas por Bolsonaro, retiram-se recados como:
"o nosso motivo", "continuem", valores "para defender"
ou "resistência ao comunismo" e "contem comigo".
No entanto, mesmo que Jair
Bolsonaro tivesse, em algum momento, falado sobre um processo eleitoral limpo,
aqui ninguém ia acreditar. A ideia está fechada, corre à velocidade das
mensagens nos grupos de Whatsapp e, no protesto, até se antecipava a mensagem
de que "ele vai falar o que tem de falar" porque "não pode dizer
mais".
O grande temor dos manifestantes
é colar Bolsonaro à instigação de um golpe no país. Literalmente de um dia para
o outro, deixaram de falar tanto em Jair Bolsonaro, autocensuraram-se na linguagem e
agora dizem que estão "pelo Brasil" e não por Bolsonaro. Ainda assim,
vibram a cada palavra do presidente.
Falar de Lula da Silva, vencedor
das eleições, ou Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior
Eleitoral, desses podem falar. Na verdade, quanto mais alto melhor: é de ladrão
para cima nos cânticos que vão alternando com o hino nacional brasileiro ou
alguns "Pai Nosso". Afinal, é "Deus no comando", como se lê
em alguns cartazes.
Pedido de "socorro"
À medida que as pessoas vão
chegando, também os cartazes e tarjas vão aparecendo. Muitos deles voltados
para as Forças Armadas, inclusive a maior de todas: "Socorro Forças
Armadas". É na intervenção militar que reside a esperança, ou seja, num
golpe.
"Eu prefiro uma intervenção
militar, eu prefiro ser governado pelos militares do que ser governado por um
corrupto. Não sou só eu não, são 58 milhões de brasileiros, não aguentamos mais
isto", diz o mesmo Cláudio que considerou "muito bom" o discurso
de dois minutos feito por Bolsonaro.
Precisamente pelo facto de a
ideia golpista ganhar escala a cada hora que passa, o Tribunal Superior
Eleitoral decidiu ordenar às plataformas WhatsApp e Telegram que bloqueassem os
grupos onde fossem convocadas paralisações nas estradas e fosse feita a
apologia do golpe militar.
"Censura", comentam
amiúde nos protestos, esquecendo que muitos dos argumentos que vão utilizando,
por exemplo, para alegar fraude eleitoral, serem até agora comprovadamente
falsos pela justiça e também pela comunicação social.
No entanto, à medida que os
grupos vão sendo bloqueados, vão sendo criados outros ao mesmo ritmo. É uma
pedra na engrenagem, mas nada demove os contactos de continuarem com o apelo
para que "todos saiam à rua". Mesmo que as notícias falsas corram à
mistura.
Na noite desta terça-feira, uma
das mensagens que circulava dizia que "uma jornalista da CNN" tinha
acabado de apurar que "Alexandre Moraes acabou de mandar uma notificação
extrajudicial" para o regulador das telecomunicações brasileiro e que, por
sua vez, passaria para as empresas de internet. Objetivo? "A partir das
22h, todos os servidores de internet do Brasil vão ser desligados para evitar
que seja coordenada a maior manifestação da história do Brasil nesta
quarta-feira". "Repassem urgente", termina este utilizador que
continuou a receber mensagens no grupo madrugada fora.
Mais curioso foi uma outra pessoa
deste grupo retransmitir esta mesma mensagem quando já passavam 23 minutos das
22 horas.
A força das fake news é tal que a Revista Fórum fez um artigo que colocou na categoria
de "Universo Paralelo", falando em "momento de alucinação
coletiva". Tratavam-se de vídeos de manifestações onde bolsonaristas
comemoravam a prisão de Alexandre de Moraes. Nota: ele não foi preso (apesar
dos cânticos de "Hey, Xandão, seu lugar é na prisão").
"Imprensalixo"
Outro dos alvos mais recentes dos
apoiantes de Bolsonaro, que adicionam a "Liberdade" ao lema fascista
"Deus, Pátria, Família", é a imprensa.
Ao microfone, um jovem nordestino
de 19 anos vestido com um camuflado prega ser necessário não sair das ruas e
continuar a luta contra uma eleição que "não foi limpa" e a favor do
"descondenado". Diz ainda que ali está para ficar porque não quer, no
futuro, comer do lixo ou que quando tiver uma filha ela vá a uma casa-de-banho
unissexo.
Daí para a imprensa que
"festejou" a vitória de Lula foi um tiro. Diz que Bolsonaro cortou
verbas para a comunicação social e que, por isso, é que os media são favoráveis
a Lula. "A mamata acabou", vai dizendo arrancando aplausos e notando
que esse dinheiro deve ser investido no povo. Mais palmas.
No caso da imprensa
internacional, o caso muda de figura. Se por um lado criticam o tom com que
Bolsonaro é descrito nos meios fora do Brasil, também querem passar a mensagem
porque acham que o mundo não está suficientemente atento "à fraude
eleitoral" que dizem que está a acontecer no Brasil. Mas, por mais de uma
vez, antes de abrirem a boca, perguntam à TSF: "Qual é o vosso posicionamento
político?"
E agora?
Com este barril de pólvora a
encher, a mobilização para esta quarta-feira tem sido bastante esforçada. Todos
os grupos de Telegram e Whatsapp que ainda não foram abaixo, fazem apelos para
que os bolsonaristas saiam para as portas dos quartéis de todo país, como
também para darem o máximo de apoio aos camionistas e homens do agronegócio que
bloqueiam estradas.
O facto de Bolsonaro já ter assumido ao Supremo Tribunal Federal que
"acabou", reconhecendo assim a vitória de Lula, não passa de uma
nota de rodapé para a base do presidente que, vestida de verde e amarelo, quer
o máximo de pessoas na rua para que a "bandeira jamais seja
vermelha".
O que vai acontecer ninguém sabe,
mas que a mobilização continua forte, on e offline, isso ninguém pode negar.
"Isto é uma faísca e vai pegar fogo", diz um apoiante à TSF falando
dos próximos dias. "O nosso jogo é perigoso, menina / Nós somos fogo / Nós
somos fogo / Nós somos fogo e gasolina", já cantavam a Roberta Sá e o
Lenine.
Filipe Santa-Bárbara, enviado
especial ao Brasil – TSF - 02 Novembro, 202
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